VOCÊ JÁ FOI, É OU ESTÁ?
Raymundo Silveira
 
 

Alguns de vós costumais conversar convosco mesmos sozinhos? Não! Não estou me referindo a pensar, meditar, cogitar, mas em conversar mesmo em alto e bom som como se fossem duas pessoas a dialogarem entre si. Pois comigo acontece sempre e geralmente sou encarado por circunstantes com muita estranheza. Quando assim sucede tento disfarçar, simulando que me encontrava a cantar. Hoje mesmo vinha papeando comigo no automóvel e estava parado num farol vermelho: "Cara, por que tu só escreves acerca de episódios que te aconteceram quando já eras formado? Por que nunca falaste do tempo em que foste carteiro?" No exato momento em que me preparava para responder a mim mesmo deparei com várias pessoas a me fitarem com ar assustado. Imediatamente, passei a batucar no volante e ensaiei murmurar uma canção. Mas não saía nada da minha boca a não ser um ram, ram, ram sem nenhum ritmo, harmonia ou melodia. Pois a emenda foi muito pior do que o soneto, porque despertou ainda mais a atenção dos curiosos. Ainda bem que a luz do sinal mudou para o verde. Então engrenei uma primeira marcha e aí, sim, saí cantando, ou melhor, o automóvel saiu a cantar mesmo os pneus.

Fiquei a comentar sobre a perplexidade dos transeuntes e as conversas que certamente travaram entre si: "Neste mundo aparece cada tipo de gente! Onde já se viu alguém conversar sozinho? Deve 'ser' louco ou 'estar' bêbado!" Vejam bem a diferença entre os dois verbos. Esta nossa língua serve até para se perpetrar discriminações de ordem pessoal. Se tivessem falado em inglês seria "to be crazy" ou "to be drunk". Em português, não. O cara ou é louco, ou está bêbado. Que eu me lembre (ou que saiba) já estive bêbado, contudo, jamais fui louco. Todavia, conheço pessoas que são loucas e são bêbadas ao mesmo tempo, porque nunca deixam de estar nem uma coisa nem outra. Mas, nada disto talvez tenha acontecido. Nem sei se alguém falou alguma coisa. Esta conversa eu só travei comigo mesmo, como já declarei. Será que estou... Nada! Deixa pra lá. Já enchi minha lingüicinha e vou parar por aqui, do contrário vocês mesmos vão pensar que eu sou e estou.

Mas a pergunta ainda estava no ar: "Por que tu nunca falaste sobre o tempo em que foste carteiro?" "Pois te cala que agora vou falar". A princípio não se tinha descanso semanal. Trabalhava-se de Domingo a Domingo. Depois de um certo tempo alguém criou uma "folga". Domingo sim, Domingo, não. Contanto que no dia em que não fosse o da folga se trabalhasse dobrado! Se alguém duvidar disto é só conferir no arquivo morto do antigo Departamento dos Correios e Telégrafos. Se acaso preservaram tudo - o que acho muito difícil, pois neste país não se preservam nem os documentos mais importantes -, decerto estarão lá: livros de ponto, recibos e tudo mais. Existem também os ex-colegas que ainda estão vivos. Todos poderão corroborar o que acabo de declarar.

Num Domingo de 1964 - um dos tais em que tinha de trabalhar dobrado - estive estudando durante toda a noite anterior com outro colega, pois me preparava para o vestibular. O molho de telegramas que recebi às sete da manhã teve de ser acondicionado numa sacola porque não cabia em minhas mãos. Das sete horas ao meio dia, sol inclemente. A partir daí, chuva em torrente. Ainda havia metade do "entulho" por entregar quando um automóvel me salpicou todo de lama. Como a desgraça nunca anda sozinha, neste mesmo instante se descolou o solado da minha botina direita. Era uma destas botinas fornecidas pela própria repartição e confeccionada de propósito para construir uma rima: ganhar dinheiro com a miséria do carteiro. Solado colado com saliva, palmilha de papel, couro de mosca. O que vocês fariam, hem? Pois foi exatamente isto mesmo o que fiz, ou melhor, planejei fazer: amputar o trambolho que fazia lepo, lepo, lepo enquanto eu tentava andar. Sentei na beirada da calçada da casa de uma destinatária. "Minha senhora, por favor, me empreste uma tesoura!" A sacana se riu muito e respondeu. "Não tenho tesoura, um facão não resolveria?" "Claro. Traga-o!" Ignoro para que ela queria aquilo. A lâmina era mais cega do que o Jorge Luis Borges sem o desempenho deste. Amolei aquela lança medieval num fio de pedra e depois de muita luta consegui arrancar fora a sola do borzeguim. Terminei o meu trabalho às cinco da tarde. Com o pé esquerdo meio calçado e o direito descalço.