MAIS UM TRABALHADOR
Bruno Pessa
 
 
Que maravilha não ser violentado pelo despertador! Abro os olhos como os fechei: pensando nela e feliz por ser um dia a menos que nos separa. Acordei disposto para aproveitar o tempo que restava antes do trabalho com as coisas a fazer anotadas no porta-recados da escrivaninha. Não escrevo esses lembretes só por lazer ou obrigação; creio que a memória deve ser visualmente estimulada. E se a manhã for de sol, fico mais disposto ainda.

O café da manhã não tem café, mas é na cama, de frente pra TV. Depois vem o banho, pois se eu tomar de madrugada, quando chego do trabalho, o risco de se resfriar é grande. Antes de sair, fecho o saquinho de lixo cheio e o coloco no latão do corredor, senão ele passa dias e dias em casa. Saio, vou combinar a faxina do apê com a mulher do zelador. Somos quatro no mesmo teto, mas tacitamente eu assumo sempre a tarefa. Não ligo, pelo contrário, pois uma limpeza freqüente é sempre conveniente, pelo menos na minha ótica, já que o tema não é consensual entre nós.

Tão básico como tirar dinheiro é passar no correio ou depositar uma carta social numa das tantas caixas de coleta nas calçadas. A carta social é de pessoa pra pessoa e custa 1 centavo há muitos anos, acredite. Fazer compras sozinho e a pé é um dos mais completos exercícios físicos: você anda na ida, roda lá dentro do supermercado e anda novamente na volta, carregando sacolas que testam a resistência dos braços e mãos.

Não gosto de me demorar muito entre as gôndolas, nem permito que a tentação consumista se manifeste. Na hora de pagar, em lembro saudoso da época de universitário, quando uma compra semanal de cerca de dez itens não ultrapassava 20 reais. Aliás, quem vê meu carrinho deve achar que não sou nada mais do que um estudante de república, um pouco mais saudável e menos alcoólico do que os convencionais.

Deixo as compras na cozinha e esquento o que sobrou do marmitex de ontem. Enquanto como, ligo a TV no jornal ou no esporte e o computador também, pra ver e-mails e notícias. Na volta à cozinha, preparo o lanche que vou levar, além da maçã, da banana, da barra de cereais e da Club Social (isso é que é invenção boa, bolachinha salgada na medida pra você transportar na bolsa!).

Umas dez pras três tô indo pegar o trem, pra poder chegar ao trampo por volta das quatro. Primeiro é o trem “caribenho”: abarrotado, gente humilde, crianças, sacolas, calor e lentidão – tanto pra passar na estação como pra se mover entre uma e outra. E sempre pintam os vendedores de badulaques e os pedintes, geralmente cegos ou desempregados. Quem os persegue são os agentes de segurança, os “urubus”, mas eles entram mais no trem “espanhol”, que por sua vez tem menos “infratores”. Esse outro vai menos cheio, com pessoas de melhores roupas e ar condicionado. Só porque percorre a marginal, onde estão grandes edifícios empresariais. Um absurdo!

Mais contraditório ainda, depois de ver favelas e outras submoradias sub-humanas, é a região onde desço do trem e fica meu trabalho: majoritariamente carros importados, lojas e restaurantes caríssimos e pessoas que vieram ao mundo para dar ordens e passear. Claro que o jornalista dentro de mim fica puto! Mas pô, quem num queria um vidão feito de viagens, curtições e desobrigações? Trabalho enobrece uma ova!, penso eu já perto de chegar ao meu. Ainda bem que eu vivo no mundo dos esportes, donde não saio nem quando tô de folga. Mesmo assim não parei de estudar, um pouco porque é legal mas principalmente porque o dia de amanhã, vai saber né...?

Falando em amanhã, só nos primeiros minutos do dia seguinte eu tô livre do trampo, ou seja, depois da meia-noite. Cansado, claro, mas satisfeito: amanhã dá pra dormir de novo! E amanhã vou voltar a correr, pra pegar ritmo pro dia 31 do 12, que preciso passar correndo!A firma me paga o táxi pra retornar pro apê, dado o adiantado da hora. De dentro dele, vejo o povo nos restaurantes chiquérrimos, dando risada porque não sabem o que é ficar em pé num trem lotado. Fico pensando: “Poxa, eles têm dinheiro, mas a minha vida é muito mais rica, eu sei o que é dar duro!”. Mas que deve ser bom vir ao mundo a passeio, ah, deve!