ATESTADO
Ricardo Lahud
 
 

Entre mim e eu há uma grande diferença. Eu nunca sonho, já eu jamais lembro dos meus sonhos, mesmo que os tenha no amanhecer de uma insone madrugada, completamente acordado. Talvez porque eu pense que façam parte da realidade que desacredito, não poderia ser um sonho a ser lembrado por mim, que nunca sonho. É como aquele negócio das bailarinas. Das borboletas. Das bailarinas. Das borboletas bailarinas. Eu cortava as cabeças dos insetos alados e guardava numa jarra. Elas ainda viviam um tempão depois de separados cabeças e corpos. Qualquer segundo de vida após uma decapitação é um tempão. A dúvida que fica é se são as borboletas que vivem muito sem as cabeças ou se são as cabeças que sobrevivem livres das borboletas. Ou serão duas vidas diferentes que se iniciam naquele momento cruel. As borboletas a dançar sem responsabilidades e as cabeças a pensar sem vaidades. É como os meninos de rua, que preferem ser meninos de rua a meninos de lar pobre e família problemática. Na rua eles têm liberdade para voar e droga para bailar. Comida, conseguem fácil. Eles só não têm dignidade e futuro. Quanto à dignidade, se evitarem ler Descartes, talvez não reconheçam a falta. E o futuro não passa de um conceito, nunca se sabe quando, bailando numa pedra, uma borboleta te pega, corta fora tua cabeça e joga teu corpo num vidro de maionese para que continue bailando sem cabeça. E isto pode acontecer a qualquer momento. E acontece, acontece muito. Não é como daquela vez que fui ao teatro, eu não queria ir ao teatro, então fui sozinho assistir àquela peça da qual ninguém ouviu falar. Aquela em que um ator dizia alguma coisa e um personagem respondia outra coisa e eles se mexiam tanto, andavam tanto, trocavam tanto de lugar que me perdi de quem era o ator e quem era o personagem e na tontura gritei chega, mas não gritei de verdade porque às vezes eu me esqueço de como é que se grita e aquela foi uma das vezes e nem saí do teatro embora soubesse que a saída era no caminho da seta, mas não saí porque achei que era muito indelicado com o ator que lá no alto batia boca com o personagem tão mal construído que tinha de andar de muletas. Aquela vez foi uma vez só. Pelo menos comigo. Não sei com o outro. Mas estou vagueando, veja este saco de água mal ajambrado e quase posto de pé por um esqueleto nem tão usado quanto maltratado e por um conjunto de músculos nunca fortalecidos, esta triste figura, com a patética calva disfarçada pelo feio penteado, com a barba por fazer, sempre com algo por fazer, com os dentes encavalados e nem sempre escovados, repare que estou descrevendo de memória já que espelho não há na repartição, é nesta carcaça primata que habito e é do alto dela que volto a afirmar à Vossa Senhoria não possuir nenhuma outra prova ou qualquer documento outro que confirme que estou vivo para contrariar o atestado de óbito emitido contra mim e que se meu discurso de viva voz e corpo presente com os pés para baixo não se constituir evidência suficiente para o senhor burocrata, que me esclareça quem morreu. O eu que nunca sonha ou o eu decapitado por borboletas que sorriem o sorriso da prima Regina. Uma viúva deve ser avisada.