NEM PAI, NEM MÃE
Roberto Márcio Pimenta
 
 

Da boléia do caminhão, segurando a cortina com o dedo indicador e o polegar, vejo três crianças pedindo carona.. Há neblina e uma isca perfeita para um assalto. Amanhã, talvez, eu leia no jornal sobre o crime em que usaram os três meninos. Sempre os mesmos: um chamariz, um roubo e um morto no asfalto, pleno de boa intenção.

Redobro a atenção na estrada e no crucifixo à frente do pára-brisa. Penso nos ensinamentos de Cristo e prossigo. Paro em Realeza. Penso neles e não consigo me alimentar. Por que não parei? Isto não faz parte dos meus princípios. Retorno à estrada e vou ao encontro das crianças.

No caminho olho para o crucifixo, a foto no painel. Fico pensando na esposa Maria, no filho perdido e na notícia: nunca mais poderia ter descendentes. Relembro a tristeza do seu rosto, o choro engolido. Chego ao local. A destra no revólver, os meninos à frente. . Sinto vergonha dos pensamentos e coloco as crianças na cabine, uma ao lado da outra. Guardo a arma e ligo o motor. O menor deles, segurando a mamadeira vazia, pede leite. O do meio, ainda tremendo, mexe no porta-luvas. Dou bronca. Digo que ali tem revólver com balas e lhes entrego uma manta.

A menina retira o dedo da boca e começa a falar sobre eles:

- Meu nome é Madalena. Tenho oito anos, só. Os meus irmãos são o Lucas que tem seis anos - ela pára de falar, dá um beliscão no garoto para não mexer no porta-luvas e ele grita “Ai!” e continua falando:

O pequenininho é o Mateus. A gente morava numa casinha à beira do rio - eu, Lucas, Mateus e o pai. A mãe morreu quando ele nasceu (apontou para o Mateus). Morava.... Não moramos mais.

Um dia, vieram dois homens, tudo de preto e gritaram o nome do meu pai. Queriam e ele não tinha, não o sei o quê. Então, mataram ele. O pai estava deitado e a gente não sabia que estava morto e quando soube eu olhei para ele diferente, como se olhasse uma pedra e, por isso, abracei ele até chegar um tantão de gente: a polícia, uma mulher e uns homens tiradores de fotografias. Baterem o retrato dele. Depois chamaram a mulher de assistente social. E, sabe, neste dia fiquei de mal com Deus.

Disseram que o pai iria encontrar com a mãe lá no céu. Podia até ser isto – sei que ele tinha muita saudade dela, pois vivia chorando - mas não morresse. Não e não. O pai não ia ter uma idéia dessas... É culpa de Deus. Só pode ser.

A tal que tinha nome de assistente social perguntou se a gente tinha parentes e eu disse não. Querendo agradar, ela nos deu bala e falou que nós íamos morar num lugar legal, chamado orfanato. Até gostei da idéia porque o pai nunca comprava bala e lá tinha roupa, cama (moço, a gente dormia os três numa só cama na casa do pai.) Isto não tinha em casa. Mesmo não estando de bem com Deus, neste dia coloquei meus irmãos de joelhos e rezamos pelo pai e pela mãe que lá do céu arranjaram um jeito gostoso de proteger a gente.

Tempos depois fiquei triste. O orfanato não era o legal que a moça disse. Um dia levaram o Lucas para uma casa nova. Disseram que ele ia ser adotado e foram logo pegando na minha mão para me despedir dele. Mais triste ainda fiquei quando a imagem dele sumiu no carro com as letras T- A- X- I (desculpe-me, moço ainda não sei ler, mas conheço as letras). Acho até que é porque deixaríamos de ser irmãos. Tem disto, moço. Entende? Também fui adotada algum tempo depois. Disseram que eu ia ser a filha que não tiveram, mas na verdade fui trabalhar de ajudante da empregada. Acho que Deus não acreditou bem acreditado no negócio de estar de mal com Ele. Sabe por quê? Porque numa tarde me puseram com a empregada para fazer umas compras e encontrei o meu irmão na feira. Estava lá, mais bonito do que antes, e mais limpinho do que o meu coelhinho que fugiu. O Lucas não abanava o rabo, nem latia, mas era o meu melhor amigo e... adivinha? Me reconheceu na hora. A gente - tá ouvindo?- se abraçou, dançou e demos chutes como os burros selvagens brigando.

Havia muita banca de frutas Tivemos uma idéia: Derrubamos a das laranjas. Confusão tremenda.. Fugimos das pessoas que nem ainda eram nossos pais. Agora faltava o mais difícil: recuperar o Mateus. A história é bem grande. Espera aí, que chegamos lá.

Ela deu uma pausa. Pigarreei curioso e fiquei observando ela continuar:

Fugimos e nos escondemos na carroceria de um caminhão que estava na frente do orfanato. Longe dali o moço do caminhão encontrou a gente, porque o Mateus começou a chorar, e colocou todo mundo na estrada, no lugar onde o senhor passou.. Acredito, moço, aquele bobo estava é com medo da polícia.

A partir deste momento a menina olha para os próprios pés sujos e se cala.

Logo após enxugo com a manga da camisa minhas lágrimas e sinto a tristeza que morava debaixo da pele daquela criança órfã. Eu nunca havia experimentado algo tão triste.

-Amanhã vou devolvê-los ao orfanato, se é que existe – planejo. Vou até a lanchonete. Quando retorno percebo algo estranho: Não estão na cabine. Lembro-me do revólver no porta-luvas. Abro. Não está. Sinto um cano frio na minha nuca. Minha arma.

Diante do revólver apontado para mim, sob a neblina daquela noite que serve de escudo para ocultar o que irá acontecer, entendo tudo: sou vítima da própria arma. Compreendo o porquê de toda a conversa daquele pedaço de gente e também a ansiedade do menino mexendo no porta-luvas. Foram mandados.

Olho para o retrato da esposa no carro. Desejo morrer tendo sua imagem como a última em vida deste mundo. Neste momento algo puxa a minha calça. Abaixo a cabeça e vejo o garoto do meio com as mãos cheias de balas de revólver. Olha para mim e diz:

- Eu tirei. Elas não são servem para chupar.

Entendo o milagre. Enfio um sopapo no rapaz que aponta a arma para mim. Ele puxa o gatilho inutilmente.

O garoto que me auxilia se esconde debaixo do caminhão, enquanto outra pessoa tenta agarra-lo. Distraio o rapaz, mas o sopapeado segura o meu pescoço e aperta até ficar roxo, quando ouço um barulho. À frente do grupo, com o irmão no colo, ela diz:

- Foram eles que mataram meu pai!

Os dois bandidos são presos. Vou até ao telefone e ligo para casa. Do outro lado escuto um choro baixinho da voz da mina esposa. Eu não percebo: Antes disto, aproveitando o meu descuido no telefone recolheram meu revólver e algumas balas do chão. Desligo o telefone.

- Onde está a menina? – pergunto aos dois irmãos.

De trás do caminhão saem três homens armados. Na frente a pequena Madalena com o meu revólver. Todos eles riem. O menor deles se encolhe no chão temendo o que vai ocorrer. Vejo-o como Jesus na manjedoura, mas os tiros que vêm em minha direção não são dos Três Reis Magos.