HARMÔNICA 42
Eduardo Prearo
 
 

As horas voam como pássaros supersônicos, as mãos tremem, há pessoas solitárias como ele, Tred. A vida continua após cada último ronco. Ele sabe que o conhecem muito bem ou então conhecem os meandros por que passam pessoas como ele. É inverno, é agosto, mês aziago. Sim, há sempre alguém pra conversar quando se quer, mas não uma conversa amistosa; há estranhezas profundas inexplicáveis nas entrelinhas alheias; a simpatia lhes foge talvez, arrisco, porque ele seja tido como um coitadinho, vai saber, depois de tudo, depois de todas as deformações que provocou em muitas pessoas. As coisas mudaram, não há sequer um amigo, um próximo, mas só gente desconhecida murmurando algo como malandro, sem-vergonha, assassino, babaca; murmúrios que evocam uma eterna e inexistente inimizade. O que ele quer? Ele não sabe o que quer. Da janela avista um hotel todos os dias, e nesta noite há muitas luzes acesas; claro, afinal é sexta-feira. A janela da suíte presidencial está também acesa, e vez ou outra alguns aviões passam pela rota leste-oeste. Sente-se marcado para não viver. Como expressar-se todas as manhãs, se é que alguns crêem que há ainda manhãs para ele, através das palavras? Quer falar, e quando quer fala com as paredes. Angústia mortal. Aliás, Angústia Mortal foi o livro que seu avó lhe deu na adolescência. Havia uma borboleta azul na capa do livro, e por vezes ele imaginava-a saindo da capa, voando por seus sonhos incompletos. Quer chorar, mas seu choro não seria diferente das pessoas solitárias, abandonadas. Quer sair um pouco, falar com alguém, mas esse alguém é sempre o mesmo, não em forma; esse alguém lhe tratará como aquele senhor que ainda é jovem, mas um senhor sem a mínima possibilidade para algum vínculo, pois talvez seja impuro e tudo o que não querem para si próprios. Uma vez só, que se lembre, na semana passada, acordou bem. Não sonha mais. O que fizera no dia anterior para ter acordado bem não se recorda. Não vale nada, foi o que ouviu hoje, uma frase vinda de alguém, obviamente, não do seu interior. Mas ficou pensando, realmente não vale nada. Todos parece terem um preço. C`est combien? Relaciona o não valer nada com o estrangeiro, pois quem vale algo sim, tem a possibilidade de ir pra lá sem envergonhar os que vivem no poço. Da última vez em que esteve em London, desprezaram-no e ele não soube o porquê. A harmônica atual por que passa, a harmônica 42, diz que seria uma época propícia pra estudos, e que há um leão no ascendente. Mas será isso mesmo? Não tem certeza. Não, não se daria bem em Israel, eles não o vêem com simpatia desde que a cirurgia que fez na mulher de um embaixador foi mal-sucedida. A borboleta azul está agora voando pela sala, e reluzente, pousa sobre o computador pré-histórico. Ela fala, talvez seja uma fada.

"Oi."

"Oi. Eu não sabia que borboletas falavam. Grato por ter aparecido, saído da capa de um livro que não sei onde se encontra mais."

"Você está satisfeito, mas se sente angustiado."

"Vai ficar por aqui? Lá fora está frio, hein."

"Você ainda vive."

"Eu sei, apesar de hoje uma desconhecida ter me falado alguma coisa sobre meu caixão. Creio que me acham um morto. Aqui onde estou morando no momento, não tenho me assustado mais como antes, quando morava em flat. Eu achava os flats lugares elegantes para se viver. Disseram-me que estou relaxadinho, e naquela época dos flats não diziam isso. Mas eu, eu por eu mesmo, acho que não estou relaxado. O deslumbramento terminou, mesmo que achem que continuo deslumbrado com essas festas paulistanas. Não me tratam mais por doutor, nunca mais tratarão. As pessoas me olham com medo, um medo calculadíssimo. Tenho tido convulsões, sabe, coisa de velho. Se eu deixar, as mãos irão tremer muito. Pedi a Deus pra ser útil e ele disse não."

"Por que se recusou a voltar pra Nínive?"

"Não, eu ia subir a escada, mas o anjo me mostrou que tenho algo pra fazer ainda aqui."

"Vão te mostrar o inferno."

"Pois que mostrem. Eu não temerei. Estas lágrimas nunca foram puras como o orvalho."

As horas voam como pássaros supersônicos, Tred renasce com o Sol, dejà vue. Veste qualquer roupa quando está se sentindo bem consigo mesmo. De manhã é quase outono. Tred acha que Dr. Nicols não era horroroso. Mas o conhecem bem, ah como conhecem. Ou então conhecem os meandros por que passam pessoas como ele. Põe o filtro dos sonhos na área da amizade, pois amizade agora é sonho, e suja o piso branco do banheiro com a graxa do sapato. Passa um pano cheio de mosquitinhos, mas não resolve muito. É preciso pegar um balde, pôr um pouco de água nele com desinfetante e ir passando o pano. Mas Tred tem pressa. Porco! Não toma nada, o leite parece estimular vícios, ainda mais com o açúcar branco. Ghandi confessou que tomou leite de cabra quando estava fraco; mas por aqui, leite de cabra é caro. Ghandi era como ele, uma serpente de Libra. Na rua um moleque lhe dá um planfeto. "Mademoiselle Caroline revela seu futuro. Ligue para 3283-1906 e marque uma consulta." Tred imediatamente liga e marca uma para as três da tarde. E até lá as horas voam como pássaros supersônicos.

"Mademoiselle Caroline,je m`appelle Tred. Bonsoir"

"Enchanteé. Mas falemos em português, sim? E o que o traz aqui?"

"A senhora deveria saber, não é?"

"Veremos através das cartas. Espere um pouco na sala, pois preciso terminar minhas rezas. Volto num instante."

Tred senta-se em um sofá cinza, afunda-se nele. Há sobre uma cômoda de madeira alguns portas-retrato: fotos de um homem de meia-idade, talvez o marido da mulher. O telefone toca, Mademoiselle atende de onde está, na outra sala. Ou seria da cozinha? Ou seria de um santuário? Ela reaparece e o conduz apressada para um lugar onde há várias imagens de santos, muitos apetrechos de duvidosas iniciadas. Por que não sentar-lhe a mão na cara? Ela é uma cambalacheira, está óbvio, mas não tão óbvio quanto o que vêem nele aqueles que lhe conhecem.

"Fazia tempo que eu não recebia um libriano aqui"

"Eu não sou de libra, sou de áries, minha senhora. Presumo então que seja uma cambalacheira."

"As portas lhe estão fechadas. Todos sabem o quanto tornou homens e mulheres infelizes com suas cirurgias estéticas. Você saiu em todos os jornais como um médico incompetente e adoidado. Deve estar sendo processado sem parar. Livrou-se da cadeia por muito pouco, não é?"

"Sim, e há algumas chaves para que eu possa abrir as tais das portas?"

"As pessoas se afastaram de você."

"Sim, fiquei insano num ponto quase assustador. Com referência à parte amorosa, tudo anda na mesma. Não surge ninguém e também não quero ninguém. Todo mundo fala a mesma coisa, vêm sempre com os mesmos papos. As pessoas parecem irem pra frente, estudam, trabalham, suam. Eu cristalizei na mesmice, na mediocridade; desandei. Se bem que otimizei minha solidão: estou aprendendo a me divertir sozinho."

"Fuma."

"Sabe, dona, vou lhe contar uma história que nunca contei a ninguém. Eu era muito pequeno ainda, tinha uns oito ou nove anos. Costumava andar por uma floresta escura no interior; eu morei muito tempo no interior. E um dia me deparei com uma mulher estranha, vestida de preto, e que tinha um olho só; um grande olho formidável. Ela me disse que seu nome era Coiote. Que nome estranho para uma mulher, não? Achei de início que era uma dessas ciganas deformadas, mas depois percebi que ela era algum tipo de deusa. Ficamos poucos minutos um de frente para o outro. E nesses poucos minutos ela me disse que eu jamais conheceria a felicidade. Pois é isso, minha vida agora é assim. Eu desconheço a felicidade. Dizem que a felicidade está em servir. Mas eu não sirvo. Há competição para tal, mormente nessas instituições que fazem triagem para voluntários. Claro que diante dessa situação se deve servir de uma forma autônoma: dando um conforto a um mendigo, enfim, fazendo uma boa ação, desde que não surja alguém como uma lince para fazer primeiro, como acontece muito em alguns casos. Mas em outros, em que há necessidade de se ajudar uma pessoa, ninguém levanta um dedo. Eu sou assim também, não tenho tato. Mas percebo que ter tato é perigoso; a vida é um jogo, todos são demais meio da conta de perigosos. Eu me tornei como ela, cheio de imprevistos"

"Tred, sinto muito, mas isso aqui não é uma sessão de psicanálise. Olha, não vou lhe cobrar nada, está bem?"

"Mas a senhora não disse nada, não disse onde encontrar a chave, e se há mais de uma. Não disse se tenho alguma chance."

"Você não é um pessoa solar. Dificilmente alguém bem-sucedido cristalizará por você novamente em qualquer aspecto."

"Sim, eu sei, meu mapa tem poucos aspectos. O mapa de Napoleão, um grande italiano, é que é fantástico. O nariz dele...quantos homens não invejaram aquele nariz! Ah, e por falar em astrologia, qual o signo de mademoiselle?"

"Ah, você está me cansando, senhor. Vá embora, tenho mais o que fazer. Se aceitar que eu lhe faça alguns trabalhos, poderemos continuar. Mas vá, vá embora. Passe aqui outra hora. Pense nesta palavra: andrologia. De qualquer forma, sua vida mudará radicalmente"

A noite de sábado chega convidando-o a tomar soporíferos. Ele hesita, e hesitar não me parece bom, nunca me foi. Recebeu um convite na última quarta-feira: lançamento de livro. Agora estão a convidar fracassados, um engano, naturalmente. O evento será amanhã, no domingo. O que fazer nesta noite de sábado? Quer ressuscitar U. de algum lugar da memória. Antes dela partir, em um noite estrelada, eles estavam em um bar tomando sorvete de pinga. Estavam juntos há mais de um ano. Quando U. soube que estava com o caranguejo lhe comendo a carne, eu estava próximo dela; fui eu quem abriu o resultado dos exames. Mas Tred nunca soube disso, nunca soube que eu e U. tínhamos um caso. Tred tinha certeza de que ela o amava. Nessa noite em que estavam em um bar, U. pôde perceber que o amor de Tred era incondicional,mesmo a aparência dela tendo mudado significativamente: o rosto, a pele, os cabelos que outrora foram lindos estavam repugnantes. Tred mantinha uma expressão de nojo incontrolável. Pensou até em matá-la para que ela não sofresse. Não, a última coisa que quis na vida foi que U. sofresse, não por aquilo. Mas ela se foi sem dar um gemido: faleceu nos braços dele, em um banco de praça.

"Amor, você queria morrer em meus braços?"

"Ah, não sei. Mas você teria tempo pra isso? Não sei se quero morrer num hospital. Mas não vamos falar em morte, falemos em vida, vida! Fiz os exames, mas não vai dar nada grave, tenho certeza. E intuição feminina não falha jamais."

"Que tal tomarmos um vinho?"

"Se você pagar, eu topo. Mas não no apartamento onde moro. Aqueles vizinhos com aquela criança me incomodam um pouco. Queria sair dali."

"Você quer meu dinheiro, sua vagabunda? Você não merece um centavo do meu bolso. Se me pedir algo, te dou um pé na bunda."

"Você, neste caso, é diferente de todos os homens. Se namoramos há tanto tempo, por que não podemos nos ajudar financeiramente? E você é um cirurgião plástico bem-sucedido, sempre ouvi falar bem de você"

"Faz dois meses que não te vejo. Nossa relação deu certo porque é assim. Mas eu te amo."

"Você não podia trocar o mas pelo e?"

"Mas você é imperfeita, querida. Está ficando feia, pra ser mais exato. Eu poderia torná-la de novo bela. Sou apaixonado, super-apaixonado"

"Tred...desconheço relacionamentos assim como o nosso, mas tudo bem. Sinto-me uma excluída."

"Tem que ser assim. Meus amigos são pessoas bem-nascidas; têm tudo o que querem. Você não ficaria bem no meio deles, tem essa cultura barata de banca de jornal. E além do mais, é suja, marcada pela sociedade. Você sabe que é louca, não sabe?"

"Louco é você, imagine."

"Você tem que pagar por todas as gerações antes da sua, que fizeram mal ao meu povo, à minha nação."

"Você fala como um judeu. Tudo bem, eu pago o vinho. Guarde seus dólares para quem merece. Mas pelo menos nesta noite me ame...me ame como nunca me amou."

As horas voam como pássaros supersônicos. Escurece. Ninguém vai bater à porta, ninguém vai ligar a não ser que seja por engano, na tv haverá os mesmos programas de sempre, nas rádios as notícias terão o mesmo tom. U. se foi. Abre um leite, toma-o com bastante acúcar; que formiguinha está se tornando! Resolveu tornar todos feios depois que U. partira. No início uma rinoplastia mal-feita, depois um silicone com vazamento...Parecia-lhe que todos haviam sido culpados pela perda da beleza de U., pela morte dela. De médico a monstro bastaram alguns meses. Mas como diagnosticaram nele uma doença mental incurável, pôde safar-se das grades. Antes tivesse optado pela obstetrícia.

O telefone toca.

"Alô, doutor Tred?"

"Sim."

"Sou uma antiga paciente sua. Não, não se preocupe; não as de agora, as que o senhor enfeiou. Pelo menos dizem que enfeiou, porque pra mim beleza é algo subjetivo."

"O que a senhora quer? Estão querendo me botar num sanatório, sabia? E ninguém mais olha para minha cara."

"Bom, vou direto ao assunto. Um gato desses sozinho? Quero cuidar de você, tenho um instinto maternal muito forte. Sei que não tem família, que tinha uma namorada suburbana que morreu, sei de tudo. Vamos nos encontrar em algum lugar. Sou rica e poderosa, e podemos fugir, começar uma vida nova em outro continente. Paris, ah Paris! Daqui a pouco ninguém mais se lembrará do cirurgião plástico que enlouqueceu..."

"Pode ser agora?"

"Calma, meu caro. Não vá com muita sede ao pote. Mas sim, pode ser agora."

"Lembro-me de você, a belíssima Anne."

"No restaurante Club Glamour às sete?"

"Marcado."

As horas voam como pássaros supersônicos. Anne está mais bela do que nunca, com seus cabelos que brilham mais que vênus. O amor ressurge dos abismos do inferno. As horas voam mais, o tempo passa, Tred e Anne estão completamente apaixonados em uma ilha grega, Páros. As horas voam mais e mais. Anne, milionária, engravida. Nasce Tred Jr. Ele está sendo perdoado, sim, Tred está sendo perdoado. Mas me parece estranho que essa história acabe assim. Um doutor-bandido, mesmo com sua insanidade adquirida de uma paixão, talvez deva ser punido. E é isso que quero fazer, agora como justiceiro, agora aqui, em Páros. Vou matá-lo, por tudo o que fez a U., por todos os pacientes que deformou, humilhou. Mas não será uma morte qualquer, pelo menos espero. A vaidade dele irá ser solapada.

"Tred, há um pacote na recepção do hotel para você, querido."

"Mais um de seus presentes, Anne?"

"Não, não sei. Mas há um homem na sala de espera querendo entregá-lo pessoalmente, um desses gregos formidáveis."

As horas voam como pássaros supersônicos. Na área vip do hotel, um grego aguarda Tred, um grego realmente formidável, um canibal. Tred chega, cumprimenta-o, e o canibal avança sobre ele, devorando boca, nariz e um olho de uma só vez. As horas voam...