DE VALQUÍRIAS E DE MERCEDES
Lia Abreu Falcão
 
 

Ver uma mulher dirigindo um bruto ainda é algo meio raro nesse país. Agora, ver duas mulheres loiras e lindas pilotando um Mercedes 1113, vermelho, em pleno feriadão é algo que, além de parar o trânsito na Rio-Bahia, pode ser contado como conversa de bêbado em fim de feira. Pois bem.

Acontece que a dupla de mulheres existe e foi ganhando fama entre os camaradas do asfalto que já disputavam as estradas por onde elas tinham sido avistadas pela última vez. Era um burburinho e um disse-me-disse de fazer inveja às melhores conversas de comadres do interior. E não faltava quem acrescentasse mais um ponto ao conto verídico das duas moças pilotas. De minha parte, eu não duvidava, mas andava meio desconfiado que as estórias fossem por demais fantasiosas.

Soube de um companheiro que, ao se despedir da família em Aparecida, no final do mês de agosto passado, desapareceu por esse mundo afora e ao final de dois meses, mandou uma carta para a esposa na qual se confessava loucamente apaixonado pelas moças e ameaçando não voltar mais para casa caso não cruzasse seu caminho com a dupla dos seus sonhos.

Não sei se é verdade, mas dizem que ele se encontrou e que não volta mais pra casa. Bem, mas isso já é problema dele. O que interessa é que, do alto da minha incredulidade, fui pego de surpresa na véspera de um feriadão de semana santa, bem aqui mesmo, que é pra ninguém dizer que estou mentindo. Tenho testemunhas e tudo.

Compadre Neco me dera um serviço de frete para a capital com volta em uma semana, só que caía no feriadão e ele, pai de primeira viagem do meu afilhado Nequinho, não quis deixar a comadre de resguardo sozinha. Sobrou pra mim e eu peguei no trampo. Assim que acertei o serviço, cuidei de vigiar as horas acertadas na firma e o camarada que iria receber a carga e passar meus recibos. Tudo certo, tratei de ir pra capital com uma carga pesada que só vendo. Era de noite e a estrada de vinda estava mais tranqüila que mulher de padre. Pois bem.

Fiz minha fezinha na loteria, me despedi de Marinete e peguei o bruto pra comer estrada afora. Dia antes, tomei uns caldinhos a mais e hoje não podia facilitar com comida nem bebida. Era jura de profissão. Mas, como mulher e estepe é sempre bom ter na reserva, cuidei de ligar pra Creuza, uma amiga de Recife que sempre me acudia nas horas mais ingratas. Acertei uma geladinha pro domingo e lá me fui, cantando, de boléia aberta, curtindo a vida e a boléia do meu MB 1114, relíquia da família que muita gente por aí anda botando o olho enquanto de cá, me finjo de cego.

Despedido de Marinete e tendo Creuza me esperando, achei que era o mais feliz dos homens desse planeta. Mas qual o quê. A vida me reservava uma surpresa e tanto. Pois não é que ali, no quilômetro 113, quando estacionei meu cadilac pra abastecer, avistei nada mais nada menos do que as duas legendárias pilotas? Sim, esse era o nome das loiras pra lá de pilotas que dirigiam aquele bruto MB Fire Truck! Uma visão do apocalipse em plena luz da lua. Cocei os olhos, pra me certificar se não era visagem e mirei na direção das moças porque até hoje mulher bonita e dinheiro eu só tinha visto na mão dos outros. Desculpem, Marinete e Creuza, mas quem não se arrisca é porque não tem caneta, não é mesmo? Então.

Diante daquela miragem do céu, eu só pensava em puxar uma conversa e travar ali uma amizade, quem sabe. Olhei de um lado e de outro, não vi marido, campo meu. As duas sorriam pra mim e eu olhava pra trás pra ver se não era com outro. Mas era comigo mesmo. Fiquei cativo. Era demais. No pára-choque do bruto delas, filosofaram: "As mulheres perdidas são as mais procuradas!". Verdade.

E enveredamos a conversar sobre máquinas, estradas, caronas, pousadas, tudo. Elas não só entendiam como ainda me davam aula do riscado. Impressionado, eu me dei conta do quanto as mulheres são polivalentes e encaram qualquer trecho. Dez à zero pra elas. Bem antes dos noves fora, trocamos telefones e o que se segue, faz parte da minha discrição. Mas as fotos estão aqui, com data e tudo. Afinal, somos profissionais.

O que sei é que meu compadre até hoje lamenta essa viagem que não fez. Sabe como é. E eu, que já não me gabo muito, continuo um cara discreto, mas posso lhe adiantar uma coisa: aquele feriadão mudou minha vida. Deus escreve certo por estradas e linhas certas. Fui ajudar um compadre, o destino me ajudou em dobro.

Hoje, casado com uma, e feliz cunhado da outra, posso dizer que sou um homem satisfeito: duas Mercedes na garagem e duas companheiras pra rasgar o mundo. Serviço não falta. Coragem também não. E essa tatuagem aqui não é o símbolo da concorrência: na verdade são dois vês juntos, em homenagem às voltas da vida e às mulheres que me dirigem desde então: as duas Valquírias.

E pra você que não acredita, só digo uma coisa: "pra que um olho não invejasse o outro, Deus colocou o nariz no meio".