PRECISA DE OUTRA METADE
Antonio Carlos Vellasques
 
 

O anúncio havia sido feito para despertar curiosidade, é claro, e era exatamente isso que Carmem queria quando preencheu a ficha no balcão de classificados do jornal:

Precisa-se
Preciso da metade de um coração
Pago uma boa recompensa
Tratar na rua das Donzelas s/n, ao lado da quitanda, bairro Tordo Dentirrostro
Fone 37-XXXXX - chamar dona Bilila

Carmem achou o preço do anúncio um tanto salgado, mas imaginava valer a pena pagar para continuar a busca que fazia já há alguns anos. Havia muito que sentia-se semi-viva, metade mulher e metade vegetal; nunca havia lhe passado pela cabeça apelar para o jornal da cidade, e ela nem procurou regatear: pagou a quantia e saiu depois, de cabeça baixa, pela porta da frente.

O Sentinela de Parapuca era um misto de jornal e barbearia. Explica-se: a pequena cidade de Poço Redondo era um dos mais miseráveis lugares do sertão de Sergipe, habitada por velhos e crianças que, qual assombrações, perambulavam pelas ruas sem destino aparente naquele ano da Graça de 1941. A cidade, se a um ajuntamento de menos de quinhentas almas puder-se dar esse nome, já tivera algum sucesso financeiro nos anos vinte e trinta, quando a mina de ouro funcionava razoavelmente e todos ganhavam o suficiente para irem tocando uma vidinha simples e agradável. E o jornal Sentinela fora criado por seu Demétrio, um visionário autodidata que adorava ler livros e que sabia que aquela populaça iletrada não teria a menor chance de sobreviver depois que a mina de ouro secasse, como dizia, e os homens fossem dispensados do serviço. Esse dia acabaria chegando, mas seu Demétrio não viveria para ver sua profecia se cumprir. Um ataque de jararaca viria matá-lo pouco tempo depois. O ouro mirrou em pouco tempo, arrastando a cidade junto.

O Sentinela de Parapuca era um arremedo de jornal, a bem da verdade. Impresso em uma velha linotipo comprada em Aracaju e trazida no lombo de burro até Poço Redondo, o jornal foi saudado pelos políticos locais como "um passo dado em direção ao futuro"; Demétrio divertia a todos quando arremedava o prefeito que dissera tais palavras empoladas, num discurso ridículo e exagerado, com a boca distribuindo saliva por todos os lados. Como o resto da cidade, o prefeito não tinha um único dente na boca e tascara no microfone um Fentinela de Farafuca, que era o nome que o povo adotara para o jornal.

A mina de ouro de Poço Redondo pertencera à Sociedade de Minas de Ouro do Poço Redondo, uma empresa familiar que lutara bravamente para manter os trabalhos da mina por mais de cinqüenta anos, sucumbindo face a dívidas imensas no final dos anos trinta. Pouca gente sabia-lhe a história correta; o que se dizia era que os donos haviam fechado a mina para morarem na Europa, depois de terem explorado e enriquecido com o negócio. Alguns diziam que o dono havia contraído uma grave doença e resolvera abandonar tudo. A verdade era bem diferente: o dono, na verdade, era uma dona. Seu nome era Carmem Vasconcelos. A mesma Carmem que agora estava colocando o anúncio no jornal.

Carmem ainda se lembrava gostosamente de seu pai, Genro, tocando com vigor e entusiasmo os negócios da mina. Não mais se recordava de quando isso havia ocorrido, fazia muito tempo, mas as lembranças a perseguiam sempre.
Genro enviuvara ainda jovem. Carmem era sua filha única: a esposa morrera no trabalho de parto do segundo filho, que acabou não resistindo também. A menina foi criada numa ampla casa, cercada por uma sebe verde e coalhada de plantas. Era solitária, entretanto. As outras crianças evitavam procurar a riquinha, como era conhecida, e Carmem substituía os amigos por bonecas de pano que espalhava por todos os cantos da casa. Era solitária, porém feliz.

Genro era um homem dedicado inteiramente aos negócios da mina de ouro. Só aparecia em casa depois que anoitecia, cansado, onde encontrava a pequena Carmem - a quem ele chamava carinhosamente de Bilila - a brincar com seus bonecos. A menina já passara da idade de brincar com bonecos, tinha pouco mais de doze anos, e Genro matutava com os botões o que estaria errado com ele e a filha para não conseguirem praticamente nenhum tipo de amizade no lugar. O homem era estigmatizado por ter dinheiro, ou era o que a população imaginava. Genro estava praticamente falido, com a mina de ouro dando apenas o suficiente para pagar parte das dívidas e para honrar os salários dos empregados. Isso não iria durar muito, ele sabia. Porém, na cabeça do povo Genro era um homem rico e poderoso, e todos mantinham prudente distância. Carmem era quem mais sofria com tudo isso, tendo sempre como única companhia uma velha ama-seca. Dona Gorete era o nome dela, e viera da Bahia.

Um dia Genro entrou em casa transtornado: a velha mina estava sendo acionada judicialmente na capital por alguns fornecedores e ele nada mais poderia fazer a não ser entregar os pontos. Chamou a filha e avisou-a com o rosto carregado por pesada contristação:

- Bilila, minha filha adorada, você é pouco mais que uma menina e vai ter de se virar com meus problemas. Papai está tendo que abandonar a velha mina de ouro, aquilo não vale mais nada. Meus homens cavam dias e dias seguidos para não encontrar coisa nenhuma. Eu ainda acredito que haja muito ouro escondido, mas meus credores não vão estar dispostos a esperar, e o jeito será fecharmos tudo. Amanhã eu vou despedir os homens.

- Mas papai, a gente sempre viveu bem aqui, por favor lute!

- Venho lutando, Bilila, mas agora acabou de vez. Vou fechar.

E assim se fez. Genro havia tomado, entretanto, algumas providências nas semanas anteriores, fatos que iriam mudar a vida de Carmem totalmente. Munido de alguns documentos da firma ele procurara um cartório e passara todos os seus bens para o nome da filha. Isso, imaginou, seria a maneira de fugir da sanha dos credores. A mina de ouro estava entre esses bens. Carmem passara a dona de fato, e só passaria a dona de direito quando passasse à maioridade. Até lá a mina ficaria fechada e abandonada. Carmem era dona de um buraco na terra.

Doze anos se passaram. Carmem era agora uma linda moça, bastante acima dos padrões da região. Seu pai, antes um homem dedicado ao trabalho, entregara-se à bebida com uma volúpia desusada. Genro entregara-se ao mesmo vício da totalidade dos homens de Poço Redondo, gente que esfriava o umbigo no balcão o dia todo, à falta de ter o que fazer. Carmem passara a ser a mulher e o homem da casa, administrando o pouco que ainda restava dos bens e cuidando da saúde cada vez mais precária do pai. Genro parecia ter-se decidido a colocar um fim em tudo.

Numa tarde quente, com a natureza dormindo sob um sol escaldante, alguém gritou no portão alertando-a de algo muito importante:

- Dona Bilila, dona Bilila, acuda!

Carmem estava acabando de servir algo para o pai comer e saiu esfregando as mãos no avental. Era o Raimundinho, o rapazola do posto do correio. Ele trazia nas mãos um telegrama, que agitava feito uma bandeirola. Carmem recebeu a mensagem e leu-a em alta voz na rua mesmo. Era uma mensagem da capital, tratava de um pedido do governador para falar com "doutor Genro de Vasconcelos sobre a mina de ouro de Poço Redondo".

As coisas se precipitaram a partir daí. Genro viajou para Aracaju, onde foi recebido pelo governador em pessoa. A reunião era com uma equipe da África do Sul que viera ao Brasil para conhecer a mina de ouro abandonada e avaliar o potencial de extração. Era um grupo de dez pessoas. No meio delas estava Hans, um engenheiro de minas alto e magro.

Genro combinou a visita à mina para dali a uns dias.

Os sul-africanos foram recebidos como seres de outro planeta em Poço Redondo. A pequena cidade parou para receber aquelas pessoas estranhas e de fala engraçada. O prefeito havia preparado algumas palavras para enaltecer a raça negra dos visitantes, porém teve de rasgá-lo disfarçadamente ao dar de cara com dez homens quase albinos. Nunca poderia imaginar homens africanos brancos feito leite.

Os estudos e exames começaram nos dias seguintes. A mina apresentava algum risco, pois o teto de suas galerias havia sido construído de forma retangular, longe dos padrões de segurança. Os técnicos extraíram amostras, fizeram cálculos, e depois de uma semana Hans emitiu um relatório: a mina poderia ter ainda uma boa quantidade de ouro, porém seria necessário um estudo mais profundo, iria levar muito mais tempo pesquisando o potencial econômico da instalação. O chefe da missão, um velhote de longas suíças, designou Hans para ficar em Poço Redondo pelo tempo que se fizesse necessário. Do lado brasileiro deveria haver alguém que o acompanhasse, e para isso o doutor Genro designou sua filha Carmem. O inglês dela viria a calhar nesse momento.

Carmem conhecia a mina como ninguém. Desde criança seu pai a levava com alguma frequência ao lugar. Era uma das vantagens de não ter amiguinhos: a menina sempre fora livre, e cada visita ao trabalho do pai era um passeio muito especial. Carmem passou a trabalhar com Hans nas galerias da velha mina, explorando-a e colhendo as amostras que o engenheiro pedia, datilografando, escrevendo, tomando nota de tudo e dedicando-se como nunca ao trabalho. Hans passava a admirar a força e a graça da moça a cada dia, a travar com Carmem uma espontaneidade que ia muito além do puro contato profissional; o rapaz estava atraído pela beleza simples da moça e seu jeito direto e feminino.

As semanas passavam ligeiras. Hans começava a receber telegramas de seus chefes exigindo respostas mais satisfatórias, porém sempre argumentava que aquilo iria ainda demorar mais, que ainda não estava convicto o suficiente do potencial da mina. Suas desculpas encobriam o óbvio: Hans estava esticando ao máximo a estada em Poço Redondo. Seu coração cruzara o oceano para cair numa armadilha naquele fim de mundo. E Carmem percebera e correspondia a tudo, sempre dentro de um clima de cuidado e respeito que a época exigia. Poço Redondo era muito pequena para demorar a suspeitar do romance dos dois.

Os tempos eram muito difíceis. Estávamos entrando em 1942 e a Guerra se estendia feito um tecido canceroso por todos os lados. O Brasil via seus navios serem afundados inerme, e a opinião pública começava a apertar Vargas para que tomasse uma posição definitiva contra o Eixo. A 22 de Agosto de 1942, após uma reunião tensa no Congresso, a declaração foi assinada: estávamos em guerra contra a Alemanha, Itália e Japão.

A massa ignara que habitava a pequena Poço Redondo passou a examinar a figura alta e branca de Hans com atitudes cada vez mais suspeitas, com uma desconfiança crescente. Pelas ruas do Rio e de São Paulo falava-se de conflitos envolvendo brasileiros que tinham o azar de serem descendentes de italianos, japoneses e alemães. Ora, em Poço Redondo Hans passou a sofrer a mesma perseguição, apesar de ser sul-africano. A ordem era perseguir os estrangeiros suspeitos, e Hans jamais poderia passar despercebido no meio de pessoas com pouco mais da metade de sua altura. A tensão era crescente.

- Carmem, preciso lhe falar. É importante - disse Hans numa tarde.

- Diga.

- Bem, vou tentar ser direto. As coisas estão piorando por causa da guerra. Já estou aqui há mais de dez meses e não tenho mais como prosseguir enrolando, como dizem vocês, os meus chefes na África do Sul. Já arranjei desculpas demais. Vou ter de ir embora.

Carmem estremeceu.

- Eu sabia que um dia isso iria acontecer - disse ela banhada de lágrimas. - Fui inocente em imaginar o contrário.

O rapaz tomou suas mãos e as beijou ternamente.

- Vou para casa. Tenho de me apresentar lá e voltar à vida normal. Nem preciso lhe dizer que assim que tudo tiver nos eixos eu quero que você tome um navio e vá para lá. Quero me casar com você.

O coração da moça estava aos pulos. Abraçou Hans e o beijou ternamente. Em alguns dias Hans voltou para a África do Sul.

As cartas começaram a chegar a Poço Redondo com uma constância mensal. Carmem as abria lividamente, devorando as palavras. Hans relatava que as coisas estavam difíceis com a guerra, que seu país estava atravessando grandes dificuldades devido ao bloqueio do trânsito de navios imposto de um lado pelos aliados e do outro lado pelos alemães. Poucos navios se arriscavam a passar pelos bloqueios, e o faziam sempre comboiados, com grande dificuldade. Hans imaginava que a guerra ainda iria durar um bom tempo e pedia a Carmem para ter paciência, que logo as coisas iriam se acertar e ela poderia viajar para se casarem.

Num determinado mês a tão aguardada carta não veio. Carmem passava pelo correio diariamente e nada. As semanas começaram a se arrastar e a moça, deseperada, ansiava por notícias, sem sucesso. Hans parara de dar notícias.

Bilila ia aos poucos definhando. A tez morena empalidecia, os ombros caídos, cabelos em desalinho. Ela ainda não sucumbira totalmente, e passava toda semana pelo correio para ouvir a mesma mensagem: não havia nenhuma carta.

Os anos começaram a correr. Carmem perdera o pai para a bebida. Genro fora encontrado numa vala suja, a roupa rasgada, ao lado de uma garrafa vazia de aguardente. Os ratos haviam devorado parte de seu rosto. Bilila recebeu a notícia em casa, trazida por uma vizinha. Não chegou a se abalar, apenas cerrou os dentes e chorou baixinho. Em sua cabeça, agora bastante debilitada, imaginava que alguma coisa havia dado errado no passado, algo a desviara do caminho da felicidade, tinha de haver uma resposta para tanto sofrimento. A morte do pai acabaria por desestabilizar de vez a mulher. A pequena casa da rua das Donzelas permanecia fechada a maior parte do dia. Só à noite uma luz tênue de vela se fazia perceber nas janelas, a indicar que ainda havia vida por ali.

Os anúncios começaram a aparecer misteriosamente no Sentinela de Parapuca, o jornaleco de Poço Redondo:

Precisa-se
Preciso da metade de um coração
Pago uma boa recompensa
Tratar na rua das Donzelas s/n, ao lado da quitanda, bairro Tordo Dentirrostro
Fone 37-XXXXX - chamar dona Bilila

Seu Demétrio era quem montava os linotipos no jornal, e no princípio não deu muito crédito, imaginou tratar-se de uma brincadeira ou de um jogo de adivinhação inventado por algum comerciante mais esperto. Porém depois de alguns meses isso passou a incomodá-lo, a atrair-lhe a curiosidade. A cada três meses alguém vinha ao balcão de seu jornal e mandava imprimir aquele anúncio estranhíssimo. Devia ser uma mulher de miolo mole, como tantas que conhecera depois da guerra. O homem notou certa constância nas datas, e passou a aguardar a chegada da mulher que viria fazer o anúncio, sem no entanto obter sucesso. Nunca viria a saber quem havia feito o anúncio, apenas que se tratava de uma mulher bastante triste trajando sempre uma roupa velha e amarrotada. Os anos passaram, e um dia o estranho anúncio parou de ser publicado.

Em 1985 o jornal Correio da Manhã noticiou a intenção da empresa RENA de reanimar os trabalhos de pesquisa na mina de ouro de Poço Redondo, na tentativa de tentar aproveitar ouro, prata e estanho. Essa empresa iniciou os trabalhos em Janeiro de 1991 na mina, trazendo de volta os empregos e a esperança ao lugar. Faziam parte do consórcio os governos da Inglaterra e da Espanha. Os técnicos trazidos de São Paulo e do exterior começaram a aplicar na velha mina as mais modernas técnicas de prospecção e análises, animando o lugar.

Os trabalhos tiveram de ser interrompidos em 1993, depois de um estranho incidente. Numa das galerias da mina um trabalhador havia encontrado escondido sob um laje um esqueleto de mulher. Trazida ao local, a polícia, que a princípio imaginou tratar-se de homicídio, nada descobriu de irregular com o corpo. Numa das mãos da mulher foi encontrado um punhado de papéis amarelados, mas onde se podia ler claramente uma página amarfanhada de jornal dos anos sessenta, com um anúncio ressaltado por um círculo feito a lápis:

Precisa-se
Preciso encontrar a outra metade de um coração
Seu nome é Hans
Tratar na Velha Mina de Ouro de Poço Redondo
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