DECLARAÇÃO
Tieme Mise
 
 

Não era um assunto de vida ou morte mas era aterrorizante pensar na cara de sua mãe e nem por sonho queria pensar na expressão aparvalhada de seu pai com a notícia que iria dar. Podia guardar para si e prosseguir com a farsa. Não queria guardar segredos para a família.

Passou a mão pelos cabelos úmidos e curtos que ainda respigavam com a água retida neles. Nunca os enxugava após o banho. Gostava de sentir os pingos frios escorrendo pelo pescoço manchando de escuro a blusa cinza que realçava seu corpo esguio.

Pensara muito e muito nas noites mal dormidas sobre como iria abordar o assunto e até aquele momento não havia ainda feito um rascunho preliminar. Sairia, como todas as coisas na sua vida, com o seguir o curso. O fluir momentâneo guiaria seus passos.

A hora da reunião familiar se aproximava. Foi para a sala e sentou-se na cadeira mais perto da porta. Se o clima ficasse esquentado demais, poderia sair rapidamente. Seus pais tomaram posição nas cabeceiras da grande mesa de carvalho. O irmão mais velho se sentou no sofá e a irmã menor o acompanhou. A única tia que morava com eles, irmã de seu pai, já nos seus 79 anos, a mais severa de suas tias, também veio para a sala e se alojou na poltrona ao lado do sofá.

Bem, havia chegado a hora. Conteve o tremor de suas mão unindo uma á outra.

- O que eu tenho a dizer poderá causar espanto e até incompreensão, mas é preciso que eu o diga para que a minha relação de sinceridade e ajuda mútua, fraternidade e amor nunca seja abalada. - falou Laíse.

Olhou com impaciência para a porta. Tânia ainda não havia chegado.

- Vou discorrer um pouco sobre o sentimento que todos vocês, de minha família, sempre tiveram para comigo e com todos os que a compõem. Vocês me ensinaram que se ama a pessoa e não o sexo. Aprendi que a sinceridade e a benevolência, o altruísmo e a caridade, a ternura e a compreensão devem nortear as nossas vidas. -

Sentiu alívio quando a porta se abriu e Tânia entrou, sentando-se ao lado da irmã, no sofá.

- O que vou dizer não abala meu laço familiar e nem o amor que sinto por cada um de vocês. Não espero ser totalmente compreendida mas apenas amada pelo que sou já são meus pés que fazem minhas pegadas na areia.

Meu coração foi ocupado pelo amor de uma mulher. – e olhou para Tânia, com suavidade.

O silêncio, na grande sala de estar, se fez maior. O pai nem pestanejava, tentando assimilar o que fora dito. A mãe olhava para toalha de mesa bordada a mão, fixamente. O irmão Ivan mantinha um sorriso de admiração nos lábios. Inês, a sua irmã menor, parecia nem saber do que ela estava falando.

Repentinamente o pai se levantou da cadeira e bradou em tom alterado:

- Isso é uma pouca vergonha. É inadmissível. O que os outros vão dizer da nossa família? Neide, a culpa é toda a sua por não ter sabido educar bem essa menina com valores morais. –

- Que culpa tenho eu? Você foi o maior ausente nesta família. É bem possível que esse distúrbio seja por sua causa. – disse a mãe, com lágrimas nos olhos.

- Que distúrbio o quê, gente? Isso é só uma fase. – disse o irmão com ar ironicamente apaziguador.

Laíse queria sumir dali. Sentia-se como um cão acuado por ter tido um rosnado confiante em presença dos que amava percebendo a ameaça eminente de um chute.

Ouviu-se um barulho suave e a risadinha educada da tia encheu a sala. Todos se voltaram para aquela senhora austera de cabelos brancos e voz mansa, que falava agora, em tom baixo perfeitamente audível.

- Fico surpresa com a hipocrisia na minha própria família. Muito me espanta, Julio, tu, que quando tinhas aquela sirigaita da tua secretária como amante não pensavas em nenhum valor moral e nem no que os outros iriam dizer do teu adultério.

E, Neide, tu aceitaste calada a traição do teu marido, feita por baixo do pano, enquanto debulhavas lágrimas em meu ombro.

Tua filha, corajosa e honestamente, abriu o seu coração e, mesmo temendo a reação de vocês, mostrou a força de seus sentimentos mais secretos. Ela não está pedindo opinião, está comunicando o que lhe vai na alma. Não está pedindo conselhos e sim respeito pela sua escolha. Isso não a deixa maior ou menor do que o que ela é e que jamais vai deixar de ser: a filha de vocês. Não é nenhum distúrbio, nem fase, nem doença, sim uma escolha, que não modifica a pessoa que ela é: a minha querida sobrinha que está feliz! E eu estou feliz por ela. -

Levantou-se com dificuldade e abraçou a sobrinha querida, que molhava sua blusa, de cassa bordada, com lágrimas de emoção. Logo a seguir foi abraçada por Tânia que também chorava. O sobrinho também se levantou e aumentou a força desse abraço, seguido pela irmã mais nova que não entendia muito bem o que havia ocorrido mas que sorria agora com os outros.

Neide ergueu-se. Ainda estava em conflito mas as palavras da cunhada haviam calado fundo em sua alma. Júlio tentou contê-la. Ela se libertou com um movimento firme e timidamente abraçou Tânia e a seguir aumentou a força daquele abraço. Laíse sorriu para a mãe e recebeu um sorriso de aceitação em troca.

Júlio ainda mantinha o olhar de reprovação e foi se retirando, calado.

A mãe olhou para a filha como a dizer: Deixe comigo que eu acalmo a fera.

- Temos pudim de leite. Vamos comemorar. – disse Ivan, trazendo nas mãos a travessa gelada com o mel dourado a escorrer pela superfície gelatinosa do pudim.

Colocou um pouco em cada taça para todos que agora sorriam.

-Viva o amor! - brindou erguendo a taça.