TUDO QUE É BOM DURA POUCO
Flavio Luengo Gimenez
 
 

Meticuloso, ele contava, um a um, os ossos que descobria em sua vida de ao Deus dará, ao vento em popa, à beira do precipício. Sua garrafa cheia de água que passarinho não bebe era escura e maltrapilha como ele. Dentes ruins, se é que os tinha ainda, o corpo com banho para tomar, os cabelos hirsutos e desalinhados: Figura perfeita de um conto imperfeito. Tinha hábitos estranhos para a vida errante que levava. Não admitia esmolas.

--Coisa de pobre!

Um bom donativo sim, uma cesta de alimentos numa loja cujo dono tinha boa alma, um sanduíche de bar, de preferência saboreado bem longe, porque odiava estranhos a cobrí-lo de olhares como moscas bicheiras, suas eternas companheiras. Diz-se que tinha sido rico, endinheirado, diz-se que vivia na Lapa, na época em que tinha lá uma tecelagem, um bairro bom de se morar, ele tinha lá uma casa onde vivia com a esposa e sete filhos, em perfeita harmonia. Saía para trabalhar e dava um duro danado na fábrica de tecidos, sua esposa era prendada e nas piores dificuldades que passara, ela estivera ao seu lado. Nunca deixou faltar alimento às famintas bocas de sua prole e o que ganhava com a fábrica que praticamente ganhara de seu pai que fora tecelão dava para viver uma vida boa, com direito a viagem para Santos, de onde viam os navios partirem rumo ao infinito, pescarias na represa onde os filhos se enredavam em eternas brigas de quem poderia ser o melhor pescador e passeios à Praça da Sé, onde viam enbasbacados como crescia sua cidade natal.

Tudo que é bom dura pouco, raciocina ele, o ser que agora engole uma golfada do estranho líqüido da garrafa, imerso em recordações que já não lhe fazem sentido mas a nós, que o olhamos de longe, fazem, então, lembra ele, um dia ele voltava à sua casa e chegou mais cedo. Estranhou o silêncio, a esta hora costumava chegar e a algazarra enchia seus ouvidos, mas naquele dia, ao chegar mais cedo, o pão embaixo do braço, o jornal dobrado e o chapéu ainda na cabeça, nada. Nem um ruído, ou melhor, sim, havia, um rangido, uma espécie de rangido metálico.

Seu coração esfriou quando deu de cara, em seu quarto, com sua esposa grudada a um estranho, em ritmados movimentos, tão absorvida que não notou o tamanho da encrenca em que se metera ao mandar os filhos à casa da vizinha enquanto consumava mais uma vez a traição atoleimada e vil. Tão absorvida estava que não conteve o grito que iluminou o ar em torno com o gozo final, tão entretida estava com o amante que não percebeu a lágrima do moço em pé, ao lado da cama...Só notou algo quando era tarde demais, só teve tempo de gritar desesperada, mas os dois foram achados na posição em que estavam, nus e frios, cada qual com uma perfuração a bala, milimétrica e fatal.

Ele sumiu e procurado, escondeu-se na noite, soluçando pelos cantos pela loucura cometida. Justo ele, que lutara tanto, justo ela e sua alva pele, justo seus sete filhos tão lindos, agora abandonados, cada um em um canto. Os mais velhos nunca se recuperaram, a mais novinha chorava dia e noite pela mãe. Ele sumiu no mundo, pegou barba, cresceu o cabelo, bebia muito nos bares e por incrível que pareça, ninguém atinava que aquele coitado pudesse ter tal sanha assassina. Nunca o acharam e ele nunca se deixou achar.

Assim raciocinava o vulto, barba imensa, piolhos indisfarçáveis, olhos cansados, devia agora beirar os sessenta mas aparentava mais de setenta. Todos dele se apiedavam. Mas como ele mesmo sabia, tudo que é bom dura pouco, os braços longos da justiça, seja ela a divina que o cobrava nas noites de frio ou a dos homens, cedo ou tarde alcança todos os que a desafiam. E se a justiça dos homens dele se esquecera, assim não se podia dizer da justiça divina. Ele andava assim, meio que malemolente, na esquina imunda do cemitério da Consolação, onde velas ardiam para os mortos ou os despachos e suas caratonhas recendiam a frango e polenta ( que divindade poderia aceitar aquilo?). Ele apenas parara um pouco, que ultimamente cansava só de subir a ladeira e foi aí, naquele escuro de breu, em meio à noite gelada de Inverno, que ele notou o movimento da moça, alva e esguia, a chamar alguém. Ele, que de bobo não tinha nada, acelerou o passo e atravessou a rua. Mas do outro lado, o mesmo vulto e ele já prometendo a si mesmo, "arre, desta não bebo mais". "O portuga me vendeu álcool zulu, esta é bichada", pensava o homem enquanto se esforçava, cada vez mais, para sair dali, do silêncio poderoso que só os mortos exalam, na calada da madrugada fria onde só ele costumava andar, enquanto todos dormiam nos arredores, inclusive os finados. Mas uma coisa se insinuou em sua cabeça, pensou ter sentido uma estranha dor na alma, como se já previsse aquele encontro. Terminou de atravessar a rua e lá estava a moça. Com sua alvura e seus olhos enxutos, a cabeça com louros cabelos e ele finalmente se lembrou de sua adorada esposa, há tanto tempo fora!

Dia seguinte fora achado, com o corpo gelado e nas mãos a luva branca, presente seu de casamento que ele dera há séculos a sua mulher e que ela lhe estendera no supremo momento da infinita espera.

Ninguém notou nada nem saiu nos jornais.