DIVINO MEU
Doca Ramos Mello
 
 
Na verdade, foi um plano traçado com a astúcia de que só dispõe o político com têmpera de vencedor. Eleito pelo voto bastante popular da malandragem do município, incluindo aí traficantes, bandidos, boas-vidas, prostitutas, estelionatários, trombadinhas e trombadões, cafajestes, desocupados, travestis e assemelhados, Divino das Mercês Araretama, o “Divino Meu”, como era conhecido desde menino, graças à paixão materna e cega, chegou triunfante à Câmara, levando com ele suas parcas letras, a grossa safadeza e demais atributos com os quais se faz um político tupiniquim.

Suas plataformas eram projetos sociais voltados para o baixo-meretrício, freqüentador assíduo que era da zona da cidade, e outras balelas mais envolvendo seu eleitorado. Partido? Ele nem se lembra mais disso, passados dois anos de mandato, porque a vereança lhe subiu totalmente à cabeça – como de resto a síndrome da autoridade política atinge a escassa sanidade cívica dos eleitos – e crê, com absoluta certeza, ter-se elevado à condição de ídolo da Casa, uma vez que decidiu fazer oposição ao Executivo.


Executivo esse, de lascar, também...

Dois anos de oposição ferrada a todo e qualquer projeto do prefeito deram a Divino Meu o posto de defensor único dos oprimidos, já que Narciso Puentes, o prefeito, não permitia a ninguém se opor a seus desmandos – e que desmandos! Enriquecido no poder à custa de coisas que até Deus duvida, a ficha de Puentes cheirava mal a distância e era comentada à boca pequena nas esquinas da cidade. Temido, ordinário, Narciso tinha como passatempo predileto mandar desta para melhor seus opositores, com base em métodos pouco ortodoxos e bastante doloridos. Aparecer com a boca entupida de formigas era quase sempre o final daqueles que ousavam dizer uma única palavra contrária ao prefeito, que não fazia a menor questão de ser respeitado no sentido filosófico da palavra. “Tenham medo de mim”, dizia, alisando o ‘berro’ mantido sempre na cintura.

Façanha do vereador, então?


Não exatamente. Divino Meu era franco atirador, tão desprovido de caráter quanto o próprio prefeito, portanto o que se deu ali não foi realmente oposição. Antes, foi uma identidade de forças para iludir e levar o povo no bico, daí sua manutenção em alta. O jeitão do vereador não passou despercebido por Narciso Puentes, que tratou de chamar Divino Meu no peito e fazê-lo ver que, juntos, poderiam...

...E o vereador deixou de ser oposição para assumir a chefia de gabinete – “a política”, disse um escritor brasileiro, “casa a gente até com morfético”, mas eu diria que os morféticos se atraem...

De início, pareceu a Narciso que não seria difícil trazer Divino Meu para seu lado, mas descuidou-se de observar um detalhe: tal como o próprio prefeito, o vereador tinha seus objetivos particulares, sua técnica, não estava a fim de atirar na vala dos comuns um talento tão duramente exercido. Além disso, também prestava pouquíssimo, era canalha na igual medida da chefia, não daria mole p’ra ninguém.

Então...

Divino Meu instalou sua suruba particular no gabinete – o prefeito já possuía sua própria bacanal, mulher, filhos, genros e noras, amantes, amigos, parceiros de sacanagens, todo mundo instalado em doces e bem pagos cargos, pois o dinheiro do povo é um maná inesgotável. Pode o país estar caindo pelas tabelas, devendo as cuecas e os fundilhos ao mundo, que a grana da gente pobre, piolhenta, miserável, desdentada, analfabeta, doente, infeliz, desesperançada, desempregada, cheia de vermes e sem futuro continua a dar boa vida aos representantes do povo. Ora, os políticos nacionais são gente prática, fiéis adoradores do dito popular que diz: “ farinha pouca, meu pirão primeiro”, e o povo que se esfole...

Sim, Divino Meu se instalou.

E lotou a prefeitura com sua clientela, cuidando especialmente da corte primeira, ou seja, mulher, filhos, genros e noras, amantes, correligionários, parceiros de sinuca e roleta, cabos eleitorais e, eventualmente, algumas prostitutas. “Para alegrar o ambiente”, dizia, palitando os dentes e puxando as calças para cima do umbigo com veemência – quanto refinamento nos gestos!

O prefeito começou a sentir sua autoridade e hegemonia ameaçadas. A prosseguir aquele estado de coisas, não teria como controlar o vereador e isso, sabia ele, resultaria sem dúvida na candidatura do novato ao Executivo, nas próximas eleições. Nunca! Era preciso dar um corte no homem, colocá-lo em seu devido lugar, botar os pingos nos is, ora essa. Anos de luta, roubo, putaria e conchavos não se deitariam por terra assim, diante de um amador iniciante, não mesmo!

E armou p’ro cara!

Quando Divino Meu foi saber da reza, boa parte da missa já tinha rolado ribanceira abaixo, o golpe baixo incluía gravações, filmagens, depoimentos, e Narciso Puentes, magnânimo, deu-lhe duas opções: ou vai, ou racha...

Rachou!

Hoje, Divino ainda é o representante de traficantes, boas-vidas, prostitutas, ladrões, etc. Mas é só um rótulo – o prefeito deu um chapéu no vereador e arrebanhou-lhe o eleitorado. É assim, na política nacional: quem não tem competência não se estabelece. Mas arruma umas boquinhas razoáveis, basta que não faça marola, para evitar chocar-se abertamente contra peixes outros, porque nesse mar, o que mais abunda é piranha...