DESAGUADOS
Beto Muniz
 
 

Morreu afogado lá no córrego o filho de uma madame. No dia seguinte foi uma lamentação bonita de ser ver e cheirosa de se sentir no cemitério. Mas cortava o coração ver o tanto de lágrimas descendo pelo rosto da madame, que nessa hora nem parecia madame, era igual qualquer mãe do mundo perdendo filho. Passou mais dois dias e eram tantas flores murchas e empestiando as redondezas com o fedor de pétalas podres, que os vizinhos do cemitério foram reclamar com o prefeito. Não sabiam que era tio do falecido. Se não sabiam também não ficaram sabendo, porque ele podia ser parente, só que era bom servidor e mandou jogar tudo numa vala e aterrar com a patola municipal. Os moleques mirradinhos pararam a farra no córrego e ficaram vendo os caminhões chegarem carregados de flores mortas, descarregarem nas valas e a patola jogou terra por cima enterrando as pétalas como se elas fossem defuntos. Alguma coisa deu errado, dizem que foi chorume das flores enterradas que contaminou as águas. Primeiro veio a cerca impedindo os moleques de entrarem no córrego, mas moleque de periferia não respeita cerca e então construíram um muro alto com concreto e ferro. Logo na seqüência proibiram todos os poços nos quintais e instituíram um imposto absurdo para quem quisesse manter seus poços particulares, de maneira que era mais vantajoso concretar o buraco e o quintal inteiro que pagar ao governo.

Quando não havia um só poço particular na cidade, construíram uma barragem no rio, cercaram as águas impedindo ela de chegar até o povo e finalmente começaram a vender baldes de água a preço de ouro. Os comércios da cidade receberam uma quota de água para continuarem a manter seus negócios normalmente. O povo não, este não tinha cota alguma e cada balde tinha um custo. Quem não tinha vintém, pedia goles de água aos vizinhos para aplacar a sede e só tomava banho quando chovia. Estes terminaram por serem afastados dos que podiam pagar pela água consumida e ninguém mais os viu. Nem se deram ao trabalho de reclamar o sumiço dos pidões, pois era um despropósito atender campainha todo dia, às vezes mais de uma vez ao dia, e fornecer uma caneca de água a contra gosto mas atendendo ao dever cristão de não negar o básico aos menos desfavorecidos. Fosse como fosse, a melhor coisa era não ter esse tipo de gente batendo na porta. E ficou assim. Acontece que o preço da água foi subindo e logo cada caneca custava o preço que antes se podia pagar pelo balde cheio, então o jeito foi inventar meios de aparar o que se podia das chuvas. As autoridades já estavam acostumadas a ganhar rios de dinheiro controlando o rio e acharam por bem dar um jeito nesses contraventores que estavam preferindo água dos céus que aquela fornecida pelo governo. Começaram prendendo um e outro, mas logo a cadeia estava cheia de gente e a cidade vazia. Os serviços na cidade ficaram prejudicados, forçando o prefeito inventar uma lei para soltar todos desde que se comprometessem a não mais aparar água da chuva sob pena de ficar preso e ser liberado apenas para trabalhar de graça para o governo. Como não era vantagem alguma para o povo trabalhar sem receber, todo mundo preferiu se contentar em consumir apenas o que o dinheiro dos salários podia pagar de água.

Muitos comércios em dificuldades pagavam seus funcionários em litros d'água e estes consumiam ou revendiam, o governo deveria fazer vistas grossas para esse tipo de comércio informal, já que dependia dos comerciantes para distribuir a água e não convinha arrumar encrenca com quem era aliado. Mais a mais, era um percentual pequeno de água que transitava no mercado negro, no entanto todo governo é burro e logo as autoridades fizeram um concurso público e contrataram dezenas de fiscais para controlar todas as transações envolvendo água na cidade. E para prevenir que ninguém aparasse água de chuva, chamaram os cientistas do município vizinho que cobraram uma fortuna para guardachuvar todo o céu da cidade. No início o povo achou estranho aquela abóbada cinzenta tapando o azul celeste, e se era estranha era também uma obra magnífica que justificava o povaréu andando pelas ruas olhando para cima, com isso tropeçavam uns nos outros e desperdiçavam muita água nos tombos, visto que todo mundo se ia ou se vinha em função de buscar ou levar água de um lugar para o outro. As autoridades aproveitaram para aumentar o preço da água, no entanto, em seguida começou um período maior que o normal de seca e o nível de água na represa foi baixando. Isso preocupou tanto os governantes que logo instituíram outra lei - a cidade vivia mudando de leis e acrescentando outras de acordo com as necessidades líquido-aquosa das autoridades instituídas, e proibiram os munícipes de olhar para cima.

No começo os fiscais tiveram muito trabalho, mas logo o prefeito viu a necessidade e abriu novo concurso para contratar outras centenas de novos fiscais para controlar para onde o povo olhava e tomar o balde de água dos infratores como punição, fosse quem fosse que olhasse para cima. Com isso era um mundareú de gente caminhando pelas ruas olhando para baixo, feito porcos. Era isso ou olhar um na cara do outro e isso ninguém tinha coragem de fazer, porque podia encontrar um antigo amigo necessitado e com sede. Diante do risco de ter que lhe fornecer uma caneca, demorou pouco para ninguém mais se olhar nos olhos, só para baixo. Depois de um tempo as pessoas se conheciam pelos sapatos, e as famílias começaram a usar os mesmos modelos e cores de sapatos para caso se cruzassem na rua poderem parar para uma conversa, uma troca de notícias, saber da saúde... Mas foi só até as autoridades descobrirem esse estratagema e instituírem novas leis obrigando homens e mulheres a usarem o mesmo modelo e cor de calçado.

Então, a julgar pelos sapatos, os pés que se cruzavam pelas ruas podiam ser de famíliar mas também podia ser de um estranho e o melhor era não arriscar de olhar na cara uns dos outros. Terminou que as pessoas só falavam umas com as outras em casa, da porta para dentro. Vez ou outra alguém se esquecia da proibição, ou ficava doido de tanto só olhar para bicos de sapatos, levantava os olhos para aquele guarda-chuvas enorme, cinza, deserto de céu, sol ou estrelas e era castigado na hora, porque o que mais se tinha na cidade era fiscal do governo querendo mostrar serviço e ganhar um balde extra de água no final do mês. Dizem que o último a vir de lá encontrou pelo caminho outras cidades guardachuvadas ou em fase de murar córregos. A moda pegou, está se expandindo e logo chega por aqui.