UM PASSARINHO
Agliberto Cerqueira
 
 

A mãe, ao tanque, ensaboava uma calcinha da patroa e cantarolava a canção popular enquanto o filho de 11 anos, promessa de redenção para o seu futuro, ao tentar pegar um passarinho com as mãos, caía da sacada do décimo sétimo andar do apartamento em que ela trabalhava e onde, dali a pouco, iriam almoçar juntos a bóia trazida na única marmita.

Acompanhando o vôo vertical do passarinho, ainda que não fosse esse seu grande plano, o menino lembrou-se rapidamente e mesmo que não o quisesse, de quando os pais, que nessa época ainda dormiam juntos, faziam-no flutuar sobre espaços imensos segurando cada um uma de suas mãos até que um dia a mão do pai soltou-se da sua e só voltou muito tempo depois. Viu a mãe agachada, com os joelhos em carne viva, esfregando com cera um quintal enorme de cimento na casa dos estrangeiros e sorriu da rua para ela que acenou com a mão que segurava o pano engordurado.

Assistiu com os irmãos o dia que todos os livros do pai foram queimados porque os paisanos passaram a fazer investigações no bairro e podiam levá-lo preso novamente caso encontrassem materiais suspeitos. Dissimulou para um polícia, que encostou como quem não quer nada e lhe perguntou se conhecia algum dos procurados estampados nas fotos do cartaz na estação de trens. Apanhou da mãe no dia em que atirou e abriu com um soquete de poste a cabeça de um menino sem que ela pudesse compreender que havia sido em legítima defesa. Repetiu na escola no ano em que a coruja pousou na palmeira que havia na casa defronte a sua. Viu o primeiro peito enorme, branco, cheio de leite, com que a vizinha francesa amamentava a primeira filha. Apaixonou-se pela menina que lhe jogou um bilhete.

Desceu com a puta para o meio do mato e trepou pela primeira vez. Prendeu pombos nas armadilhas e depois os comeram. Marcou o gol mais lindo no jogo em que seu time foi derrotado. Afogou os filhotes de gato na bacia de água e depois se arrependeu. Viu sem querer uma velha mijando mas que não o deixou ir embora até que terminasse. Matou a pauladas o frango que comia as verduras da horta. Nadou na barroca onde boiavam carcaças apodrecidas. Bebeu água fresca da mina onde uma cobra adulta fazia seu ninho. Recolheu argila e moldou brinquedos que sempre quebravam. Amarrou a toalha de banho no pescoço para imitar seu herói. E voou desabalado como todos os meninos que sonham.

Até que o baque seco alertou o porteiro do edifício e assustou as pessoas que passavam. Alguém gritou. Os carros foram parando pelo ajuntamento de curiosos. Um ônibus buzinou na esquina. O motorista do caminhão desligou o motor. Janelas abriam-se umas após as outras. E num instante a multidão fechou a rua. O corpo achatado na calçada enquanto a mãe, ao tanque, cantando uma canção, pendurava no varal a calcinha da patroa.