TERÇA TARDIA
Lucio Valentim
 
 

“Para que nada nos separe
que nos una nada.”
(Neruda)

...hoje seria um dia em que fatalmente faríamos amor. Mas não rolou. De repente a tarde ficou cinzenta e uma chuva fininha meio neblinada caiu.

Logo veio a noite e então, mais uma vez, algo incruou. E era domingo.

Na segunda, enquanto fazia a barba, notei que havia cabelos brancos. Cabelos brancos. Mas continuei, a averiguar o que poderia haver por detrás de tudo aquilo. Talvez o tempo. Ele o culpado. Foi a resposta adequada para o momento. Mas ponderei, quase de improviso. Seria?, ou apenas mais uma abstração.

Lembro ainda agora da terça tardia em que amamos pela primeira vez. Era verão e a cidade toda fervia. Ela vinha e tudo em volta parecia deserto: ruas carros lojas pessoas; e neste instante de epifania não havia mesmo de fato nem pessoas lojas carros ou ruas: só dava ela.

Digo que não era propriamente uma musa romântica, daquelas cantadas pelo spleen de Paris, e também não se poderia dizer que fosse uma dessas mulheres de ponta, essas totalmente afinadas com o mundo fashion. Mas certamente era uma mulher fin-de-siècle: os cabelos, falsamente em desalinho, deixavam mais enigmático ainda o rosto de falsa-menina-má, que se diz disposta a aproveitar de tudo. Não vou dizer dos seios dos olhos da boca dos braços dos pés nem da bunda. Não vou dizer da fala do cheiro: inenarráveis. Aliás não direi dela nada. Cadela. Danada. Cadê?

Primeiro foi o sorvete depois do cinema, a longa conversa e o encanto conforme convém a qualquer sedução. Nesse dia ela me disse de desertos desejos, e medos. Embora tudo nela parecesse espontâneo, não era exatamente dessas do tipo prèt-a-porter, ao contrário – ainda que sua história fosse pura ficção.

Na verdade inventava um passado que de algum modo desse sustento para toda a sua piração. Disse que foi de miss a hippie e, mesmo sabendo a princípio o exato significado do termo alienação, optou pelo desbunde: arembepe budismos woodstock e búzios. Foi um pouco no fundo de tudo – diz –, mas voltara.

Depois do sorvete, estávamos na grama e foi quando então pela primeira vez ela pegou-me nas mãos: i wanna hold your hand, dizia brincando. É claro que aproveitei o ensejo para enfeitar-lhe os cabelos com punhados de flores e ervas daninhas. Mão dadas, olhávamos nos olhos, alucinogenamente. Lembro de que agora andávamos no campo, numa cena antiga e banal. Embora não falássemos, posto que o sol estivesse a pino, tudo era sim – embora também o suor exposto no rosto pudesse supor o contrário.

Mais tarde o dorso o físico a pele pela primeira vez.

Pitonisa, sentenciou orgasmos múltiplos, só prá variar. Era assim, dizia: sexo tântrico aprendido em intermináveis retiros espirituais, em Paris.

Não digo do ato: dez!

Vagaba. Vadia. Que dizia que sexo é força louca, centrípeta e centrífuga, que une para depois separar, cadê?

Depois, não se sabe como, passávamos de Sócrates a Platão, sei lá, talvez um Nietzsche. Ela insistia em admitir que jamais decifrara muito bem o tal mito das cavernas; talvez mesmo tenha passado batida por um punhado de mitos intermináveis: a psicanálise a metafísica a ética a política a religião a patafísica. Quem sabe Sócrates?, repetia. Tudo uma grande interrogação. O mundo, uma só pergunta, dizia aos berros, e ria de um sorriso abismal e materno.

Malvada, fez que já partia quando atirei-me a seus pés (claro, tipo brincadeirinha, fazendo cena) dizendo eu te amo eu te amo etc., justo no momento em que, concentrada, conjecturava acerca do amor em Platão. Mil Perdões.

Depois, já conhecedora de seu todo poder e de minha total impotência no ramo, dizia que ficava, só um pouquinho. Demorou.

Mais tarde me abraçava como se a um filho, sussurrando sempre algo em meus ouvidos: só o amor volta para perdoar, dizia. É claro que, na seqüência, o enlace o cheiro o corpo. Como na primeira vez.

Na quarta, não recordo mais o que fizera, tampouco qual fora a desculpa. Só lembro de que na quinta disse que viera para ficar. Ficou. O tempo: a grande abstração...

Seria hoje um dia em que fatalmente faríamos amor. Mas de repente a tarde ficou cinzenta. Algo incruou.

E era Domingo.