FABRÍCIO
Moreno Aguilar
 
 

- Fabrício!

Assim que ouvi este nome, um tremor percorreu o meu corpo. Falaram como se fosse para mim, como se estivessem me chamando. Uma certa urgência na expressão. Mas mesmo assim continuei andando. Não era o meu nome, não conhecia nenhum Fabrício, nada tinha a ver comigo. O chamado continuou presente e vivo dentro de mim, vibrando, trazendo-me até uma dose de culpa por não atendê-lo e nem ao menos ter verificado o seu autor, quem me chamava pelo nome errado. Continuei a andar sem ao menos voltar o rosto. Uma estranha sensação de que, a cada passo, mais me distanciava de algo muito importante... “Devia ter olhado para trás”, era a censura que me fazia. Mas já havia dobrado a esquina e aquele incidente era coisa do passado. Pelo menos era o que eu pensava...

Apertei a campainha três vezes, o código para ser reconhecido pela família. Logo depois ouvi o grito do meu filho caçula, acompanhado de passos corridos e portas abertas com pressa. Era normal. Na agitação infantil dos seus cinco anos, abrir ou fechar portas parecia ser uma enorme perda de tempo, principalmente quando o pai estava chegando do serviço. Se pudesse, passaria por cima delas... Mas tão logo abriu a porta do corredor e no embalo avançava pela garagem, eis que breca de repente, olhando-me assustado. Depois faz uma cara meio sem graça, dá meia volta e, correndo para dentro, grita: “Não é o papai!”. Enquanto eu falava: “Que estória é essa que não é o seu pai?”, percebia um timbre diferente na voz. Como um reflexo, voltei a palma da mão para cima, em busca de minha velha cicatriz, queimadura causada por choque elétrico, aos dois anos de idade. Nada encontrei. Tonteei. Precisei me segurar no portão para não cair.

Foi assim que começou a experiência mais fantástica de minha vida. Estava em um outro corpo! A primeira coisa que tentei fazer foi acordar do que me parecia ser um sonho, um terrível pesadelo. Não consegui. Quando vi a expressão de minha esposa, perguntando-me o que eu desejava, olhando-me como nunca tivesse me visto, mostrando sinais de surpresa e preocupação (surpresa pelos mesmos três toques de campainha, sendo que quem tocava não era, pelo menos aparentemente, o seu marido; preocupação porque percebeu o estado em que me encontrava, quase desmaiando ou prestes a entrar em estado de choque)... Então naquele breve momento, quando foi possível identificar claramente, através do seu olhar, que eu nada mais representava, nada mais era para ela, enfim, que eu não era eu, foi justamente aí que percebi que nada podia fazer... Passou-me pela cabeça falar, com aquela minha voz que eu não reconhecia, dizer algo que provasse ser eu a pessoa que estava em um corpo estranho, como o príncipe encantado que virou sapo... Mas como isso só acontece em contos de fadas, resolvi deixar pra lá. Melhor não perturbá-la. Seria só esperar que cedo ou tarde acordaria. Assim decidi, segurando as palavras que se amontoavam em um grande nó na garganta. Ela, muito humana e sensível como sempre, procurou ajudar o “estranho” seu marido: “Você está bem? Quer um copo d’água?”. Ora essa! Copo d’água... O que consegui fazer foi recusar e dizer que havia me enganado de casa... Essa é boa! Enganado-me de casa...

Fiquei um tempo na esquina. Precisava saber como era o meu corpo, o meu rosto... Minhas mãos certamente eram mais jovens. A altura era a mesma. Apalpei minha nova barriga... Mas onde estava a minha barriga? Não havia nada; liso, como nos meus tempos de adolescente. “Neste ponto eu saí ganhando”, pensei...

Então lembrei-me que no banheiro do barzinho, no outro lado da rua, havia um daqueles espelhos com moldura laranja... Entrei, passei pela mesa de sinuca. Ninguém me reconheceu. Mas como eu queria ser reconhecido se nem mesmo eu me reconhecia?...

A porta do cubículo estava aberta. A luz, em seu interior, apagada. Entrei. Fechei a porta. No escuro completo, a única coisa que via era o interruptor fosforescente. Pelos meus cálculos, devia estar bem na frente do espelho. Coloquei o indicador esquerdo sobre o botão que brilhava. “Suspense bobo!”, pensei. Como pude ter um pensamento desses, no meio de uma situação tão grave? Não, não era um suspense bobo. Tanto é que hesitei, fiquei um bom tempo com o dedo paralisado sobre o interruptor, indeciso se apertava ou não. Pensei em sair sem olhar meu próprio rosto... “Próprio” não seria exatamente o termo... Mas o fato é que poderia sair sem acender a luz, torcendo para que logo eu acordasse ou acabasse a alucinação. Mas eu acho que a curiosidade, no ser humano, é maior que o medo... Não podia deixar de ver minha nova cara. Porém ainda relutava. No entanto alguém lá fora acelerou o processo. Duas batidas secas na porta e uma voz grave perguntando: “Tem alguém aí?”. “Tem sim, já estou saindo”, respondi apressadamente com minha estranha voz. Sim, agora notava que era quase tão grave quanto a que estava do outro lado. Era este o momento. Não podia mais esperar. Respirei fundo e, acho que com um certo tremor, apertei o botão...

“Minha nossa!”, exclamei. Pele morena, cabelo pixaim. “Mas como eu não tinha percebido que eu virei preto?”, pensei. Pensei ou falei? Não me lembro... “Toc-toc-toc-toc”, novas batidas na porta. “Vai logo que eu tô apertado!”. Levantei a manga da camisa e olhei o antebraço. “Acho que não tinha percebido porque estava escuro...”. Olhei novamente o meu novo rosto, agora reparando nos detalhes. “Escuta aqui, quer que eu arrombe essa porta?”. Peguei o espelho com a moldura laranja e enfiei por dentro da camisa. “Um destes daqui não deve custar grande coisa”. Abri a porta e saí. Percebi que todos estavam olhando para mim, mas não olhei para ninguém e fui direto para fora, andando a passos largos pela calçada.

Foi assim que eu descobri que era outra pessoa. Restava agora saber onde essa pessoa morava... “Fabrício! Tá perdido?”. Olhei para o rapaz que me chamava da janela de um carro. Eu não sabia o que falar, o que fazer, estava desnorteado. “Vâmo, cara! Sobe aí, vâmo embora!”. Então reparei que em cima do carro havia uma escada. Na lateral do veículo, um logotipo e nome de uma certa empresa. Provavelmente era o meu serviço e estava diante de um colega de trabalho, foi o que pensei. Entrei. O que eu tinha a perder?

- E aí, Fabrício! Tinha que demorá tanto, só pra comprá cigarro?

- ... (E agora? O que eu falo? Nem sequer eu fumo... E agora?)

- E tinha que vir pra esses canto do bairro? Por que num foi pr’aquela padaria perto de onde a gente tava?

- Lá não tinha...

- O que? (fez uma cara de quem não estava acreditando nem um pouco) Esses cigarro “rompe-peito” que cê usa, se acha em qualqué buteco! Vai dizê que cê num achô aí nesse buteco de onde ocê saiu...

- ... (Então ele me viu saindo... E agora? Eu achei ou não achei o cigarro? O que eu digo?)... Achei, achei sim.

Silêncio. Ansiedade. “E se ele pedir um cigarro? O que eu faço? E se ele perguntar qualquer outra coisa, o que eu falo? Será que ele tá percebendo que eu tenho um espelho aqui em baixo?”

- Qué sabê duma coisa, Fabrício? Cê tá muito estranho...

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Falei que não estava me sentindo bem e pedi ao meu colega para que me deixasse em casa. Deu muita sorte. No caminho, insisti para que ele comprasse água e sal de frutas. Enquanto ele estava na farmácia, escondi o espelho embaixo do banco do carro. Fui levando, fui deduzindo, e quando cheguei no meu novo lar, até que eu consegui me virar mais ou menos bem com a minha nova família... Era tudo novo... Mas, na verdade, eu achava que acordaria a qualquer momento. Assim acabava não dando muita importância às coisas que aconteciam... Era uma sensação estranha...

É lógico que eu continuei com a técnica de fingir-me doente. Assim, depois de um breve primeiro contato com os meus familiares mais íntimos, lá estava eu, isolado em meu quarto. “Uma boa noite de sono e amanhã já estarei bom!”, foi o que disse. Esperava que, ao acordar dessa noite de sono, acordasse também deste fantástico sonho...

Deitei-me e fiquei a olhar para o teto. Naqueles últimos minutos, havia conhecido meus pais e meus três irmãos. Pelo que pude perceber, um deles ainda não havia chegado em casa. Talvez a cama ao lado da minha fosse a sua... Era tudo muito estranho... Ao que parecia, eu tinha uns dezoito anos e vivia numa numerosa família de cinco filhos...

De repente, entrou no quarto um jovem, aparentando ter mais ou menos a minha idade, que foi logo falando: “A mãe disse que você não tá bem... Mas eu acho que tem alguém que vai te deixar bom logo-logo!”. Então ele fez um sinal e uma moça entrou. Loira, olhos verdes. “Fabrício, lembra daquela vez que você tava com dor de barriga e a Ana Paula te curou em três tempos? Só sei que vocês saíram, chegaram tarde, e ninguém mais reclamou de dor de barriga, lembra?”. Fiz que sim com a cabeça, sem tirar os olhos da bela jovem que sorria para mim...

Seguindo a teoria de que estava sonhando, decidi aproveitar a situação. Vivia a vida do tal Fabrício e que culpa eu tinha se ele tinha uma namorada de uma beleza estonteante?

Fomos ao motel. E parecia que o lugar já era bem conhecido do casal. De minha parte, procurava demonstrar que estava acostumado com o local. Mas, para disfarçar, fazia-me ainda um tanto debilitado. Assim poupava-me de situações embaraçosas e, caso fizesse alguma coisa errada, seria perfeitamente perdoável devido ao estado de saúde. Em meio a esta preocupação de bem realizar o papel de Fabrício e não ser descoberto, passou-me pela cabeça que talvez tudo isso fosse desnecessário... A sensação de que tudo era um sonho ganhou ainda mais força e, dessa maneira, que sentido teria em ficar representando um determinado papel? O roteiro do sonho mudaria se eu mandasse o tal Fabrício às favas e fosse eu mesmo?

Ela, ao ver-me fragilizado pela falsa indisposição, cercava-me de cuidados e carinhos... Parece que queria provar a si mesma ser capaz de me reabilitar. “Vamos pra banheira! Deixa comigo que eu dou um jeito nessa sua dor de barriga...”.

Daqui pra frente, pouparei os detalhes porque, ao narrar estas minhas experiências, não tenho a intenção de tornar este relato algo de cunho erótico. Vamos direto ao ponto culminante... Vocês sabem, quando a gente chega lá... Foi justamente neste momento que senti o meu corpo vibrar intensamente! E, no meio desta vibração...

Acordei.

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Estava em um leito de hospital. A primeira coisa que fiz foi identificar qual era o meu corpo. Olhei para a palma da mão. Lá estava ela, a velha cicatriz, minha companheira desde os dois anos de idade. Lembro-me, inclusive, que ela me ajudou, quando ainda era criança e com dificuldades na área da lateralidade, a identificar qual era o lado direito ou esquerdo. Mas isso não vem ao caso... O leitor deve estar se mordendo de curiosidade em saber o que me aconteceu, a explicação (se é que tem) para tudo isso. Pois bem, aqui vai a explicação...

Minha outra mão estava sendo segura pela da minha esposa. Depois dos primeiros instantes cercados de maior emotividade, ela, ao meu apelo por explicações e porque eu dizia que não me lembrava de nada, disse-me:

- Querido, quando você estava quase chegando em casa, voltando do serviço, um cabo de alta tensão despencou do poste. A dona Lourdes viu tudo... – neste ponto, a tal dona Lourdes, faladeira demais como sempre, interrompeu:

- É verdade! Eu estava lá e vi tudinho! Se não fosse eu ter ligado logo para o resgate, vocês teriam morrido... (“Vocês”, estranhei o plural) Aquele fio de eletricidade pulava e chicoteava quando batia no chão! E quanta faísca que saía... Parecia fogos de São João! Desculpe a comparação... Mas graças a Deus que está tudo bem! E olha que o rapaz ali que estava consertando o fio lá no poste tomou um tombo e tanto! Além de tomar um bruta de um choque, caiu do último degrau...

Então comecei a entender o que havia acontecido... Pelas palavras e, principalmente, pelo gesto com a cabeça, justamente quando falava “... E olha que o rapaz ali...”, pude perceber que a outra vítima estava no leito ao lado. “E mesmo assim ele acordou antes que o senhor... É... Gente jovem tem mais resistência”, completou a tagarela. Levantei o corpo e foi então que eu vi...

O rapaz que estava ao meu lado era Fabrício! Ao redor dele, seus pais e irmãos...

Tonteei. Uma vertigem embaralhou a vista. Esfreguei os olhos. Tornei a olhar. Era ainda Fabrício que estava ao meu lado, nada havia mudado. Mas desta vez notei que ele olhava para mim com igual espanto. Teria ele vivido a mesma experiência, só que habitando o meu corpo e vivendo a minha vida? Reparei que os seus olhos mudaram de direção... Agora estavam fixos, na direção de minha esposa... Então, de repente entra no quarto uma bela jovem de cabelos loiros e olhos verdes. Era Ana Paula...

- Eu me lembro, em me lembro muito bem o que aconteceu! – dona Lourdes não parava de falar. O colega do rapaz, que também estava consertando mas que não se machucou nada, esse outro rapaz, quando viu que o fio estava caindo, deu um enorme grito: “Fabrício!”...