Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
OS GIRASSÓIS AZUIS
Luisa Ataide

È preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela"
Nietzsche


Da varanda do quarto vê-se uma pequena árvore sem galhos que nas madrugadas produz frutos. A claridade noturna sobre o fruto umedecido, que lentamente tomba em direção à proteção de cimento, age sonoramente. É inevitável acordar. Os primeiros anos eu achava tratar-se de um pé de damasco, esturricado e sobrevivendo cada dia um pouco. Todas as casas da vila são brancas e possuem jardins. Uns plantam rosas, outros margaridas, alguns deixam a grama estender-se como uma cama verde. Recebi a casa com os girassóis aos fundos. Lembro-me da primeira vez que vi a luz do sol se alargando sobre as pétalas abertas ao vento. O perfume inundava toda a casa. Imaginei que ali cresceriam os doze filhos que eu pretendia ter. Paulo, Pedro, João, Marcos... todos os apóstolos que o criador quisesse me confiar correriam entre os canteiros dourados. O jardineiro estava parado junto ao portão e esperava a resposta se eu ia querer seus serviços. Respondi a sua indagação com uma pergunta.

- Eles sempre brilham assim?

O homem olhou para o campo amarelo como se o visse pela primeira vez.

_ Os donos da casa foram embora por causa dos girassóis azuis.

_ Ahn...

Não quis alongar a conversa e disse não ter interesse nos serviços do jardineiro.Ter um estranho mexendo nos canteiros era-me totalmente desconfortante. Instruída com manuais de jardinagem, avental e ferramentas que eu nem sabia o nome resolvi cuidar do pequeno quintal. Só percebi a árvore seca na varanda muitos meses depois. Às tardes, sento-me no pequeno banco diante do jardim da casa e inevitavelmente lembro-me desta primeira manhã diante do oceano de pétalas amarelas. Havia um cavalo grande no fundo do quintal, que se espantou com a minha chegada e correu em direção à mata que contornava as casas da vila. Foi tempo suficiente para ver o rabo de crina farta e ouvir o trotar das patas sobre as pedras que completam a trilha à saída do terreno.

- Que belo cavalo, a quem pertence?

O homem olhou para todas as direções e informou não ver animal algum. Foi quando lhe perguntei sobre o brilho das folhas amarelas. A partir daí chamei secretamente de Encantado o animal de crina e rabo farto. Histórias sobre a casa número um da vila ouvi muitas, durante toda a vida. Que o antigo dono corria as madrugadas entre os canteiros tentando evitar que as pétalas mudassem de cor. Fadado a missão de não deixar que o cavalo comesse as folhas amarelas, pois uma vez sem pétalas as novas folhas, segundo ele, nasceriam azuladas.Corria de um lado ao outro. Sempre que as noites de lua visitavam as casas da vila, o pobre homem sentava no meio do campo florido e chorava copiosamente. Restou, alguns anos depois, levado pela ambulância da cidade, amarrado e aos gritos. A família, em alguns meses, resolveu vender a casa.

No terceiro ano vivendo ali, recebi a notícia da chegada do menino. A espera foi curta pois a notícia, da semana seguinte, foi que ele não mais chegaria. Passei alguns meses sem cuidar do jardim, e entreguei-me a desilusão da orfandade de filhos. Estavam suspensos todos os projetos de pegadas pequenas entre os canteiros amarelos. A parede da sala de jantar é de vidro e pode-se ver o vento balançando as pétalas grandes. Eu segurava ainda a xícara de leite quente entre os dedos quando ouvi o barulho. Era o ruído abafado de um trotar forte vindo de fora, sim era um ruído. Atravessei a porta aos saltos e senti apenas o vento sereno sobre as flores. Tombavam lentamente: caule, folha e pétalas amarelas. Nenhum sinal do bicho.

Sentei-me nos degraus da varanda e percebi que era o chamado de volta a vida. Contudo algo mais me chamara. Não era apenas o ruído de algo que não vira. Sentei-me no segundo degrau da varanda e olhei o que era uma grande bandeira dourada dançando em direção à mata. Senti alguém puxar a ponta do vestido. Era um menino pequeno, minúsculo como um menino polegar. Apontava as aves voando depois da mata. Sorria. Tinha o cabelo muito liso e a pele morena. Passei a conviver com o menino algumas horas do dia. Tiago, chamei-lhe assim, pertencia ao mundo do que poderia ser. Algo dentro de mim avisava todo o tempo que só eu via-o. O menino não falava nunca, embora aparentasse quase quatro anos de idade. Comunicava-se por gestos. Um dia dei-lhe uma caixa de lápis coloridos para que desenhasse. Apontei-lhe o jardim. Ele ignorou todas as cores: era um jardim, azul, branco e alguns tons de violeta. Tomei-lhe das mãos o desenho e senti uma pequena pressão do lado direito do ouvido.

Anos depois os outros três meninos chegaram a casa. Continuei conversando com o pequeno Tiago diante do jardim quase todas as manhãs. Oito apóstolos deixaram de bater a porta nos anos seguintes. Tive sempre a impressão de vê-los enfileirados me acenando em direção à mata. Essa visão franciscana me acompanha sempre antes do sono. Mas, foi dado mais do que o previsto. Contrariando todas as previsões médicas três crianças estavam do lado de dentro da casa. O polegarzinho, ainda, dormia em algum ponto do jardim. Quando os meninos partiam, pela manhã, com mochilas transbordando livros, em direção à escola, ele corria entre os corredores dos quartos. Com o tempo passei a não comunicar aos membros da casa que o menino ainda habitava entre nós. Sossegaram medicamentos, terapias, sobrancelhas arqueadas e risos. . Eu estava de volta a pia de louça suja como todas as mulheres da vila. Não há nada mais real e saudável do que uma casa por limpar. Ninguém nunca, contudo, tentou explicar o pé de damasco sem folhas, na varanda do quarto, que produz frutos todos os meses do ano: um único. Um após outro, carnudo e doce.

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