Tema 179 - QUATRO ESTAÇÕES
BIOGRAFIA
A CAIXA
Raymundo Silveira

"Caim respondeu: Não sei. Por acaso eu tenho que cuidar dele?"
(Gênesis, 4,9)

Um dos irmãos se vestia de relâmpagos. O que tu querias, monte de banha, te enxerga, cara, achava mesmo que essa mulher linda e gostosa ia ficar contigo, te olha num espelho, seu idiota gorducho, tu parece uma bola de quermesse, uma saca de estrume, um sapo... Prometeu, dezenove, cabelos e olhos escuros, alto, magro, musculoso, porte atlético, um Adônis. Epimeteu se vestia de trovões. Quase dois anos mais velho, gordo, baixo barrigudo, um batráquio. Miserável, te mostro do que sou capaz, nunca vou te deixar sossegado, vais me pagar ainda que seja no inferno.

Pandora lindíssima. No semblante, eterno sorriso. O contorno do rosto, o roliço dos braços e das coxas, as curvas do corpo, pareciam talhados a cinzel por mestres da Renascença. Tez morena, da cor trigueira típica das raças meridionais da península. Lábios carnudos e sensuais. Nariz perfeito entre as duas maçãs salientes da face. Brilhantes olhos castanhos. O olhar sereno irradiava serenidade. Da porção superior da fronte, emergiam as raízes de uma basta cabeleira muito negra e sedosa. Vestia-se de estrelas.

A rixa vinha desde quando se entenderam por gente. A mãe morreu de parto de um terceiro. Natimorto. Epimeteu era o predileto do pai, embora este se esforçasse para não deixar transparecer. A discriminação comprometeu o equilíbrio da relação entre os filhos. Muito do excesso de peso do primogênito era conseqüência da compulsão paterna em alimentá-lo, pois via na obesidade uma manifestação de saúde e vigor físico. Servia-lhe de auto-afirmação. Ao contrário do irmão, Prometeu sempre foi esbelto. Ao saírem juntos, costumavam ser vítimas de assuadas da parte dos moleques. Olha lá pessoal, o gordo e o magro. Ambos se mordiam de ódio. O ressentimento de Epimeteu era maior, por representar a figura mais ridícula da dupla cômica do cinema.

Para que servem os anos? Não sabiam. Entretanto, enquanto passavam, o irmão magro tirava partido da obesidade escandalosa do outro e passou a engrossar o coro de ultrajes. As humilhações faziam-no se sentir discriminado e infeliz. Jamais teve namoradas. As aulas de educação física eram sessões de tortura. Para ele, anoiteciam dias e amanheciam noites. Então, preferia não sair do quarto. Tomava o desjejum e almoçava dentro. Jantar fora, nem pensar. Um velho de pouca idade. Ou um moço senil. Enfim, uma vida aleijada. Apesar disto (ou talvez por causa disto) o pai redobrava os "privilégios".

Ao se saber alvo da paixão de Epimeteu, Pandora a princípio, se assustou. Depois, quis se divertir um pouco à sua custa: fingiu corresponder. O irmão, ao tomar conhecimento do namoro, decidiu: era a ocasião mais propícia para a grande desforra. Simulou não reparar e esperou que o outro se apaixonasse cada vez mais. Afinal, partiu para o ataque. Insinuou-se para Pandora e marcaram um encontro. Longe da vista do teu irmão, do contrário, nos mata, enlouquece ou comete suicídio. E se riu.

O resultado desse encontro quase teve o desfecho profetizado pela moça, porém terminou conforme começou essa história. Miserável, te mostro do que sou capaz, nunca vou te deixar sossegado, vais me pagar ainda que seja no inferno. O que tu querias, monte de banha, te enxerga, cara, achava mesmo que essa mulher linda e gostosa ia ficar contigo, te olha num espelho, seu idiota gorducho, tu parece uma bola de quermesse, uma saca de estrume, um sapo...

O presente não há, porque é mais fugaz que o pensamento. Portanto, nenhum episódio chega, de fato, até ele. Ao acontecer, já é passado. O futuro também não, pois ainda não houve. Logo, só existiria o passado. Passado já é passado. Então não existe mais. Conclusão: não existe o tempo. Mesmo assim se passou. Prometeu acumulou um vasto patrimônio. E se casou com Pandora. A hostilidade entre os irmãos evaporou. A amizade entre cunhado e cunhada se solidificou. E o excesso de gordura de Epimeteu se liquefez. Graças a uma operação no estômago. Agora, eram companheiros inseparáveis. Do episódio, do qual quase resultara um crime passional, nem sombra. Os três saíam pra jantar e se divertir. Só viajavam juntos.

Da antiga paixão do cunhado por Pandora, só restara uma tênue lembrança e os três a evocavam sorrindo. Prometeu tinha quarenta e dois quando sentiu os primeiros sintomas. A princípio as escleróticas ficaram levemente amareladas. Sobrevieram depois falta de apetite, febre, dores abdominais, emagrecimento rápido, coceira. Um médico amigo diagnosticou câncer do fígado e indicou internação imediata para avaliar a conduta a ser seguida. Preciso falar contigo, num local onde ninguém nos veja. Encontraram-se no escritório de Epimeteu após o expediente e se trancaram por dentro.

O que vou te contar somente eu e tu vamos ficar sabendo, a minha doença não tem cura, o câncer é primitivo do fígado e já se espalhou para os pulmões e para o cérebro, Pandora me engana com o meu médico e melhor amigo, descobri ontem à noite, ao abrir casualmente uma das gavetas, encontrei muitas cartas de um para o outro, começou há mais ou menos um ano, em várias, ele se refere a uma "caixa" que ela teria em seu poder, há recomendações explícitas e severas a respeito do cuidado a ser tomado quanto ao que contém, exige expressamente que a mantenha num lugar seguro, desconfio estar depositada no cofre forte de algum Banco, pois foi isto que o amante sugeriu noutra carta, estou disposto a seguir sua orientação profissional porque tenho de descobrir aonde querem chegar, se antes me acontecer o pior, prossegue com as investigações, não tenho idéia de qual seria a instituição onde a caixa deve se encontrar sob custódia, nem vou ter condições de averiguar, pois estou muito doente.

Jamais vou te deixar aos cuidados deste sacana. Espera, não terminei, não faz nenhuma diferença se eu ficar ou não sob os cuidados dele, consultei outro especialista e foi confirmado o diagnóstico, trata-se de câncer do fígado em fase terminal, assegurou-me que não tenho muito tempo de vida, preciso descobrir, meu único desejo é morrer sabendo tudo sobre a maldita caixa, ou pelo menos tendo a certeza de que tu saberás, só há uma maneira de conseguir isto, fazer com que os dois não desconfiem de nada, hei de tomar cuidado, um dia os ameaçarei, se me contarem tudo, ficarei calado, estou disposto a escrever uma carta de próprio punho isentando os dois de qualquer responsabilidade pela minha morte, para servir como prova na hipótese de surgirem suspeitas.

Contudo, se não me mostrarem, se não vir pessoalmente o conteúdo, todos ficarão sabendo que são amantes e premeditaram me matar, não é verdade, mas disponho de meios para incriminá-los, disto não tenham dúvida, no mínimo, ficarão sem minha herança, portanto, não adianta tentarem apressar a minha morte, pois já deixei providenciado para acontecer exatamente assim, então, só te peço isto, quando eu morrer, abre a minha boca e retira um pequeno envelope de plástico, conterá um fragmento de papel onde deixarei escrito, "sim" ou "não", no primeiro caso, significa que morri sabendo, portanto terei morrido em paz, por outro lado, se estiver escrita a palavra "não", quero que continues investigando até descobrir tudo, e então, destrói os desgraçados, tu me prometes? Mas... Não tem "mas", tu me prometes? Sim, pode ficar em paz, farei como disseste, prometeu a Prometeu, Epimeteu.

Exalou o último suspiro um mês e quinze dias depois desta conversa Poucos minutos depois Pandora e o cunhado se encontraram ao lado do leito do defunto. Tu te livraste da caixa? Sim, não te preocupes...

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