Tema 183 - Besteirinhas
BIOGRAFIA
NA GAVETINHA
Bóris Yan

No dia em que o Almeida morreu, houve um tumulto agonizante. A Irene, coitadinha, estava desconsolada, ficou o tempo todo sentada à beira do caixão, ora lastimava a perda do devotado esposo, ora acariciava-o. As filhas Nadir e Neuza, já mocinhas, eram consoladas por parentes e amigas.

- Como pode um infarto, assim, sem mais ou menos, matar um pai de família! Questionavam uns.

- Papai nunca sentiu, sequer, dores de cabeça! Justificava Neuza.

- Capricho de destino. Avaliava a mãe do defunto.

O velório foi interminável. As coroas de flores eram cinco ou seis, mas davam um conforto mórbido. Os amigos da família, clientes e colegas do escritório estavam todos envolvidos num clima de comoção geral, aliás, o doutor Varella fechou o escritório de advocacia para dar o último adeus ao sócio.

- Saia desta cadeira querida, vamos respirar ar puro. Imploravam as vizinhas.

- Deixem-me sentada aqui. Retrucava a viúva chorosa.

- Este ano eles fariam 18 anos de casados. Dizia, baixinho, a sogra do falecido.

Enfim, a noite chegou. Alguns que ficaram durante o dia foram descansar, outros vieram para acompanhar a jornada noturna. A noite estava calma, quente, céu estrelado, os compadres e comadres colocaram a conversa em dia. As crianças dormiram. Lá estava Irene, sentada a beira do caixão, conversando com o marido morto, chorando, lamentando, beijando-o...

No dia seguinte, o padre fez uma reflexão breve na igreja, mas não deixou de mencionar, exaltado, que a comunidade de Santa Marta perdia um cristão fiel, um pai carinhoso e um marido leal. O sepultamento foi uma coisa triste de se ver, Irene não desgrudava do caixão. A viúva fazia declarações de amor eterno aos prantos.

- Calma filha, pelo amor de Deus, calma. Pedia a mãe de Irene.

Ao som da primeira pá de terra sob o caixão, a viúva quase se jogou na cova. As amigas não podiam mais conté-la, ficando a cargo dos compadres essa dura ocupação.

- Te amo Almeida e sempre amarei. Gritava Irene.

- Acabe logo com isso. Exigiam os parentes ao coveiro.

O sofrimento de Irene era lastimável! Os dias que se seguiram foram igualmente duros. A viúva vivia em luto fechado, não saia de casa, não se alimentava regularmente, não ia mais à igreja, só usava roupas pretas e as pouca palavras que dizia, eram sobre Almeida. Preocupada com a situação da filha que estava visivelmente perturbada, Dona Clara, mãe de Irene veio passar uns dias em sua casa. As meninas até que cuidavam da arrumação, mas era necessário a supervisão de alguém, além, dos detalhes de ordem prática como alimentação, contas à pagar, etc. Almeida deixou um patrimônio razoável como: a sociedade no escritório, o sítio, a casa em Floresta da Mata e algum dinheiro depositado em contas bancárias na capital. Três meses depois e Irene seguia cada vez mais debilitada.

- Doença de amor. Suspiravam as filhas.

- Filha, ainda és jovem! Não sofras tanto, o tempo é um remédio. Filosofava Dona Clara.

- Por Deus mamãe! Almeida foi um santo e a senhora insinua que eu o esqueça, nunca, ouviu bem, nunca. Irritava-se Irene.

Irene envelhecera dez anos em quatro meses, uma lástima de vida. A casa era cheia de quadro com fotografias de Almeida, havia uma vela na sala que nunca se apagava, parecia que o defunto ainda estava ali, um horror! Numa tarde o doutor Varella foi visitá-las, todo educado, cheio de cerimônias, tomou duas xícaras de café e finalmente tomou coragem.

- Senhoras os tempo são difíceis no Brasil, há boatos de que sou comunista, imaginem! Riu-se.

- São tempos difíceis. Concordou Dona Clara.

- Penso em vender o escritório, claro que vou dividir justamente. Não é possível ser advogado aqui, quem dirá no Rio de Janeiro. Já discursava Varella. - Nunca pertenci a nenhum movimento de resistência. Falava de pé, como bom orador que era.

O monólogo ou a tese de defesa de Varella durou quase duas horas. As senhoras não alcançavam as idéias e o discurso do sócio do marido morto, mas acenavam com a cabeça sempre.

- Por tudo isso vou fechar o escritório. Concluiu o homem ofegante.

- Sim! Sim! Consentia Irene.

-Por favor, vá ao escritório e desocupe a mesa do meu saudoso amigo, lá há coisas pessoais apenas. Disse.

Mais alguns minutos de conversa e homem saiu todo desconfiado, imaginando-se seguido. Depois do jantar, Irene confessava a saudade que sentia de Almeida e também discutia as palavras do Dr. Varella.

- Comunismo? Perseguição? Que faremos mamãe? O país está mesmo confuso? Questionava Irene

- Amanhã cedo irás ao escritório. Ordenou D. Clara.

Há meses sem sair de casa Irene estava assustada, quase não dormiu a noite. Quando o dia se fez claro, Irene foi praticamente "empurrada" pela mãe a sair de casa.

- Tens que aprender a resolver tua vida sem o falecido. Dizia D.Clara.

Nadir trouxe um molho de chaves e uns papéis que não sabiam o que era. Finalmente Irene saiu de casa. Não cumprimentou ninguém pela rua, aliás, nem levantou a cabeça. Chegou ao escritório pálida, tímida e chorosa, como sempre. Funcionários e clientes olhavam admirados a viúva que dedicava-se ao luto e a memória do marido.

- Uma santa senhora! Que alma. Disse alguém.

Carminha, a secretária, lhe acompanhou até a porta da sala que dizia: Nestor de Almeida - Advogado.

- Se a senhora precisar de alguma e só chamar. Disse a simpática jovem.

Já na sala onde o marido trabalhou por anos, Irene chorou muito e mais uma vez exaltou a memória do marido. Do lado de fora, havia um silêncio absoluto, todos curiosos e prontos a ajudar se fosse o caso. Irene abriu gavetas e pastas, viu agendas e apanhou objetos. Algumas coisas eram pertinentes ao trabalho, outras eram realmente pessoais. Pegou canetas, fotos das meninas, fotos dela mesma, ajuntou porta-retratos e sentiu uma imensa saudade. Percebeu que havia uma gavetinha trancada. Forçou algumas vezes a gavetinha e até tentou arromba-la. Então, lembrou-se do molho de chaves, tentou algumas, forçou novamente, tentou outras chaves, até que numa das tentativas a gavetinha se abriu. Havia dezenas de cartas, algumas manuscritas com a letra de Almeida, então, tomada de curiosidade começou a lê-las. As cartas eram a correspondência entre Almeida e um tal de Jorge. Eram cartas de amor, fotos de viagens e passeios, além de pequenos souvenirs. Fotos do tal Jorge com pouca ou nenhuma roupa, fotos de Almeida coberto por plumas, cartas ardentes comentando a saudade que sentiam e os planos da próxima viagem de trabalho, que na verdade seria um passeio romântico. Bilhetes narravam o quanto Almeida tentava suportar Irene.

Primeiro veio o susto, depois a confusão e por fim a ira, muita ira.

- Desgraçado! Maricas! Esbravejava Irene.

Alvoroço do lado de fora. Irene saiu da sala possessa.

- O que foi Dona Irene? Questionou Carminha.

- Filho-da-puta, desgraçado, maricas. Dizia aos berros. - Eu aqui chorando pelo desgraçado que me traiu com um homem há anos. Gritava a quem quisesse ouvir. - Grandessíssimo filho-da-puta! Vociferava.

Quando tentavam acalma-la ele berrava ainda mais. Voltou para casa "cuspindo fogo pelas ventas", foi se livrando das roupas pretas pelo caminho mesmo. Já chegou em casa ordenando.

- O luto acabou hoje mamãe. Tire as fotos desse desgraçado da minha frente.

- Enlouqueceu menina? Assusto-se a mãe.

- Mamãe o Almeida é o desgraçado mais maricas que eu já vi na minha vida. Gritou

- Como assim? Perguntou estarrecida.

- É um grandessíssimo filho-da-puta, mamãe, eu vi! tava tudo lá na gavetinha.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor