DUPLA FACE
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

‘Fujo de mim todos
Os dias’
(Montaigne)

Trazia no nome a marca da bem-aventurança - Victório. Homem elegante. Alto, magro, pele alva e jovem, cabelos loiros. O nariz aquilino lhe dava um ar interrogativo. Herdou da mãe os olhos azuis, remansados e profundos como as tardes de outono. Pessoa de muitos silêncios, suspirava Maria Rosa. Cirurgião plástico, vivia rodeado por belas mulheres a quem magnetizava com seu jeito sereno. Esquivo. Viajou o mundo, leu os clássicos, amava a Filosofia. Versava sobre os mais variados temas, todavia tinha um ar absorto, covil de seus mistérios.

Gostava de estar só, o que decepcionava Maria Rosa, a pretendente. Arredio nas questões íntimas. Era um pensador cuja profundeza desmentia o mundo das futilidades femininas. Sabia ouvir. As mulheres lhe segredavam histórias, tiravam aos poucos os véus do intrincado sexo oposto. Embrenhava-se. Mas elas eram espelhos.

Vivia com a mãe que conservava a beleza da juventude. Apenas os olhos cansados e alguns fios de cabelo branco anunciavam a idade. Cuidava um do outro. O pai morreu quando era menino. Irremediável dano. Foi criado entre as rebuçadas lágrimas da mãe e a proteção exacerbada da estufa de carinho.

Nas madrugadas, quando a casa adormecia, ia cuidadosamente para o quarto. No fundo falso do armário, escondia sua confissão mais obscura. Arrumava a mala com secretos pertences e partia para os arredores da cidade, longe dos olhos curiosos. Sempre o mesmo ritual. Uma rua escura, um pequeno apartamento. Entrava no prédio, olhando para os lados, cuidadoso para não ser visto. Profundamente perturbado. Transfazia-se em uma bela loura de pernas longas, de gestos lentos e andar macio. Delicada, girava a cabeça à caça de olhares masculinos.

Depois, o mesmo bar, pessoas noturnas. Mulheres sozinhas, homens maduros em busca do inesperado. Nunca teve um encontro amoroso, somente exercitava o prazer de se tornar irreconhecível. Feminino.

No Natal, recebeu os amigos, os parentes. Noite familiar, com pessoas esperáveis, presentes previsíveis e muito tédio. Quando ficou só, saiu sorrateiro para o seu habitual passeio. Travestido, foi ao lugar de costume. Trajava um longo vestido negro, com uma fenda na parte lateral, que, ao cruzar as pernas, desnudava parte das coxas. Usava um batom carmim, no mesmo tom das longas unhas postiças. Sentou-se à beira do balcão ovalado que circundava o bar. O garçom, que já conhecia seus hábitos, aproximou-se e serviu a bebida de sempre: - Vodka. Que bom não precisar dizer nada. Olhou em derredor. Os freqüentadores rotineiros, embora mais tristes. Ele ensimesmado, quase sombrio. Os brilhantes olhos azuis, nessa madrugada, eram só desbrilho. Remotas lembranças lhe surrupiavam o presente.

Emergiu quando alguém lhe tocou de leve os ombros. Intimidou-se. Primeira vez que o abordavam naquele ambiente. A dubiedade é encruzilhada sem trégua, ruminou. Entreouviu um chamamento- - Victória! Era como se lhe arrancassem a máscara a fórceps. Dormiu e estaria sonhando? Todavia a voz impostada insistiu: - Victória! Virou-se. Era um homem de pele clara, sorriso irônico, cabelos lisos e negros, curtos, penteados para trás. Terno escuro, gravata da mesma cor, sapatos de cromo alemão.

Desprendeu-se do sonho, atordoado pelo real perfume masculino. Que miséria, estou exposto! Anteviu sua imagem desfeita. Nunca imaginou que algum conhecido testemunhasse sua ousada revelação. Poderia estar no conforto do quarto, protegido dos riscos. Porém ficava ali, impotente no desejo de voltar o tempo. Tentava expulsar a angústia da consciência. Nada. Avariado, elaborava mentalmente mil desculpas. Estaria tudo perdido, sua dignidade manchada? O pavor impedia-o de perceber de imediato quem era o homem. Pela terceira vez, virou – se e viu. Sentiu uma vertigem quando reconheceu Maria Rosa, a preterida.