A TERCEIRA HISTÓRIA
Ricardo Lahud
 
 

Haroldo escolhe um ponto sombrio na biblioteca para não ser incomodado, mas a tranqüilidade da leitura dura pouco até Hélio que vir até ele.

"Tá lendo o quê? Clarice Lispector? O que é isso Haroldo, enfrescalhou? Virou metrossexual?".

"Psiu, Hélio. Fala baixo. É um texto sobre baratas".

"Sobre como tratar bem ou sobre como se livrar delas?".

"O segundo caso".

"Porra, mano. Isso é traição".

"Fala baixo, cara. Tô só lendo."

"Sei. E tem uma barata em especial que você gostaria de, digamos, tratar?".

"E como".

"Dona Candinha".

"É uma fêmea insuportável, Hélio. Passa o dia cantando aquela musiquinha chata Quem quer casar com Dona Baratinha, que tem fita no cabelo e moeda na caixinha?"

"Pare de se queixar de baratas. Deixa a pobre cantar."

"Pobre? De pobre ela não tem nada. E ela não canta, ela guincha, e sempre no meu ouvido bom."

"É verdade o que dizem por aí? Que ela tem açúcar guardado?"

Há duas semanas, no auge da grande fome provocada pela dedetetização que levou boa parte da família, Haroldo foi conferir os boatos. Batendo as antenas eretas uma contra a outra para produzir um som ameaçador como um jovem macho alfa blatário foi recebido por uma barata bem alimentada, quase duas vezes maior do que ele, exalando periplanona por todo o abdomen. Fraco demais para resistir ao chamado sexual, fertilizou oitocentos ovos de Candinha. Era um episódio do qual Haroldo não gosta de se recordar e se recusa a comentar com qualquer um. Lembrar da famosa fita no cabelo que é, na verdade, uma enorme mancha senil, do toque das antenas flácidas e sem brilho e ainda descobrir que Candinha é coxa da sinistra pata traseira. Passado o nojo do coito no qual o macho quase faleceu por ter colocado todo seu Ch'i no ato, ele tentou investigar por comida, mas foi tocado para longe pela grande fêmea sem um grão de açúcar ou um grama de farinha para recuperar as forças. E o pior é que soube ontem que os boatos são verdadeiros, alguns de seus filhos vieram lhe contar que até chocolate Candinha esconde num baú.

"Não sei, mas você sabe onde a gente pode conseguir gesso em pó?"

"Em Leibritz eu sabia, mas aqui na Polinésia nunca vi."