ANJO INACABADO
Flavio Luengo Gimenez
 
 

Notei algo de sombrio em seu olhar. Ela me dizia coisas que como palavras pouco significavam, ia mais além com o brilho de seus lindos olhos--sempre o que mais me chamou a atenção naquela mulher. Ela sempre tinha um jeito de sorrir com os cantos da boca e com os dentes alvos como contas de um lindo colar de madrepérola, que qualquer um olhava e tudo se perdia em seu redor, só existia seu olhar e seu sorriso comovente.

--Por que, eu pergunto, por qual razão você sorri assim?

--Como assim?

--Transparece felicidade. Traz sua alma à tona!

--Sempre fui assim, meu bem.

--Faz meu dia brilhar!

--Nunca pensei que seria comparada ao sol!

Mas era. Ela se transformava numa linda ave toda vez que eu a via, sempre atarefada com suas esculturas; parava sempre para conversar comigo e tomar um vinho que eu lhe trazia do vilarejo. Desde que eu a vira, fascinado, nada mais existia, só sua presença suave, tudo era a perfeita sagração de sua beleza. Eu viajava de Alhures para Algures, cruzara com ela na praça da cidadezinha. Não pudera mais escapar de sua órbita.

--Encorpado este vinho!

--Trouxe de mais além, para lá do mar que você conhece.

--Sempre misterioso...

--Não é melhor que seja assim?

--Eu prefiro. Alma de artista!

--Aliás...

...E me punha a falar de suas obras de arte, suas esculturas de argila que enchiam a sala, suas mãos ressecadas com o barro. Elogiava o pouco que conhecia. Ela sempre evasiva, me escutava sempre paciente.

-- Calma, não sou nenhuma Camille Claudel. Estou de passagem também, você sabe? Encontrei aqui neste vilarejo no meio do nada, entre as montanhas que você vê ao fundo, a paz que há muito não tinha.

--Eu sei, você já me falou disto. Mas e se você viesse comigo? Seríamos dois vagabundos errantes, você com suas esculturas que seriam logo reconhecidas e eu...

--...Com seu vinho encorpado comprado para além do mar misterioso.

Caíamos na gargalhada. O vinho nos enchia de ânimo, ela parecia carregada de eletricidade, produzia mais e mais peças cheias de formas, estatuetas de mulheres em poses sensuais, bebês no colo de mães, cachorros com seus donos, um soldado com quepe, rifle e mochila... Brotava vida daquele estúdio encravado no meio de qualquer lugar, ao sopé da montanha azul. Ela não sairia dali, mais de uma vez me dissera. Mais de uma noite entre os lençóis ela me prometera que só ficaria comigo uma vez, mas sempre vinha ao hotel e perguntava por mim, e eu acompanhava sua louca jornada ao rio, às margens de onde tirava a matéria prima de seu mundo esculpido. Só aí notava suas mãos formosas, caminhando ao largo do curso de água que gorgolejava em remansos e fluía entre as árvores. Suas mãos eram lisas e seus dedos, afilados...

--Veja esta argila. Este rio é especial, ele sobe e desce e nos dias de chuva inunda as margens. Quando retorna ao seu leito, sobra este barro divino. Sinta este cheiro de mato!

--Para mim, é barro.

--Deus nos fez do barro.

--Que pensa quando esculpe? Isto é, o que passa em sua cabeça quando faz suas estátuas? Alguma coisa vem à sua cabeça?

--Penso que um dia podia fazer como certas divindades, como Palas-Atena e insuflar vida aos meus rebentos... Talvez assim exerça um pouco de minha suprema vontade.

Dizia isto com um brilho nos olhos e com um sorriso tão franco que me desarmava.

--Me acha louca?

--Porque acharia?

--Não sei, eu me acho às vezes.

--Venha comigo, vamos viajar, você esculpe, serei seu agente, seu promotor.

--Não posso!

Ela se desvencilhava de mim. Era a hora de voltar, de refugar um pouco, de parar de pressionar a linda escultora, que já nesta hora me fitava com uma sombra de receio, como se houvesse me ferido profundamente...

--...Simplesmente não posso. Não posso deixar esta argila divina de lado. Não posso abandonar meu rio, não quero deixar meus amigos aqui.

--Eu entendo. Fico pensando...

--Em quê?

--Se realmente pudesse insuflar vida às suas esculturas. Teríamos sérios problemas...

Voltava o sorriso ao seu rosto e íamos de volta carregados de argila que ela punha num vaso, deixando a material secar um pouco para fazê-lo tomar consistência, enquanto girava com suas pernas o torno onde encaixava o barro já mais duro para moldar as próximas entidades que se materializariam ali. Eu me sentava e a deixava em paz enquanto fumava um cigarro, sorvendo uns goles de mais vinho e escrevendo um pouco.

--Você escreve bem.

--Deu para ler meus papéis?

--Ah, adoro ser enxerida.

--Você acha mesmo?

--Gostei de sua descrição da montanha...

“De qualquer lugar que se olhe, de qualquer janela, domina a imagem imponente da montanha que azulada se interpõe entre o céu e as nuvens brancas que correm soltas como um bando de ovelhas brancas, em todos os sentidos, rumo à encosta de mais uma imponente muralha, para se desfazerem em arranjos algodonosos, para grudarem nas copas das árvores longínquas... Quando vem a tempestade, elas nos fitam sisudas e ameaçadoras, enquanto o ronco da trovoada enche os ares e é tempo de os habitantes recolherem as roupas e fecharem com estrépito as janelas, pois ao longe se ouve o rugido dos grossos pingos que anunciam a chegada de mais uma estação chuvosa...”

Desde que a vira na praça, iluminada contra o sol da tarde daquele dia abençoado, o mais que pude fazer fora procurar por ela em todos os cantos, até achar a formosa escultora. Todos a conheciam assim, ela era estrangeira, sim, tinha vindo sozinha, pois é, vive numa casa nos subúrbios da cidade, sim, ela parece ter vindo para ficar, é misteriosa, sempre reclusa junto a tantas estatuetas...

Estranhei não achá-la em seu estúdio naquele dia, as estátuas inacabadas, duas delas lindas imagens de anjos, um deles já perfeito, o outro assim tomando corpo, mas com braços disformes, o que quer que tenha acontecido a fez abandonar às pressas o trabalho. Preocupei-me com os sinais que ela deixara: anjos inacabados.

Fui ao rio e nada de encontrar minha musa. Voltei à cidade e perguntei por ela na praça, voltei ao hotel e ela não me procurara.

--Sabem onde foi a escultora?

--Ah, a moça que vendia estatuetas?

--Sim.

--Ela veio ao bar. Parecia preocupada, pediu um maço de cigarros, uma dose de vinho tinto e partiu.

Para onde fora a mais bela mulher que eu vira em muitos anos?

Os dias se passaram e eu já perdera a esperança. Acho que me evitava, devo ter inibido sua ação criativa, detesto me sentir um fardo. Tonto de beber e sofrer, fui ao meu hotel, fechei a conta e peguei minhas coisas, que nunca foram muitas, duas malas e a velha máquina de escrever com a qual escrevo este singelo conto. A chuva selou nosso desencontro e melancólico, parti num trem que me levaria para Algures, e não foi sem dor no coração que dei uma última olhada para o povoado que se tornava pequeno, já enevoado pela bruma que caía sempre no início da tarde. Acho que ela deve ter me esquecido, mas ainda tenho comigo a escultura de um anjo inacabado, que volta e meia eu sopro na esperança de fazê-lo se erguer nos ares para que procure pela minha artista de sorriso de marfim.