CARGA GENÉTICA
Beto Muniz
 
 

Meu bisavô - contava papai, conduzia carro de boi no trecho São José do Rio Preto/Uberaba. Sal e arame de São Paulo para Minas Gerais. Então a estrada estava no sangue, de geração pra geração o vírus colocava cabresto nos homens - e até em uma ou duas mulheres da família, e lá iam eles transportar cargas.

O retrato do meu pai bem mais novo, em pé diante dum caminhão vermelho era a que eu mais gostava. Ele apontava a cabine exibindo sorriso de puro contentamento. Eu dizia que aquele era o caminhão mais bonito entre os quatro fotografados lado a lado, ainda no pátio da revendedora, em 1969. Eu pedia que papai trocasse nosso 1519 azul por outro caminhão igual ao da foto, ele desmanchava meu cabelo e dizia que realmente o 1113 da foto tinha deixado saudades. Eu era criança, quase seis anos, mas já sabia contar caminhões passando pela estrada rumo ao porto Alencastro, na divisa dos estados de Minas Gerais e Mato Grosso, hoje do Sul. De cima da mangueira pontuávamos pela cor da cabine. As azuis eram do meu irmão mais velho, as amarelas de um dos primos, as verdes e brancas eram de quem quisesse passar a tarde ao nosso lado, empoleirado, comendo manga verde e contando caminhões. Os caminhões vermelhos eram pontos meus, e eu os via de longe, muito longe, quando ninguém podia ainda ter certeza se eram brancos ou coloridos. Eu sempre tinha certeza quando um dos meus apontava lá no cume da estrada, mais de uma légua de distância. E acertava! Invariavelmente apostava quando alguém dizia que eu estava errado. Com o tempo ninguém mais discutia se eu estava certo ou não, apenas diziam que eu era doido.

Caminhão toco valia um ponto, era comum. Trucado valia ponto dobrado! Carreta era raro e por isso valia três pontos. Se fosse placa do nosso município, em MG, valia quatro pontos porque era algum vizinho voltando pra casa ou saindo em viagem. E assim as tardes se iam em números, cores e sabores de manga.

Quando chovia tudo mudava. “Chuva e sol, casamento do espanhol”. Os pingos d’água com suas multicores e sons me distraiam de vigiar a estrada. Irmão, primos e vizinhos corriam com medo de raio e eu permanecia sozinho, encantado, empoleirado no galho mais alto. “Sol e chuva, casamento da viúva”... Mamãe vinha desesperada, com uma vara de goiabeira na mão pra se fazer ouvir, e me dizia pra descer já! A contragosto eu pulava, levava um vergão nas pernas pra nunca mais ficar em árvore na chuva, mas nem sentia dor. Chuva e sol não era casamento de ninguém, ou podia ser de todo mundo, não me importava. Sol e chuva era festa multicor, multisom e multicheiro no céu. Em final de tarde, festa com o arco-íris coroando o cinza celeste, eterno.

Quando completei seis anos seu Gervásio, nosso vizinho, colocou à venda seu GMC, velho, de 1951, arriado de tantas cargas transportadas nas estradas de terra. Cheguei em casa eufórico e quase sem fôlego trazendo a novidade e a proposta, já aceita pelo vizinho, de trocar o Mercedão do meu pai pelo GMC vermelho. Meus primos zombaram dizendo que eu era maluco. Eu não dei atenção a eles, peguei meu pai pela mão e implorei pra que ele me acompanhasse pra fechar o negócio. Papai me respondeu com um deixa-de-ser-besta-moleque. Não compreendi. Deixei cair umas lágrimas e emburrei. Ninguém gostara da minha sugestão! Fiquei no meu quarto o resto da tarde, recusei o jantar e o carinho de mãe. Caí no sono.

Na manhã seguinte papai me acordou com a caixa de retratos na mão. Foi me mostrando fotos de família até chegar na foto que eu mais gostava. Em primeiro plano papai sorrindo, atrás dele a cabine vermelha e parte da carroceria, o caminhão encobria parcialmente outros três, emparelhados, somente suas cabines estavam visíveis. Meu pai perguntou se eu saberia dizer as cores dos outros três caminhões. Eu respondi que todos eram verdes - ouvira alguma vez alguém dizer que eram verdes... Papai concordou que duas cabines eram verdes, mas a terceira era azul. Seus olhos vertiam multicores quando falou que eu não poderia ver a diferença, porque Deus me fizera especial e eu conseguia distinguir apenas a cor vermelha.

Meu pai ficara louco! Lembrei do arco-íris, das chuvas e teimei que podia sim ver todas as outras cores. Ele não retrucou, recolheu a maioria das fotografias, inclusive a que eu mais gostava e, com a calma traindo a tristeza, estendeu algumas delas sobre a cama e foi me perguntando as cores das roupas, das casas, dos objetos. Eu respondendo que eram azuis, amarelos, verdes, vermelhos até apontar as cores da última foto. Papai desmanchou meu cabelo e como se quisesse me compensar algum distúrbio genético, prometeu que seu próximo caminhão seria vermelho. Depois se calou, limpou uma sujeira imaginária no meu rosto, gesto demorado... os olhos adquirindo um cinza de mel endurecido, então ele disse que sobre a cama todos os retratos eram em preto e branco.