LIVRE ARBÍTRIO
Valéria Nogueira Eik
 
 

Ela caminhava a passos lentos pelos jardins da clínica.

Ainda muito pálida parecia não se dar conta do universo à sua volta.

Sentou-se num banco sob o caramanchão apinhado de flores de maracujás.Era o seu refúgio e seria capaz de ficar horas a fio apenas sentindo o perfume das flores e admirando os detalhes mimosos e multicores.

Fechava os olhos e imaginava estar no céu. Mas Deus virara-lhe as costas. Não lhe dera o direito de morrer.

Não percebeu a aproximação do homem e nem por isso teve qualquer sobressalto quando ele lhe tocou a mão.

- Quer falar sobre o assunto?

Ela continuou olhando para as flores como se não estivesse vendo nem ouvindo.

- Gostaria sinceramente de escutar as suas razões.

Doutor dos loucos, ela definiu mentalmente.

Vestia uma roupa muito branca e suas feições eram ternas. A voz suave era quase um carinho que ao menor descuido derrubaria muralhas de indiferença e silêncio.

Mas ela estava alerta. Não queria conversar. Não queria ser acariciada. Não queria voltar à vida.

- Por que?

Ela levantou-se, arrancou uma única flor da paixão, esmagou-a entre os dedos e em seguida, gentilmente, depositou a flor morta aos pés do doutor. Olhou para ele profundamente e se afastou.

Naquela noite apenas fingiu tomar os remédios.

Ficou acordada escutando os urros dos loucos, os burburinhos da noite e o ruído do próprio sangue arranhando veias e artérias.

Não se lembrava com precisão quando começara a morrer.

Teria sido ao nascer?

O medo da vida era a sua sombra fiel. E mesmo assim caminhara anos e anos fingindo ser alguém.

Mas ela sabia que não poderia enganar-se por mais tempo.Estava morta. Era um zumbi caminhando ao sol. Era um cadáver uivando para a lua.

Queria ser enterrada, apenas enterrada e esquecida para sempre.

Maldito vizinho abelhudo! Encontrara um resto de vida.

E ali estava ela, novamente, olhos pregados nas paredes brancas, sentindo o oxigênio percorrer sua alma vazia.

Ouviu a companheira de quarto mexer-se na cama e gemer, e em seguida debater-se em desespero procurando ar.

Os roncos eram insuportáveis e ela agarrou-se à mulher e gritou e chorou e ofereceu o próprio ar.

Não compreendia o apego por aquela desconhecida.

E quando vislumbrou a quietude da morte gritou ainda mais e derramou a dor enclausurada de uma vida inteira.

Na manhã seguinte deparou-se com o leito vazio.

Arrastou-se até o caramanchão e fechou os olhos para não ver as flores, mas o perfume entrou pelas narinas e se infiltrou alma adentro.

Tentara impedir a morte daquela mulher. Por que?

Vira a desconhecida partir para junto de Deus e levar consigo toda a loucura dos dias e das noites.

E não sabia o que fazer diante dos novos e conturbados pensamentos e nem percebeu a aproximação do doutor.

- Por que tentou impedir que ela morresse?

- Não sei. Ainda não sei. Era uma desconhecida. Ela está livre agora, não é?

- Livre? O que é liberdade?

- Não sei.

- Pense! O que é liberdade?

- Acho que liberdade não é apenas o direito de ir e vir, ou de vir e finalmente partir.

- Então, o que é liberdade?

- Acho que liberdade é ser feliz aqui dentro da alma onde quer que estejamos.

- E o que você pôde concluir sobre essa definição de liberdade?

- Que para onde eu for vou carregar a dor e o medo.

- E por que não se livra da dor e do medo?

- Como posso? Carreguei esta sombra por toda a vida. Ela faz parte de mim. Está costurada aos meus pés e me faz tropeçar e cair.

- Desfaça ponto por ponto.

- Não sei fazer isso. São pontos confusos e cheios de nós.

- Creio que você descobriu coisas importantes. E a mais importante delas é que não quer partir.

Ela colheu uma flor da paixão. Sentiu seu perfume. Teve um estremecimento e por alguns instantes sentiu ímpetos de esmagar a flor e joga-la ao chão.

Respirou profundamente e olhou para o céu.

Aquietou a alma. Aquietou a dor. Aquietou o medo. Aquietou-se.

Colocou a flor nos cabelos e ameaçou um pequeno esboço de sorriso.

O céu podia esperar.