O DEPRIMENTE DESEQUILÍBRIO DA BAILARINA
Eduardo Prearo
 
 

Insistem na minha falta de cultura e preciso me aquietar, apesar de dizerem também que sou calmo. Fabrício só escreveu isso em seu diário, naquela noite sufocante de novembro, e foi dormir. Quem iria perdoá-lo após tudo o que fizera? Mas ele não fizera nada de mais, apenas cometera pecados que pessoas chiques sabiam disfarçar muito bem, como fumar Mary Jô, etc. Indigno, tudo de ruim na boca de uma população desconhecida e talvez bem-aventurada, pois ele se achava soberbo, estava isolado.A onda agora dizia não ter tempo, mas para quê, para ajudá-lo? O primeiro e último sonho que teve foi com o abismo, que encontrou após ter descido por uma escadaria em formato de espiral. Ali ficou atônito quando viu Martim, que estava lindo vestido de casaco vermelho.

-- Não posso ouvir ruído nenhum. Perdoe-me a falta de sensibilidade. Eu preciso um pouco das suas mãos (que nunca mais vou ter, não é mesmo?), mas você não me vê, não me ouve. Estou confuso, medíocre e miserável. Eu quero correr e correr. "Javé é meu Pastor,nada me faltará; deitar-me faz em campos verdejantes, guia-me mansamente à águas tranqüilas, refrigera minha alma..."1

-- Posso ajudá-lo?

-- O senhor tem tempo? De onde veio? Eu não quero entrar mais em contato com a realidade, o senhor me entende? A lá de cima. Sabe aquele moço ali? Eu o conheço, é Martim.

-- Aquilo é uma estátua de cera, meu senhor, e estátuas de cera não possuem nenhum dos cinco sentidos.

-- Eu posso levá-la?

-- Sim, é claro. Mas ela se derreteria com o calor lá de cima. O fundo deste abismo não é orco como muitos pensam; é gélido, e as vozes ecoam fantasticamente. Qual é sua graça?

-- Como assim, minha graça? Meu nome? Se for meu nome é Fabrício. E qual é o seu?

-- Merlim.

-- A Senhora virá dentro em breve. Ela quer lhe falar uma coisa importante.

-- A Senhora? Mas eu não quero ir para Nínive, eu ainda quero viver.

-- Não chore.

-- Eu choro sim. A noiva descia o rio, descia o rio em uma canoa; ia para o seu casamento, sozinha. Mas de repente, a canoa entrou na correnteza e o imenso véu da noiva começou a adejar. Pronto, parei. Acho essa estória muito engraçada.

A Senhora de súbito entrou em seu traje de bodas, parou defronte de Fabrício e lhe disse:

-- "Ninguém jamais possui coisa alguma, pois tudo é passageiro. Quando uma pessoa passa de corpo para corpo, ela leva apenas a essência dos pensamentos e crenças."2

-- Desculpe, mas não tenho pensado com clareza por causa desses pequenos problemas emocionais. Tenho de ir embora. É pena que eu não tenha intuição nenhuma, senão estaria bem.

-- Não se martirize, Fabrício, você a tem mas não a segue, disse Merlim.

Fabrício acordou por volta do meio-dia e se esqueceu completamente do sonho que teve. Sorumbático, abriu as cortinas para que o Sol entrasse. Depois, abriu a geladeira e ela estava quase vazia. Já sabia o que ia fazer, mas não sabia se aquilo provinha da vontade ou da intuição. Sem muita graça e beleza, quase nulas, ficou contemplando rosas cor-de-rosa artificiais enquanto fumava um cigarro (vício que o igualava a todo mundo que também fumava e...)Por que se desequilibrara? Ou será que o mundo estava em desequilíbrio? Ligou a tv e sintonizou o canal onde havia a dança de uma bailarina. Ela, após alguns minutos bailando, olhou-o de dentro da tv, perdeu o equilíbrio e caiu.

Sinto muito Fabrício.