QUASE SEM QUERER
Sharon Ratis
 
 

A lembrança que trago dele comigo, até hoje, é o cheiro de sabonete. Aquele cheiro de banho tomado. Sabe quando você entra no banheiro logo que alguém terminou de tomar banho ? Esse é o cheiro dele. Cada vez que sinto, é como se ele estivesse por perto. Quando não sinto o cheiro também, pois ele sempre me dá a impressão de estar ao meu lado. Se eu esticar a mão... Com o cheiro, sinto-o me abraçando. Como na última vez.

Ouvir e ver são duas coisas definitivas: não há como voltar atrás. Não posso mais vê-lo, é certo, mas posso ouvi-lo. O tempo todo. A linguagem dos anjos é diferente, sabe ? Eles falam direto no seu coração, mas isso não impede que você ouça sua voz penetrando-lhe os ouvidos suavemente. Quase um sussurro.

Quando fecho os olhos, sua imagem me vem, perfeita. Vejo seus cabelos escuros, cacheados, a pele muito branca, suas unhas roídas, a barba, os óculos, os dentes amarelados de nicotina. Sua boca, que nunca beijei, tinha gosto de cigarro. Seu olhar fingindo naturalidade – como se ser um anjo, fosse uma coisa comum, de todo dia. E sinto essa saudade insustentável. Saudade de quem continua aqui. Procuro por ele o tempo todo, em todos os lugares, mas não posso vê-lo ou tocá-lo. Apenas ouvir. E sentir seu cheiro.

Suas mãos estavam frias. Ou era apenas uma noite fria, não sei. Hoje, quando sinto seu toque me secando a lágrima ou a carícia que faz em meus cabelos, procurando me acalmar, não sinto mais esse frio. Ao contrário. Seu toque é morno e aconchegante. Mostra-me que ver não é tão importante quanto sentir. O que vale mesmo é sentir. Como no dia em que perdi uma pessoa muito querida para um desses males modernos. Questionei a Deus por Sua justiça e Sua sabedoria. Cheguei a enumerar outros, não tão bons quanto o amigo perdido e que Deus poderia levar no lugar. Um rapaz tão novo. Dormi encolhida, chorando.

O cheiro de sabonete entrou suavemente em meu quarto escuro e me envolveu. Ouvi seus passos leves se aproximando. Senti seu corpo fazendo peso no colchão quando ele se sentou, ao meu lado. Ainda que não pudesse vê-lo, descansei a cabeça em seu colo. A princípio, ele não disse nada. Sentia meu corpo sacudido pelos soluços e suas mãos etéreas em meus cabelos. Perguntei o porquê. O homem vai à Lua, mas não consegue achar a cura para sua alma. E paga pelos pecados jamais cometidos. Então amar é pecado ? Não. Não é, não! Como compreender a partida precoce do amigo tão querido ? Ele era uma dessas pessoas que são belas e malditas. Foi isso que ele me respondeu. As pessoas belas e malditas sempre vão embora cedo demais. Aconteceu com o rapaz
(“você acreditou mesmo que ele ia ficar bom ?”), aconteceria com ele próprio, em breve, e aconteceria comigo. Uma maldição que as pessoas lúcidas carregam. Têm de partir antes da hora. No auge de seu frescor, lucidez e juventude. Se ficarem, enlouquecerão. Ficarão presas a um único momento do qual não conseguirão se libertar. Melhor não pensar mais nisso.

Só me lembrei dessa conversa quando pensei que ele próprio tinha partido, alguns anos depois. Senti uma solidão abissal. E agora ? Quem é que vai me proteger ? Quem é que vai me consolar, dizendo que já passou, quem sabe outro dia ?. Quem vai me dar a mão, conduzir-me à superfície de minhas emoções e me guiar para casa ? Eu teria de descobrir, sozinha. Ele pediu que eu não chorasse por ele. Não compreendi. Jamais voltaria a compreender alguma coisa.

Não entendi que não precisava chorar porque ele não tinha partido. Tinha ficado invisível aos olhos, apenas. Mas, se eu prestasse atenção, poderia ouvi-lo, sentir seu toque, seu perfume de banho recém tomado. Até mesmo o gosto de cigarro da boca jamais beijada eu poderia sentir.

Foi assim que enlouqueci. Quase sem querer.