NOTAS SOBRE MEU PRIMEIRO ROMANCE
Zeca São Bernardo
 
 

...eu tentei, eu juro que eu tentei e quem bem me conhece sabe que não sou de poupar esforços. Contudo, ás coisas foram ficando cada vez mais difíceis ou seja, fugiram de mim as palavras e começaram a ocupar o seu lugar as ditas reticências.

No começo, não lhes atribui sentido algum mas, com o tempo dei-me conta da minha perda gradual da vontade de escrever. E, como é fato sabido e indiscutível, sem vontade não há escritor.

Muito mais que a criatividade- uma vez que esta pode ser trabalhada- a vontade é o que estimula o espírito livre em seu caminhar pelas páginas em branco vislumbrando as formas das letras. O resto, já é história.

Tomado pelo ódio- até hoje não sei bem de quem- coloquei os velhos troféus e certificados numa caixa de papelão velha qualquer. Deixando a parede numa quase nudez total, apenas duas prateleiras ociosas lembrariam á alguém que algo ali repousa.

Inércia, sono sem sonho, sonhos sem um sono qualquer vagando pelas retinas de outro alguém. Enfim, livrara-me do peso dos concursos literários e da ansiedade que os mesmos me geravam.

Ah...a liberdade e seu gosto! Fui viver minha nova vida livre e liberto das reticências!

Sim, elas não poderiam mais me alcançar! Uma vez que decretei o falecimento de meu e eu escritor.

Bom, aproveitei esses dias livres e fiz tudo aquilo que habitualmente não fazia ou seja, visitei catedrais só para ver os afrescos, ouvi velhos discos de vinil e limpei a casa quase quatro vezes.

Fui ao cinema, organizei velhos arquivos e liguei para velhos amigos que não gastavam seus centavos e seu tempo me telefonando.

Posto que não havia mais muito o que se fazer dignei a visitar a biblioteca pública. Notem bem, não há aqui nenhum contra-senso ou contraponto, apenas pensei que poderia matar o tempo lendo algum livro.

E, lá fui eu com minha liberdade no horário de sempre visitar a biblioteca. O verão traz sempre suas chuvas, pancadas rápidas nos fins de tarde o que deixa as portas abertas dos espaços tidos públicos sempre cheios e seus interiores mais vazios.

Entre tantos livros, uma vez que a freqüentava assiduamente, encontrei-me cercado pelas estantes de meus autores prediletos e aconteceu! Sim, aconteceu, na mesa comum estava abandonada à própria sorte uma folha de papel em branco. A seu lado descansava uma caneta preta, minha cor tão preferida entre tantas outras.

Vento bendito que bateu a janela naquele momento, seria um sinal? Obra do acaso que com descaso de mim se ria?

Nunca saberei, nunca vou saber e de fato me pergunto se quero resposta para algo nesses dias tão conturbados onde o trabalho de simplesmente sobreviver já abrevia a vida tão, tão breve.

O que importa é estava lá, a folha e que lá estava, também, a caneta. Herança de algum distraído tomador de notas, quem sabe um aluno perdido em sua pesquisa ou aquele vestibulando que com as graças de Deus passará naquela faculdade que tantas vezes eu passei na porta.

Chuva, vento, vazio, folha e caneta, cadeira e sentei-me. Imaginei o que diriam de mim aqueles nobres e distintos cavalheiros e damas que me empestavam razões para viver através de páginas e mais páginas. Que diria-me o mestre, cuja verdade me libertou em Cem anos de Solidão? Que diria-me Umberto, talvez e só talvez cala-se e escreve-se um mero bilhete com o endereço de Baldolino em Alexandria? Que diria-me José? Sim, esse senhor de raciocínio tão ágil e prosa mais que farta.

Nunca saberia! Mas juro que Nitche gritou de alguma prateleira empoeirada: Homem Deus está morto, mas o homem não! Enquanto Mário Puzo gargalhava de minha cara pálida em algum lugar dos Bórgias.

Sim, os livros tem vida própria ou nos remetem a tantos quantos sejam incontáveis os universos distintos em paralelo ao nada! Isso, me basta.

Sob aplausos desconhecidos recolhi tremendo a caneta e imaginei o sorriso de Gabo somado ao cheiro do charuto do muito amado Jorge preenchendo a sala quase deserta.

Aceite o desafio, acabe com as reticências gritou Elias Canett do alto de seu Auto de Fé empoeirado.

Umas poucas linhas, que mal podem fazer- pensei e alguns segundos depois entre não devos de humildade vi nascer umas quantas poucas linhas onde se lia: notas sobre meu primeiro romance, sem reticências!