DOMÍNIO QUÂNTICO
Eduardo Prearo
 
 

Quando Felipe deu-se conta de que não conseguiria terminar a faculdade, um outro Felipe, o qual chamarei de Felipe x, sabia que em pouco tempo estaria com o diploma na mão. Felipe x provavelmente pertencia a uma realidade virtual, ou seja, ao domínio quântico. Felipe continua sobrevivendo de sub-empregos, coexistindo com as frustrações. Um astrólogo recomendou que ele viajasse sempre, pois Felipe tem o sol sem aspectos, levando-me a crer que aprontou muito em outras vidas.

Hoje foi domingo de Sol, Felipe esqueceu-se de ir à missa, estava preguiçoso. Na sexta, esqueceu-se também, mas não de ir à missa porque não vai à missa na sexta, mas de uma série de outras coisas, menos de si próprio. Agora, já noite, está deitado, lendo. Deita a cabeça sobre três travesseiros porque tem refluxo. Por vezes tem essa sensação de que algo está difícil de engolir, algo como a vida que leva ou então o desprezo alheio ou então a sua pobreza cristalizada. Se o pusessem à vendagem valeria mais do que um centavo? Não sabe, não aceita o que lhe deixa faceiro, e mesmo se aceitasse ninguém o deixaria feliz.

Houve um tempo em que Felipe quis ser cantor. Um homem estava contratando cantores e na entrevista pediu-lhe para decorar a música Sacriface para a próxima semana, acrescentando: isso caso você não morra até lá. Brincadeira ou não, Felipe sentiu-se mal. Na música há muita competição, pois a profissão de músico ou de cantor é muito desejada, pensou na época. De qualquer forma, resolveu fazer um passeio pelos corais da cidade. Tentou também ser um escritor, mas não tinha talento. Enfim, a genética dele não dava para artista, para nada. Talvez Felipe seja uma dessas almas que pensam ter sensibilidade mas na verdade não têm, nenhuma.

Para a maioria é difícil haver beleza que sobrepuje a calvíce, mas há, eu sei que há. Felipe é um calvo que ainda quer tem um cabelão. Hoje em dia, alguns homens calvos passam máquina zero na cabeça. Uns ficam um charme, outros não. Sem a calvíce, ou seja, com cabelo, o drama desses homens seria outro. Com o esteriótipo viril, o drama de um homem de aspecto feminino, com trejeitos, também seria outro: ele teria mais paz e não se denegriria tanto no espelho; e também dezenas de mulheres estariam dia e noite atrás dele para uma noite de amor e pseudobibas belíssimas fariam fila para vê-lo um pouco mais de perto.

A maioria das pessoas considera a amizade algo fundamental. Felipe por vezes mostra o que escreve aos pouquíssimos amigos que tem. Escreve mal e não tem justificativas para o seu ato de escrever. Tem é vergonha de tudo o que faz, e a rotina o cansa. Deitado na cama, pára de repente de ler e pensa em bater uma punheta, mas quer se enganar achando que punheta não envolve o pensamento, é algo mecânico. Gozar sem a mínima fantasia será sanidade? Porra, será que não percebe que é o imoral da história, que tem culpa sim, e muita, por estar na situação em que está? Vá, vá, vá se embriagar e aborde alguem na rua. Você já não tem desejo por nada, meu amigo. Por que não faz sexo com melancia?

Daqui a algumas horas será segunda-feira, e essas horas que faltam para esse primeiro dia da semana causam-lhe angústia. Felipe não quer ser mais Felipe e pensa em Felipe x. Não quer mais ser o senhor daqui, o senhor dali. Ele e o que escreve não prestam.

Enquanto isso, em uma realidade talvez virtual, Felipe x frita um ovo dando beijos em Mildred, que também é jornalista como ele. Eles eram da mesma turma da faculdade, e hoje, vinte anos após a formatura, namoram. O ovo frito fica sobre a pia, esfriando, e o casal vai para o sofá, conversar...

-- Não sei, por vezes sinto que deve existir um outro Felipe vivendo em outra realidade, talvez virtual; um Felipe frustrado, que não deu certo, uma espécie de Peter Panzinho risível.

-- Realidade virtual? Você mexe com essas coisas, Felipe?

-- Pára de me pôr medo, Mildred. Parece que é moda hoje em dia as pessoas deixarem as outras inseguras.

-- Calma, meu amor, melodize suas palavras. Você que me parece frustrado, arrependido de ter feito a facul. Não existe realidade virtual, e além do mais, todos os caminhos são bons.

-- É verdade, devo estar ficando louco. Por que não vamos até o shopping?

-- Não sem antes nos beijarmos longamente.

fim