SURRUPIO
Beto Muniz
 
 

Dona Anézia é dessas italianas típicas da Mooca. Uma matrona capaz de aninhar todos seus filhos debaixo das asas sem admitir dispersões. Um doce de senhora! Antes de enviuvar ela era mais fechada, sisuda, como se a vida lhe cobrasse impostos pelas demonstrações de felicidade. Se um riso lhe custava muito, suas alegrias eram distribuídas disfarçadas dentro dos quitutes e guloseimas. Desde sempre seus doces eram famosos na vizinhança. Após sepultar o marido, a matriarca da família passou a exibir uma alegria constante. As más línguas - e as boas também, insinuavam que a viuvez lhe tornara mais feliz que o casamento de trinta e poucos anos. Seus oito filhos atribuíram o bom humor da mãe aos netos que chegaram junto com a viuvez, seis. Metade dos filhos colocou herdeiros no mundo no mesmo ano da viuvez, e uma filha lhe deu netos gêmeos no ano seguinte.

Dona Anézia começou a paparicar os caçulas da ninhada e parou de cozinhar doces para vender. Ao fogão ela reservou os domingos, faz questão de cozinhar para a família todo fim de semana. A grande mesa de refeições sempre foi peça fundamental na tradição de receber filhos e filhas com os respectivos cônjuges. Outra mudança imposta pela viúva foi o lugar de assento à mesa para cada um dos filhos. A sua direita postou os filhos, a esquerda assentou suas filhas. Por ordem etária. Sentada a cabeceira Dona Anézia passou a comandar a refeição como se fosse a rainha num reino sem súditos. O sobrenome da família já sugere certa pompa; Nobreza. Anézia Albina Nobreza. O Albina herdou da avó paterna que ficou na Itália e Nobreza do marido.

Do pai, além do prenome, herdou também um velho relógio de parede que a cada hora enche a sala de melodia. A madeira escura de alguma árvore do velho continente divide sobriedade com os detalhes de metal prateado, seria valiosíssimo se o metal fosse prata, mas é apenas um tipo de latão que a velha senhora faz questão de polir e dar brilho todos os fins de semana. Um ritual sagrado. A madeira ganha brilho com óleo de peroba. Por anos, desde mocinha, incumbiu-se de preservar o cuco como quem guarda o brasão da família. Na festa pelos seus sessenta e três anos de idade surpreendeu a todos, determinando que o filho mais velho tomaria posse do objeto, que é o tesouro da família, assim que ela partisse desta para outra. Se não fossem filhos e não lhe devessem respeito, com certeza repreenderiam a matrona por assunto tão impróprio numa festa. Calaram. Acataram mudos os desejos da mãe que, fingindo não notar o claro constrangimento dos filhos, continuou a desfilar instruções pré-testamentais, terminando por reclamar que a casa onde vivia era grande demais para o número atual de moradores. Ela e a empregada. Os filhos de Dona Anézia, para não cometerem o sacrilégio de sugerir a mudança da mãe para uma casa menor, contrataram uma mocinha para ajudar as duas velhas. Ofenderam. A Matrona pôs à venda a velha casa e cismou que compraria uma casa menor, não tão menor, mas "com menos quartos - explicou - e com quintal para transportar a horta e o jardim". Com a diferença a mais no valor de venda, ela poderia viajar. Voltar à Itália antes de morrer. Os filhos acham justo. Justíssimo! E foi dada a largada.

Primeiro procurou-se o local novo a ser comprado, depois colocaram a venda a antiga casa. Tarefa fácil, já que vários empreendimentos haviam oferecido pequenas fortunas pela localização privilegiada do casarão. Dona Anézia fechou com a maior oferta. Em menos de um mês a rede de hipermercados estava depositando os valores na conta da viúva. Pouco tempo depois ela saiu do seu castelo sem nem olhar para trás. Um caminhão para a mudança e outro para as plantas. Flores e folhagens. Uma selva urbana.

O relógio-cuco ganhou local de destaque, e qual um santuário foi o primeiro a ser instalado na casa nova. A grande mesa para refeições dominicais não teve a mesma sorte e, devido às proporções avantajadas da família e da mesa, foi instalada no único lugar em que cabia, na varanda dos fundos, que foi ainda ampliada e adaptada para comportar o almoço de domingo. Dona Anézia fazia questão de manter a cultura familiar. O que não era cultura, e pegou todo mundo de surpresa no segundo domingo pós-mudança foi o anúncio da viagem para a próxima semana. Cidinha, a empregada também ia. Apesar dos protestos da velha agregada, a patroa era quem decidia. E decidiu. A Cidinha era tão velha quanto a patroa, mas depois de tantos anos no emprego acabou por agregar-se à família e ao coração de todos. Não importa mais se é viúva ou mãe solteira, o que se sabe é que seu único filho se perdeu no mundo faz muitos anos. Dele só a empregada consegue se lembrar. Sem lamúrias - apenas saudade e o desejo que esteja bem, pois ela tem o amor postiço dos filhos que não são seus e que foram criados como se fossem. Sabe dos pensamentos de cada integrante dessa família, parece até que pode ler suas mentes. Conhece a todos mais do que a si mesma. Emocionou-se com cada casamento e partida dos filhos-postiços, mas estes voltam aos domingos e nem dá tempo de entrar na lembrança, virar saudade.

Na segunda-feira as duas senhoras estavam na agência de viagens acertando datas, valores, estadias, locais a visitar, compra de agasalhos, de apetrechos e presentes típicos para os parentes europeus. Terça-feira, quarta, quinta e mais alguns dias depois elas perderam por conta do passaporte da Cidinha. Onde já se viu pessoa com os dados tão enrolados? Para não perder mais tempo Dona Anézia utilizava os dias para fazer contatos com parentes no velho mundo. Encontrou apenas descendentes dos que já não existiam, acertaram a visita e assim, com algum atraso, lá foram patroa e agregada. Na Itália, para dividir lembranças de infância, Dona Anézia encontrou uma prima-irmã com a mesma idade que ela. Não se lembraram uma da outra porque eram meninas quando foram separadas por um oceano, mas a italiana lembrou e cobrou em nome da família, o paradeiro dum certo relógio-cuco com entalhes prateados que fora surrupiado tantos anos antes, quando o falecido pai de Anézia partiu para a América.

A coitada da Cidinha jura de mãos postas que na Itália foram muito bem recebidas, mas não sabe o porquê da patroa parecer ter perdido a nobreza, apesar de manter o sobrenome, e antecipar a volta para casa. Sabe apenas que Dona Anézia murchou bem antes de atravessar o oceano de volta. A empregada desconfia que a causa desse novo apagão no sorriso de Dona Anézia seja uma conversa mais alterada que teve com a prima. Entretanto, por não entender nada do idioma utilizado na prosa das duas, pouco sabe informar aos filhos por afeição o motivo da irmã-patroa definhar dia a dia, a olhos vistos.

A família desespera-se vendo a matriarca permanecer horas e horas, muda, fitando o relógio. Quando se afasta do velho relógio seus olhos delatam a tristeza e se quedam murchos, opacos como o latão prateado que Dona Anézia nunca mais poliu.