BRINCANDO DE RATO
Beto Muniz
 
 

"Antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever o seu"

Houve uma época em que eu sonhava com transformações na ordem social estabelecida e até pretendia influenciar tais mudanças, mas nem imaginava que para entrar em buraco de rato, de rato a gente tem que transar. Era ainda inocente e besta, talvez por isso achei que urinar nas paredes da catedral da Sé seria uma excelente forma de protesto. Não era, mas o equívoco ficou como recordação do inusitado: No ponto zero de São Paulo, eu e o Raulzito urinando lado a lado.

Na rua Direita, quase esquina com a Praça do Patriarca, ainda existe a loja de tecidos onde eu labutei durante três anos. Período fértil, moço em transição para homem, nem percebia que estava armazenando alegrias várias e tristezas memoráveis. Minha função na loja era auxiliar o departamento de expedição. Após tantos anos ainda não descobri que diabos faz um Auxiliar de Expedição, numa loja de tecidos que não tem um departamento de expedição constituído. Talvez fossem as letras miúdas, e entre parênteses, no contrato de trabalho, as culpadas por essa confusão que perdura: "Auxiliar de Expedição com atribuições correlatas". Enfim, eu achava que meu cargo era pomposo! Puro e besta, não me importava se as pompas dessas atribuições correlatas me colocavam em cima da banqueta, no meio da Rua Direita. Com olhos atentos, eu passava as horas fiscalizando bancas de retalhos debruçadas nas portas de entrada do estabelecimento. Vez ou outra uma mão pecadora surrupiava um pedaço de tergal, cambraia, cetim ou seda. Minha tarefa, nessa hora, era apitar e correr atrás da criatura que atentava contra o oitavo mandamento. Uma tarefa nada fácil, pois além dos pés ligeiros do perseguido, a Rua Direita ostentava seu poder de aglutinação: a maior freqüência humana por metro quadrado, bem no coração da cidade. Quase sempre se perdia o pedaço de popeline estampada.

Eu iniciava na função quando o rapaz, quase da minha idade, agarrou um corte de viscose e correu. Sua velocidade em meio ao povaréu era menor que minha determinação em mostrar serviço. Agarrei-o, derrubei-o e recuperei o valioso pedaço de tecido.Aquele retalho era tão valioso, que mesmo em liquidação justificou uma promoção. Passei de prestador de serviços temporário para o efetivo e pomposo Auxiliar de expedição - com atribuições correlatas - por tempo indeterminado. A efetivação no cargo e o primeiro registro em carteira coroaram de glória a minha inocência.

Trinta dias depois conheci o inverno Paulista. Naquela época o frio e a garoa ainda chegavam em meados de junho. Vinham juntos e ficavam até final de agosto judiando dos pobres e acinzentando a paisagem. Estava garoando quando fui assumir meu posto de observação. Ao tentar empoleirar na banqueta, senti o frio penetrar no couro da jaqueta, ultrapassar os tecidos dos agasalhos e chegar nos ossos causando uma sensação mista, não foi possível distinguir de imediato se era dor ou frio. Pouco a pouco os sentidos foram se apurando, a friagem foi se definhando, e a sensação optando por ser apenas dor. O ladrão de viscose me cortou do ombro até o meio das costas com um estilete, em retribuição ao tombo e a humilhação dias atrás. Na semana seguinte venceria a segunda prestação, dum total de doze, da jaqueta de couro que amenizou a profundidade do corte. Vinte e seis pontos cirúrgicos na minha espádua direita e uma reforma na jaqueta. Arquei com o prejuízo e perdi a coroa da inocência.

Durante a cicatrização da ferida trabalhei na área interna. A alma também estava ferida, mas não atrapalhava o desempenho operário das mãos, automáticas, empacotando as compras e entregando aos clientes. E logo já era tempo de esquecer as cicatrizes! Eu estreei nas festas de natal em São Paulo voltando para a banqueta no meio da rua Direita. No primeiro incidente atentando contra o oitavo mandamento de Deus, notei que não apitava com tanta veemência, nem corria com tanto empenho quanto antes. Inconscientemente devo ter sentido um grande alivio por não alcançar nenhum outro pecador, mas temia que meu chefe percebesse a hesitação em cumprir com as funções correlatas. Eu procurava fingir empenho, corria sim, porém, não era tão zeloso com os mandamentos bíblicos e os pedaços de popeline estampado começaram a se perder na multidão. Por ironia, fui promovido a encarregado dos auxiliares de expedição. Em datas específicas a gerência da loja contratava novos auxiliares de expedição, com atribuições correlatas, temporários. Os novatos adoravam mostrar serviço, apitavam com veemência, corriam com destreza e velocidade, voltavam vermelhos, resfolegantes, mãos vazias. Eu fazia sinais solidários de aprovação e compreensão. Eu já sabia que ninguém precisava resgatar nada, só precisávamos fazer parte do teatro, da segurança preventiva, ficar de pé sobre a banqueta vigiando as bancas de retalhos debruçadas sobre as portas de entrada. Quando o gerente geral estava de olho, mesmo não havendo pecador algum por perto, eu apitava fazendo gestos de alerta para os auxiliares. Jamais voltei a correr mais que cinqüenta metros, raramente me empoleirava na banqueta, no final do dia apresentava as estimativas de perdas correlatas.

Numa tarde qualquer da década de 80, eu estava cobrindo horários de almoço, aboletado sobre a banqueta vigiando a ausência de pecadores, quando pelos lados da Praça do Patriarca começou um burburinho. Um mundaréu de gente cantava e atropelava os transeuntes habituais. Fotógrafos estabanados abriam caminho adiante da turba. Eu, que empoleirado no meu posto de trabalho, já tinha passado pelo movimento "Diretas Já", atendi aos apelos do bom senso para sair do caminho antes de ser alcançado pela turba. O mesmo senso me pediu para ficar de prontidão na entrada da loja. Resgatei a banqueta de entre os fotógrafos, finquei meu posto de observação entre as bancas de retalhos e re-aboletei-me. Do alto dos meus um metro e noventa de estatura, mais os noventa centímetros da banqueta, pude ver que todo alvoroço era em torno de uma criatura mirradinha, esquálida, barbuda e sorridente.

A criatura mirrada trazia um violão, preso a tiracolo, usava roupas extravagantes - uma farda de um improvável exército hippie, recém tirada de alguma vitrine. Debaixo da boina, imitando Che Guevara, a cabeleira negra escapava farta. Os óculos escuros e a barba escondiam o rosto do homem, mas eu sabia quem era ele. Eu o conhecia de outras performances, de outras canções, mas nunca imaginara vê-lo tão perto, ao alcance das minhas mãos. Na televisão ele parecia maior, mais forte, mais divino, mais carismático, mais tudo. Inalcançável! De repente ele estava ali, caminhando e cantando na frente da multidão. Atrás dele a balbúrdia era semelhante àquela que conclamava o povo a exigir eleições diretas e já. Fiquei embasbacado, esquecido dos retalhos de viscose, Raul Seixas era a primeira celebridade que eu via tão próxima, poderia tocá-lo se quisesse! Nada fiz de início, apenas fiquei admirando a marcha em direção a praça da Sé. "Como um sujeito esquisito feito esse consegue mobilizar tantos seguidores, tanta gente ao seu redor?" - pensei com meus estranhamentos. Fui tomado por uma curiosidade admirativa (se é que existe essa expressão) e encantado com a procissão resolvi me integrar a ela. Pedi para fazer uma pausa para o cigarro:

- Dez minutos do cigarro?

- É!

- Mas você não fuma! Fuma?

- Não, mas se os outros funcionários que fumam podem, a cada hora e meia, tirar os "dez minutinhos do cigarro", eu também tenho direito a essa folga. Mesmo que não vá fumar.

- Deixa de onda e volte ao trabalho!

- Chefe - o nome dele era Oliveira, eu vou usar meu direito ao intervalo de dez minutos para o cigarro. É questão de direitos iguais para todos, fumantes ou não-fumantes.

- Não tem questão! Você não fuma, portanto não tem direito ao intervalo!

- Pois então eu comecei a fumar agora!

- Você não vai começar a fumar, só para ter uma pausa de dez minutos cada hora e meia... Vai? - o chefe me olhava incrédulo.

- Só depende do senhor.

- Pois faça seu intervalo, com ou sem cigarro, e não me perturbe mais!

Venci mais pela cara de idiota determinado que pela lógica dos argumentos. Mas o que importa é que fui atrás do povo que sumia na esquina da Rua Quintino Bocaiúva.

Com aproximadamente cem metros de extensão, a Rua Direita é a principal ligação do viaduto do Chá com a Praça da Sé. Ou seja, é o menor caminho de ligação do Teatro Municipal com a Catedral metropolitana. O percurso entre um e o outro ponto turístico-arquitetônico não deve ultrapassar os mil metros de extensão, mas é um passeio que começa nas escadarias do Teatro, atravessa o cruzamento com a rua Xavier de Toledo, passa rente com as copas das palmeiras imperiais da Praça Ramos - do outro lado da rua fica o antigo prédio da Eletropaulo, restaurado e transformado em Shopping, atravessa o Vale do Anhangabaú utilizando o charmoso Viaduto do Chá - com direito a visão plena dos primeiros prédios do centro velho, continua depois do Prédio do Banespa - que agora é a prefeitura da cidade e tem uma floresta na cobertura. Chegando na esquina com a rua Líbero Badaró, basta atravessar a rua e entrar na Praça do Patriarca, onde ainda resiste, espremida pelos prédios, a singela Igreja de Santo Antônio. Parando no centro da praça, e dando as costas para o caminho que veio, o caminhante tem duas opções: a rua da Quitanda, à sua esquerda, ou a rua à sua direita, que é por onde a viagem deve prosseguir. Por esta segunda opção, que obviamente tem por nome Rua Direita, o turista segue até chegar no Largo da Misericórdia - este por ser minúsculo é análogo à compaixão humana, e ninguém o reconhece como largo. Passando por ele, sem se desviar para a Rua Quintino Bocaiúva, anda-se mais uns cinqüenta metros e a Praça da Sé invade o campo de visão. O passeio chega ao fim quando a Catedral cresce majestosa no centro dos olhos do viajante hipnotizado, autômato, caminhando em direção às suas escadarias.

Aos pés dessa escadaria Raulzito montou um palco provisório. Eu cheguei quando ele já tirava acordes num violão plugado ao amplificador portátil, que não funcionou no primeiro instante. Depois que os técnicos de plantão mexeram nas válvulas do Sansuy-Gradiente, o som do violão encheu a praça e os fãs entraram em convulsão. Raul cantou, gritou, suou e depois pediu silêncio. Fez um pequeno discurso sobre assuntos que fugiam à minha compreensão - e creio que entendimento da maioria, depois, para delírio dos povaréu aglomerado, voltou a cantar. Entoou duas ou três canções que todos conheciam, pois cantavam juntos, intercaladas com novos, ininteligíveis e inflamados discursos. Eu não sabia a letra de todas as músicas, mas as canções me soaram familiares, cantei as partes que sabia e gritei as que não sabia.

"Para passar a noite na cocheira tem que ter o mesmo cheiro do cavalo pra não incomodar"

Na hora todo tumulto musical qualquer barulho era válido, a julgar pelos urros que um casal emitia ao meu lado. Urrei com eles até cansar. Depois saí de perto das criaturas alucinadas e fui contornando a multidão. Enquanto uma música da qual eu conhecia o refrão era entoada por centenas de vozes, fui guardando expressões capturadas nos rostos daquelas pessoas. Eu podia não compreender toda a extensão dos discursos, no entanto intuía que ali estava reunida a base da tão apregoada sociedade alternativa.

De repente me dei conta da realidade! Eu estava esquecido que o Sr. Oliveira contava comigo para vigiar os retalhos na entrada da loja. Também esqueci que a pausa para o cigarro (sem cigarro) seria de apenas dez minutos. Terminara a pelo menos meia hora! Eu tinha abolido totalmente da memória, preocupações com a última prestação, já vencida, da jaqueta de couro. Naqueles momentos de insensatez, eu só queria limpar a mente, disponibilizar espaço no cérebro para guardar expressões de rostos estranhos e letras das músicas que falavam para que eu fizesse o que quisesse, pois era tudo da lei. O sentimento de euforia era tamanho, que eu nem percebia a bexiga doendo, urgindo a necessidade fisiológica. Não percebia também a noite chegando e o céu escurecendo.

A escuridão arrefeceu o encantamento com a sociedade alternativa e esvaziou o movimento revolucionário liderado pelo Raul, pouco a pouco os presentes foram se tornando ausentes. Quando a multidão se tornou um pequeno grupo de pessoas, a razão estava novamente estabelecida e minha vontade de urinar foi percebida. Diante da reclamação da bexiga o primeiro impulso foi ir para a loja, então lembrei do chefe, Senhor Oliveira! Lembrei da prestação vencida. Considerei o tempo fora da loja e concluí que durante a pausa feita por mim daria para fumar todo estoque da Souza Cruz. A noite escancarou minha parvoíce e devolveu o inocente puro e besta que habitava meu corpo. A realidade foi resgatando as responsabilidades e atribulações comuns do homem em formação. Todas minhas mazelas, em enxurrada, despencavam do meu cérebro e pareciam que escorriam pelo corpo, gerando dores dispersas, para em seguida se concentrarem na bexiga. A necessidade se fez urgente. Não daria tempo de chegar nem na esquina da Rua Direita, quanto mais na loja, no outro extremo! Parte de mim, o eu subversivo, tomou posse da mente eliminando o parvo preso às preocupações com chefe, pausas e prestações. Os sentimentos pretenso-revolucionários novamente se apossaram de mim quando a parede esquerda da Catedral se ofereceu cinza, pura, ideal para aliviar minha opressão. Não pensei duas vezes antes de incorporar o militante revolucionário altaneiro em posição de combate!

Corpo ligeiramente inclinado para frente, pernas abertas, eu liberava o fluxo subversivo quando dois indivíduos se postaram ao meu lado, um deles em posição e ação idêntica à minha. Não prestei muita atenção a eles, apenas fingi encontrar algo interessante no cinza da parede e lá fixei os olhos. Impávido, porém, intimamente feliz com a solidariedade dos revolucionários ao lado, arrisquei uma olhada rápida aos meus iguais. Simpatia de relance. "Peraí" - uma luz se acendeu e voltei o rosto rápido, olhando firme o sujeito trajando roupa hippie recém tirada de alguma vitrine:

- Raul Seixas?

- Sou, não sou? Quem sabe?

- É você mesmo! Estou conversando com o Raulzito... (inocente eufórico que eu era)

- Pois é, Raulzito urinando na parede da igreja e batendo papo com você. É uma, não é?

- ...!?!

"Por que nesta tarde tão calma o tempo parece parado?"

Pareceu uma eternidade, mas fiquei apenas uns quinze ou quinhentos segundos imitando uma estátua, com a braguilha aberta e o insurreto esquecido. A alma subiu em busca de algo inteligente para dizer ao Raul e a besta ficou em terra, murmurando meia dúzia de idiotices que já nem me lembro... Sei que gaguejei um "inacreditável" e ele arrematou olhando para o alto, para o cume da parede a sua frente:

- É, ninguém acreditaria.

Riu, terminou, chacoalhou, guardou e foi embora. Eu fiquei mais um tempo, talvez minutos, sem terminar, sem chacoalhar, sem guardar e embasbacado. Quando a alma desceu e incorporou novamente a besta, tornei à razão sem nenhum motivo mais para protestar. Tinha era uma boa história para contar, sobre um cara que era cantor, que era baiano e que era lenda. Lado a lado tínhamos acabado de curtir uma com o sistema, a cidade e a igreja. Ele, é verdade, tinha curtido também com a minha cara. Numa boa! Nesse justo instante me descobri fã do Raul Seixas e, sem raciocinar ainda plenamente, me peguei admirando as duas manchas escuras na lateral esquerda da Catedral da Sé. A minha e a dele, descendo lado a lado pela parede e escorrendo juntas na calçada.

Foi assim, com uma pitada de poesia concreta, mas sem o mínimo de glamour que a história aconteceu. Poderia ter acontecido com qualquer um, mas foi acontecer comigo em um tempo que eu era inocente, puro e besta.