PONTE SOBRE ALMADOVAR
Luísa Ataíde
 
 

“Às vezes vejo as fotografias impressas na parede da casa. Foto em preto e branco sem foco, feito neblina de inverno."
- do Conto ainda em gestação “Entre a luz e a sombra.”.


Apertou com força o botão do elevador. Décimo quinto andar? Optou mais que depressa pela escada. Quinze minutos apenas a separavam do retorno ao carro. Localizar o CD, baixar Download, um chuveiro rápido, pegar as anotações, desligar o computador. Chegou ofegante ao último degrau. Passos rápidos à porta, rodou a maçaneta e esticou os dedos ao interruptor. Não fez-se luz. No centro da Rosa dos Ventos, em asana sobre a montanha , equilibrava-se em uma das pernas a ave Arqueopterix . As asas estendidas ensaiavam lentamente o movimento. Do bico escorria um líquido escuro e os olhos cor de guaraná tentavam trazê-la ao imã da partida. A mulher fechou vagarosamente a porta atrás de si. O coração reiniciou o cansaço da subida. Olhou as vidraças abertas, as folhas como casca de árvores se espalhando pela casa.

Sob a asa esquerda estava o menino. Cabelos cacheados quase ruivos, o sono dos justos. Sob a outra asa, outros dois brincavam no ninho de penas coloridas. Sobre o dorso dinossáurico uma mulher costurava. Imersa da tarefa, nada via. Tentou buscar os olhos da mulher num contato quase telepático. Um simples olhar poderia salvá-los. Por breve instante a mulher deitou ao lado a costura e levantou do colo o livro. Absorveu-se mais ainda no texto e não olhou ao redor.

A ave sustentava o olhar enigmático. Limpou o bico no chão da sala duas vezes. Retomou a altivez da partida. Pensou em gritar à mulher que agora lia :

_ Você, por favor, pegue os meninos e desça!

A mulher sorriu calmamente:

_ O vento? Não se preocupe, é pouco.

Deu alguns passos até as portas de vidro que conduziam à varanda, na tentativa de fechá-las. A imensa ave lançou o grasno rouco na direção do teto e balançou, agora com força, as asas. Curvou o corpo para esquerda e arremessou-se em direção à tarde que sangrava luz. O barulho dos vidros estilhaçando-se no chão da sala estremeceu-lhe os tímpanos. A mulher sobre o dorso do animal, dobrou a página do livro.

Sobre a rosa dos ventos apenas o vermelho óxido das folhas e vidros como diamantes finos. Da parede nasciam lentamente as vibrações da música. As notas ásperas, o avesso da harmonia. Iniciou-se A grande Fuga, Ludwig Van Bethoven.