O CONTÍNUO E O LAMBE-LAMBE
Cris Dakinis
 
 

Capital do Rio de Janeiro, meados dos anos 60. Francisco atravessava o Passeio Público, com passos apressados, de segunda a sexta, rumo à uma editora alemã onde conseguira emprego. No "Passeio", via gente passeando ou namorando, pessoas sentadas nos bancos do parque a alimentar os pombos (que deram origem aos tantos pombos que povoam os parques da cidade até hoje...), outros liam jornal __ mas era preciso estar atento aos larápios! Ainda assim, muita gente aproveitava aquele espaço para um descanso do tumulto do Centro da cidade. Francisco com sua pasta de documentos debaixo do braço seguia vaidoso: primeiro emprego de carteira assinada, queria fazer bonito! Chegava cedo à editora, e de lá saía somente quando o chefe dava a ordem de ir embora.

Francisco, alto e magro, parecia ter bem mais que seus quinze anos de idade, e quem o via, achava, facilmente, que devia ter uns 21. No retorno para casa, atravessava mais calmamente os portões do parque, pasta segura debaixo do braço, ainda que vazia de documentos. Acanhado, espiava, pelos cantos dos olhos, o trabalho do lambe-lambe do parque a tirar fotografias de casais; às vezes, de família inteira; outras, de gente só. Era assim que ele queria um retrato: dele sozinho. Aguardava o dia do pagamento de seu primeiro salário na editora. Não fazia idéia de quanto o lambe-lambe cobrava, mas quando perguntasse o custo, resolveria tudo de uma vez só e tiraria seu retrato. Era o caso de ter o dinheiro reservado e de estar prevenido para a ocasião. Colocaria sua melhor camisa para esse dia.

Chegou o dia. Céu azul, dia bonito, Passeio Público cheio de visitantes. Francisco parou próximo ao lambe-lambe, que lhe sorriu acolhedoramente. Mas Francisco, sem-graça, perguntou: "O senhor sabe onde fica a rua do Senado?". O Lambe-lambe franziu a testa: "E o rapazito não sabia? __ Pensei que o jovem trabalhasse por aqui... Te vejo passar todos os dias...!

Pra acabar com aquela aflição, Francisco desvencilhou-se de sua timidez e disse quase em tom de súplica:

__ Eu quero tirar um retrato...

__ Voilà! __ Respondeu o lambe-lambe, apressando-se com os preparativos, antes que o "rapazito" desistisse (o artista estava acostumado ao público e sabia que a extrema inibição do rapaz poderia inventar uma desistência súbita), mas não foi o que aconteceu...

__ Tudo pronto! Como quer seu retrato? De perto ou mais afastado? Quer uma sugestão? __ Indagou solícito.

__ Não, senhor... eu quero tirar o retrato caminhando...

__ Como? Não entendi... em movimento? Mas como?

__ Quero um retrato meu no trabalho.

__ E onde é seu trabalho???

__ ................................

__ Ah...! Mas Oui... É claro... O jovem quer seu retrato desempenhando sua tarefa diária, caminhando pelo parque, é isso?

Francisco soltou um suspiro de alívio... que bom o retratista entendera... ele já não podia de tanto acanhamento. Para intensificar sua timidez, três senhoritas aguardavam a vez para serem atendidas.

__ Fique de lado, e faça a pose de caminhar... Isso! Espere! Mas... que tal deixar comigo sua pasta? Não seria mais cômodo?

Francisco novamente encabulou... Olhos ao gramado... Decidiu explicar como queria o retrato... Se as moças rissem, mudaria seu itinerário diário e jamais passaria por ali novamente...

__ Quero que a pasta fique no retrato e que apareça o símbolo da editora onde trabalho. É que todo mundo lá tem um retrato na mesa do trabalho e eu queria um meu... Eu trabalhando também...

__ Mas oui! Mas claro, meu jovem! Corretíssimo. Basta fazer como estivesse caminhando... Mas não caminhe! Segure a pasta como de costume... isso... Très bien! Isso... Você está muito sério... mas está muito bom assim... Levante só mais um pouco sua cabeça, sim? Voilà! Vamos ver como ficou...

Francisco sentia os pés fugir do chão... ou o contrário. Dava pena ver tamanho acanhamento. Aguardou a chapa ser revelada com a ansiedade de se ver e de saber do custo daquele empreendimento no qual se metera. Já estava quase descorado (não rubro porque Francisco era mulato), mas o tempo que aguardava pareceu-lhe absurdamente longo. E não era.

__ Aqui está! Veja se agradou __ Inquiriu o artista.

__ Quanto custa?

__ Mas jovem, olhe para seu retrato primeiro!

Francisco olhou. Olhou... e viu. Estava maravilhoso! Era ele mesmo, sem tirar, nem pôr. E dava para ver, no retrato, que ele trabalhava! Sua pasta estava ali, debaixo de seu braço, com o símbolo da editora alemã... tudo certinho... Perfeitos os detalhes de sua camisa, de seu rosto. Ele estava até bonito! Sim, estava bonito. Aí Francisco não pôde mais reparar detalhes do retrato porque seus olhos encheram de lágrimas (para desespero seu, que não desejava chamar ainda mais atenção para si).

__ Obrigado, senhor retratista! Esse é meu primeiro retrato.

__ Sim, seu retrato, de você trabalhando!

__ Sim... E sou eu mesmo...

__ O jovenzito quer dizer-me que não havia tirado um retrato seu ainda?

__ .........................

__ ????????

__ Quanto devo ao senhor?

__ Meu jovem, esse era um teste... e eu não vou cobrar nada. Da próxima vez, quando você tirar outro retrato comigo eu te cobro (o lambe-lambe recusava-se a crer em sua generosidade despropositada... Precisava receber pelo seu trabalho, mas não pode evitar em premiar o humilde jovem após sua demonstração tão espontânea de apreço por sua arte).

Francisco agradeceu apressado, e mais apressado ainda, foi pra casa. Queria mostrar à mãe seu retrato. Ele em seu trabalho...

__ Ué Chiquinho... Mas porque você tirou o retrato caminhando? Foi "de surpresa" que o lambe-lambe te bateu?

__ Não, mãe... Eu escolhi assim...

__ Mas parece que te pegou caminhando, passando... Por que não fez pose para o retrato, filho?

__ ...................

A mãe, sem saber mais o que dizer, e reparando no conhecido acanhamento do filho, como se ele houvesse errado em seu primeiro retrato, atenuou:

__ Chiquinho, você ficou bonito, sabia?

Francisco sorriu, tirou o salário do bolso e o colocou em cima da mesa. Só aí conseguiu começar a engolir o jantar. A mãe olhou novamente para o retrato. O filho estava mesmo bonito... e ali, diante dela, mais ainda!