UM DITADOR NO MEIO DO MUNDO
Agliberto Cerqueira
 
 

As palavras babavam de sua boca e ele já não sabia mais o que falava, tantas voltas dava seu pensamento, porém, ainda imaginava que as pessoas, pelo terror que lhes inspirava, entendiam suas mensagens mesmo não as ouvindo, obedeciam suas ordens ainda que se ferissem com elas e o seguiriam até o fim dos tempos como cordeiros errantes. No entanto, as pessoas haviam apreendido a conhecê-lo. Assistiam a seus discursos sem nexo, aplaudiam seus gestos mirabolantes, arregalavam os olhos aos mesmo tempo em que ele arregalava os seus, gargalhavam juntos em uníssono com suas piadas idiotas, derramavam falsas lágrimas quando ouviam suas lamúrias e faziam de conta que eram felizes amargando seus verdadeiros sentimentos. Tinham consciência de que era um mentiroso, canalha e ladrão. E apesar da certeza de que não precisavam mais dele para nada, ainda assim pouco podiam fazer. Aguardavam apenas a sua morte para se confortarem. E ele, refestelado em seus domínios, controlando todas as vidas, cria que era o homem necessário. O único. O pai de todos. Aquele por quem tanto chamaram.

Infalível. Inatacável. Perfeito. Era assim que se imaginava. Com sua arrogância latente procurava convencer os amigos e inimigos sobre sua benevolência e desapego aos bens materiais demonstrando sua fé inabalável em Deus. Lambia botas de padres e deixava-se aspergir pelas águas bentas. Fazia sinais da cruz acintosamente e a todo tempo: mais para ser visto e admirado em seu franco fingimento do que pela verdade de sua crença. Mas até isso, com o tempo, as pessoas passaram a perceber. E passaram a rir daquele ser grotesco, inacabado e da covardia mal disfarçada naquele corpo flácido e gorduroso. Consideravam-no um trapo, uma migalha, um fiapo, um perdigoto em queda. Via-se, porém, como um gigante, dadivoso, bom conselheiro e adorado. Uma criança velha.

Acumulava seus dinheiros e amealhava propriedades com o talento, sacrifício e o esforço alheio prometendo que um dia todos seriam recompensados. Um dia tudo aquilo seria de todos. Tudo seria dividido. Bastava esperar. Traía a confiança dos auxiliares mais próximos. Enganava a gentalha. Infiltrava-se na vizinhança. Comprava aliados. Forjava amizades com ouro. Adquiria comparsas. E atuava tão lindamente que, quem o assistia pela primeira vez, borrava-se de encantos lhe oferecendo sorrisos e alianças. Mas era apenas uma casca. Rugosa e quase impenetrável. Porque, bastava-lhe um talho, um pequeno rasgo, um toque sutil de verdades que não suportava ouvir e ele se transformava. Vazava-lhe o ódio e o veneno por todos os poros. Um sangue negro. Surgia então o tirano violento e vingativo que a todo custo procurava mascarar.

E assim conduzia as vidas. Demonstrando capacidades que jamais tivera. Dizendo seus os desenhos que nunca desenhara porque era incapaz de riscar um traço. Declamando poesias como se fossem suas mas que jamais escrevera porque mal sabia o significado das palavras. Tomando descaradamente as obras dos outros e mandando gravar seu nome nas fachadas. Atirando sempre a última palavra. Como se fosse ele a única inteligência. Como se ninguém mais existisse. Como se todos ainda precisassem daquele traste posto ali pelo próprio pai, outro obtuso. Como se nunca tivesse recebido ajuda de ninguém. Ele, o único ser necessário. Tangível. Pronto. Disponível.

Mas, como todos os inconsequentes, ele não se lembrou do destino. Esqueceu-se de aliciar o tempo. E sequer podia conceber que em algum lugar do infinito alguém precisava dele há séculos. O esperava faminto, sanguinário e cruel. E foi justamente no momento em que imaginou-se o homem mais sábio entre todos os homens. Quando acreditou que poderia usufruir de todos os poderes infinitamente. Quando julgou que estaria ao mesmo tempo em todos os lugares com sua falsa generosidade. Quando se convenceu que todos os outros só sobreviviam em consequência de sua própria vida, nesse exato instante abriu-se uma vaga no inferno e ele foi o candidato escolhido.

E o mundo continuou como se ele nunca tivesse existido.