Tema 179 - QUATRO ESTAÇÕES
BIOGRAFIA
A INTERROGAÇÃO SOBRE O PONTO FINAL
Leo Guerra

O dia era chuvoso. A estrada, recém reformada pelo governo federal, expressava bem o processo de licitação nebuloso no qual se propiciou a tal reforma. Os buracos já estavam à mostra novamente e a sinalização escondida atrás do matagal, que se extendia pelos acostamentos. Ernesto guiava seu possante à cerca de oitos horas seguidas. O sono já lhe afetava os sentidos, mas ele precisava chegar em casa ainda naquele dia.

Foi numa curva sinuosa, no final da estrada, que Ernesto percebeu um problema nos freios. A roda direita dianteira acabara de passar por cima de um buraco bem no meio da pista, devido a trepidação o carro perdeu aderência com o asfalto e começou a bailar na curva, totalmente fora de controle. Ernesto instantaneamente fincou o pé no pedal dos freios, infrutiferamente. Lembrou-se rapidamente das palavras de Elisângela, ela havia advertido sobre a troca dos discos de freios. Segundo o mecânico que ela consultara, os discos não "prestavam mais para nada". Ernesto não havia dado importância a tal advertência, na verdade fazia certo tempo que não dava muita importância a tudo que Elisângela falava. Afinal de contas, segundo ele, ela já havia perdido todo senso lógico há muito tempo. Ernesto não tinha mais paciência para filtrar tudo que Elisângela falava, ele apenas ignorava. Perguntou-se como é que as coisas poderiam ter chegado aquele ponto, qual seria o local exato onde o trem havia descarrilhado?

Lembrou-se do dia em que a conhecera, o ônibus estava cheio e aquela tímida mocinha simpática fazia malabarismo com as sacolas da feira. Prestou-se a ajudá-la com as compras, dois meses passaram-se e Ernesto assumia o namoro com Elisângela. E quando se passaram dois anos, ele encontrava-se aflito numa mesa de restaurante. Segurava um anel de noivado aguardando a resposta de Elisângela. Quando ela pronunciou aquele "sim" sorridente, Ernesto pulou da cadeira eufórico. Abraçou o garçom, dançou com o pianista, mostrou o anel para todos que estavam naquele restaurante. Foi até Elisângela e tacou-lhe o beijo mais apaixonado que se tem notícia. Casaram-se exatamente um ano depois. Passados quatorze meses Elisângela deu a luz à Flávio, o primeiro dos três filhos que o casal viria a ter.

Ernesto lembrou também quando fizeram uma reestruturação funcional na repartição pública na qual ele trabalhava, agradeceu muito. A promoção que ganhou em decorrência disto ajudou-o a financiar os estudos de Flávio, que se encontrava no quinto ano de direito naquela época. O acréscimo nos vencimentos também contribuiu para realizar o grande sonho de Elisângela: Visitar Madri. Sem dúvida aquele tinha sido o período de férias mais emocionante da sua vida. Paralelamente havia recebido a notícia que seria avô. Ficou muito feliz, achava que era o vovô mais "sarado" do planeta. Afinal de contas, tinha apenas 46 anos.

Ernesto estremeceu ao lembrar do maior choque de sua vida. Pouco depois de fazer 26 anos, Enrico - O segundo filho de Ernesto - era um dos grandes nomes do atletismo do estado. Ganhador dos 100 metros sem barreiras três vezes consecutivas, ele já estava preparando-se para a competição nacional, e era um dos favoritos ao ouro. Numa manhã ensolarada, enquanto treinava, Enrico sentiu uma pontada no peito. Sentou-se no chão e desmaiou logo em seguida. Os médicos diagnosticaram como um ataque fulminante. Foi uma época dolorosa e difícil, Elisângela chorou horas a fio nos meses subseqüentes.

Ernesto sabia que depois daquele incidente ele nunca mais fora o mesmo. Tentava esboçar um tom de felicidade quando encontrava-se com velhos amigos ou recebia boas novas. Mas não conseguia disfarçar sua tristeza.

Passado algum tempo, começaram as discursões com Elisângela. Um prato fora do lugar, o carro mal estacionado, tudo era motivo para gerar um conflito. Ele começou a aumentar as doses de Uísque, não demorou muito a encontrar-se sorrateiramente com moças muito mais novas e interessadas em algum dinheiro.

O fato de Flávio ter ido morar no exterior em função do trabalho lhe incomodava muito também. Ele gostava das conversas com Flávio. Ana Paula, a caçula, estudava no Sul, mas nunca fora muito próxima a ele como Flávio era. Descobriu também que Elisângela começava a exagerar nos antidepressivos, na verdade ele sempre achou que ela era hipocondríaca, mas imaginou que isso logo passaria. Porém agora Ernesto começava a ficar preocupado, uma prima lhe advertiu que Elisângela começava a tomar doses cavalares dos remédios, sem receita. Isso o deixava bastante preocupado.

Quando viu que o muro estava se aproximando e o freio não funcionava, pensou o quanto se preocupava. Indagou se não poderia ele ter evitado tudo aquilo, se havia falhado. Se o dinheiro gasto com aquelas prostitutas em troca de um falso amor teria valido a pena. Haveria feito o suficiente para salvar-se e à todos ao seu redor? Porém, os freios não funcionavam, o muro estava se aproximando. A parede branca ficava maior a cada milésimo de segundo, e de repente o mundo apagou. Sob um dia chuvoso, numa curva sinuosa, um carro encontrava-se esmagado frente a um muro. Era o ponto final de uma vida, sem segundas chances, sem perguntas.

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