A MORTE DE CATARINA
Vilson Palaro Júnior
 
 

Jaú, 28 de setembro de 1996.

Querida Paula

Esta carta é póstuma. Amanhã, quando você a estiver lendo, minha morte será certa. Portanto, eu, Catarina Azevedo, nascida na cidade de Bocaina no dia 28 de novembro de 1941, deixo a você, minha amada filha, estas últimas palavras, em testamento, para que você faça delas o que melhor lhe aprouver.

Hoje, como acontece todas as noites, estava sozinha em casa e depois de comer um pedaço de pão à guisa de jantar, sentei-me no sofá da sala, em frente ao televisor, para esperar que o sono chegasse. Liguei o aparelho e assim que a imagem surgiu, uma grande onça pintada saltou da tela sobre mim, num ataque feroz e fulminante.

Debatendo-me com a fera, recordei que dias atrás você me ligou, contando como as coisas iam mal no seu casamento e de seu desejo de se separar de seu marido. Fiquei muito preocupada, mas, como já tinha marcado uma cirurgia plástica, deixei pra falar contigo depois de estar recuperada. Contudo, o inesperado ataque dessa onça, me impele a que o faça às pressas, enquanto ainda estou lúcida e antes que retorne à morte em vida, ritual desses meus dias. Espero de coração, que a minha história possa te ajudar a resolver os seus conflitos.

A história da minha morte começa no ano de 1955, quando eu tinha 14 anos de idade. Eu vivia na fazenda de meus pais, em Bocaina. Lá, eu conhecia o sabor de cada uma das variadas frutas do pomar, que colhia diretamente do pé, conhecia o frescor das águas do riacho onde me banhava, o cheiro dos lírios do brejo ao cair da tarde, o canto dos pássaros que proliferavam em toda parte, amava a beleza da vegetação das serras por onde andava. Através dos meus cinco sentidos, vivia em harmonia com as pessoas à minha volta, com a natureza, e, principalmente, comigo mesma.

Foi no mês de agosto daquele ano que tive meu primeiro encontro com a morte. Passeava a cavalo pelas serras, no sopé das quais ficava nossa fazenda, quando na boca da mata surgiu uma onça. Meu cavalo se assustou e me derrubou. Mas a onça não me atacou. Ao contrário, um pouco assustada pela reação do cavalo, saiu de mansinho pra dentro da mata.

Eu, entretanto, fiquei dominada pelo medo. Nunca mais tive coragem de sair pela fazenda. Embotei os meus sentidos e me fiz reclusa, de modo a frustrar até mesmo os rituais de benzimentos, novenas, promessas e orações, que dedicaram a mim.

E foi assim que, buscando fugir da morte, que mudei para Jaú. Fui interna em um colégio religioso e concluí meus estudos secundários no ano de 1961, aos 20 anos de idade, e logo me casei com seu pai.

Seu pai era um homem bom, trabalhador, mas metódico, como você sabe. De uma rigidez que não se limitava às exigências de observância de horário para as atividades em família, como refeições, estudos e lazer. Alcançava também a intimidade, mantendo horários para conversar, hora e dia para o sexo, e coisas assim.

A mim cabia ainda os cuidados com sua educação e a de seu irmão, de modo que durante esse período nunca pude ouvir as músicas ou falar com as pessoas de quem gostava, dos assuntos que me agradavam, nunca me foi permitido dirigir automóvel ou sair sozinha, fumar ou usar as roupas que eu gostava. Afinal, eu era uma mulher casada, mãe de dois filhos...

Foi só por ocasião da formatura de seu irmão, no ano de 1985 e na iminência de que ele também deixasse nossa casa, como você já fizera anos antes ao mudar para São Paulo, que eu, vislumbrando a possibilidade de ser despojada de tudo que até então representava a razão de ser de minha vida, me dei conta da presença da morte pela segunda vez.

Nessa ocasião, vivia travestida pelas regras e imposições sociais da minha condição de mãe e mulher casada, e para cuja execução vinha dispondo os meus sentidos como meras ferramentas. De um só golpe eu sofria uma perda e me dava conta de que não tinha construído para mim qualquer condição de vida própria.

Os meus sentidos continuavam embotados e eu reclusa.

Quando seu pai morreu, em 1987, contava apenas 46 anos de idade, ainda era uma mulher bonita e a vaidade que isso gerava em meu espírito permitiu que, incentivada por algumas amigas, me submetesse à primeira de minhas três cirurgias plásticas.

Também por essa época, no ano de 1989, eu resolvi me tornar uma mulher independente e montei minha loja de roupas, aqui em Jaú. Desde então passei a viver freneticamente, entre a administração da loja e as compras na cidade de São Paulo, criando uma rotina que implica em sair de casa por volta das 6:00 horas da manhã e retornar após as 8:00 horas da noite. Meu almoço é feito na própria loja e meu jantar, sempre sozinha, em casa. Depois, assisto um pouco de tevê e sigo para a cama, com a cabeça cheia de planos para o dia seguinte, que recomeça onde terminou o anterior, seguindo assim, numa roda viva, sempre do mesmo modo.

É por isso que hoje, ao me deparar com uma onça, 41anos depois de nosso primeiro encontro, me dei conta de estar novamente de cara com a morte. Dessa vez, porém, consciente de que a morte é um estado em que me acho desde aquele distante dia de agosto, no ano de 1955.

A reportagem dessa onça que acabou por me atacar, exaltava os sentidos apurados do felino: a audição, o olfato, a visão noturna, dos quais ela se vale para sobreviver, como certamente o homem primitivo também devia fazer.

De minha parte, posso lhe dizer que, desde os meus 14 anos, nunca mais contemplei o sol ou a lua, nunca mais senti o vento no meu rosto, a água fresca de um riacho nos meus pés descalços, o aroma da relva úmida quando chove, o perfume das flores no campo. Nunca mais tive tempo de ouvir o cantar de um pássaro, de provar o sabor uma refeição decente, de experimentar uma fruta nova. Continuo a limitar o uso dos meus sentidos; atualmente voltados para um projeto de sucesso baseado numa convenção social que nada tem a ver com a proposta de vida ou de felicidade que pulsam em minha alma.

Percebo o quanto venho me equivocando ao tentar conservar a juventude nas linhas do meu corpo, já exaurido pelas três cirurgias plásticas, como se com isso eu pudesse obstar o curso do tempo, protelar a minha morte, ao encontro da qual eu corro, sepultando meus cinco sentidos na clausura de uma loja ou na frente de um televisor.

Estou morta desde os meus 14 anos e só há pouco tive consciência disso.

Mas não se engane, minha filha! Não foi a onça de Bocaina, naquele distante agosto de 1955, nem aquela da tela do televisor, de há pouco, a causa da minha morte. Hoje, eu vejo com clareza: a onça que roubou meus cinco sentidos e me devora a vida, mora dentro de mim, no fundo da minha alma e não há a menor esperança de que eu sobreviva ao ataque dessa fera, pois conheço a força dos meus hábitos sociais, a fraqueza do meu espírito e sei que eles acabarão por prevalecer, mantendo-me eternamente sua refém. E sei também que quando este lapso de consciência se fechar, meus sentidos voltarão a estar reclusos e eu estarei novamente morta.

Eu a amo minha filha e não gostaria que sua vida fosse uma repetição da minha.

Quando você se casou com o Antonio, no fundo da minha alma, eu intuía sua infelicidade. Ele é filho de fazendeiros decadentes, daqui de Jaú, um homem ao estilo do seu pai e eu sabia que ele iria lhe impor uma vida tão metódica e regida pelos padrões sócio-morais deste lugar provinciano quanto o seu pai impôs a mim. Você sempre viveu em São Paulo e já contava mais de 30 anos de idade ao se casar, de modo que me parecia mesmo difícil vocês darem certo.

Por que não lhe disse nada? Porque eu acreditava nessa fórmula de vida.

É bem verdade, minha filha, a clausura que eu impus aos meus sentidos nunca me permitiu conhecer você a fundo. Eu sei tão pouco de você, minha querida Paula, sobre os conflitos de sua vida e por isso não sei bem o que te aconselhar, senão que você não renuncie os seus sentidos, não os entregue senão aos caminhos que sua alma lhe ditar. Viva-os, deixe que se manifestem sem lhes impor controle, deixe que eles lhe mostrem o sentido da felicidade, da vida.

Amanhã, quando eu acordar e estiver novamente morta, sei que não te direi nada disso. Por isso aproveito este momento de consciência para lhe escrever, que é tudo que eu tenho pra te dar.

Eu já desisti. Mas você, minha filha amada, ainda pode tentar fazer diferente de mim. Pense nisso.

Ah! A propósito: venha me velar quando puder. Os mortos não costumam fazer visitas.

Com todo meu amor.
Sua mãe. Catarina.