Tema 183 - Besteirinhas
BIOGRAFIA
DEZEMBRO VERMELHO
Marcelo Aires

No verão de dezembro de 1988 morri pouco depois de completar dezoito anos. Eu era jovem e atraente. Foram duas mortes distintas, ambas minhas mortes. A morte física e a espiritual.

Minha mãe tinha ido a um centro de umbanda. A mãe-de-santo previu uma tragédia para aqueles dias, algo de ruim aconteceria comigo. Não deveria sair de casa à noite, contrariando o meu destino eu saí. Na tarde daquele dia, tinha injetado comprimidos de tarja preta misturados com vodca. Eram injetados na veia da coxa, já que nos meus braços era impossível, devido às inúmeras picadas. Antes de sair, comi duas bananas, foi o meu último jantar.

Não era preciso aviso do além para saber que a morte me rondava. Um cara, cujo apelido era Galo, um branquelo franzino de rosto encovado, de estranhos cabelos crespos, queria me matar. Ele, além de dono de bar, era traficante também. Eu e os amigos traficávamos para ele. Já tinha planejado organizar o meu negócio de tráfico e formar uma quadrilha. Foi um erro acreditar que o Galo iria concordar e o meu temperamento não ajudava muito.

Não me arrependo de nenhum dos meus dias. Aquela noite deveria acontecer. Antes de chegar ao local, bebi vinho gelado com os amigos no mato da Petrobrás, um lugar afastado de tudo. Cheguei ao bar completamente bêbado. O estabelecimento ficava na Olímpica, um bairro perto da minha casa. Não tinha nenhuma ligação com as Olimpíadas. Os atletas que lá existiam eram os levantadores de copos. E nem havia medalha para os melhores. Eu tinha que cobrar o Galo, me devia o dinheiro do roubo do depósito de gás que tinha feito umas semanas atrás para ele. O maldito alegou que não me devia nada. Pedi uma cerveja para o Galo e ele não me vendeu. Gritei, esbravejei e, num acesso de fúria, quebrei tudo, até a mesa de bilhar virei. O bar não era muito grande, tinha um balcão de madeira e algumas mesas de bilhar, algumas mesas e cadeiras de lata. Foram necessários cinco para me tirarem de lá.

No meio da rua ouvi quando o Galo me chamou. Começou a me ofender. O sangue ferveu dentro de mim. Puxei o facão, meu eterno companheiro, e parti para cortá-lo ao meio. Era reconhecidamente um covarde. Galo ficou por atrás de uma janela gradeada. Traficante e covardia não combinavam. Vi, mesmo no escuro, a imagem de um revólver. No entanto, continuei. Um estampido seco e senti um formigamento no dedo. Era uma bala que havia atingido a minha mão esquerda. Outro, a bala acertou o meu peito. Era calibre 22. Começaria a rasgar as minhas veias e provocar hemorragia interna, eu soube disso depois. Minha raiva era incontrolável. Mesmo mortalmente ferido prossegui. Os amigos, se eu posso chamá-los disso, fugiram. Sozinho na morte eu levei o último tiro no estômago. Cai quase inconsciente nos paralelepípedos da rua. Vi as casas logo à frente, um vento soprava contra meu corpo. Eu lutava no chão rastejando com a terrível dor que corroia meu interior. Senti uma mão delicada e fria no rosto. Era ela, a minha paixão daqueles últimos dias. Eu a havia conhecido depois de brigar com leões de chácara numa festa. Uma garota alta e magra de longos cabelos ondulados. Eram seis contra mim. Apanhei é claro, mas, se fossem somente três, teria sido diferente. Ela veio me ajudar. Levantou-me e limpou o meu rosto sujo da terra. Ainda não sabia o seu nome.

Da outra vez foi num cemitério. Sabia que ela me seguia. Estava com a minha gangue bebendo no cemitério, lugar perfeito para isso, então ela apareceu. Vestia um vestido bordô que não era muito apropriado para o verão. Na minha insanidade mandei os amigos a segurarem e deitá-la no túmulo. Tempos depois, fiquei sabendo que, se ela desejasse, teria nos matado sem o menor esforço. Eles prenderam os braços e as pernas ficaram soltas me chutando. Abri o zíper da calça e invadi o corpo frágil da menina. Ela se debatia, mas no rosto uma ligeira expressão de prazer, os seus grandes olhos azuis brilhavam. Saciado da minha vontade animal, deitei ofegante no piso corrompido perto de uma lápide, cheio de cera de vela derretida do último finados. Ordenei aos outros que a usassem como quisessem. E eles aproveitaram. Não era sempre que andavam com mulheres. Eram feios e cheios de cicatrizes. No lado oposto estava eu, louro de olhos azuis, uma franja desarrumada puxada para o lado. Forte e selvagem, vestia-me sempre de preto, camiseta e jaqueta preta, e calça jeans desbotadas. Tudo obra dos meus roubos.

Apesar de tudo ela veio me socorrer. Vi um carro negro de portas abertas. Dois homens fortes me jogaram no banco de trás como se eu fosse um boneco. Ela limpava meu rosto suado. Eu delirava. Repetia que não queria morrer, chamava pela mãe. Então, estranhamente, pude notar dois dentes maiores na boca da menina. Imaginei serem delírios na beira da morte. Eram as presas que rasgaram o meu pescoço. O meu sangue era vorazmente sugado para dentro dela. Ela parou, mexeu na bolsa e puxou um athame. Com ele cortou o punho e ordenou que eu bebesse o sangue que vertia escuro pelo ferimento. Eu recusei. Ela me obrigou. O nojo me invadiu, mas o primeiro gosto de sangue era doce. Bebia com violência, só parei quando morri.

Lembro dela, falando palavras incompreensíveis perto do meu ouvido. Eram instruções. Levaram o meu corpo gelado para os médicos do IML. Foi constatado que eu estava clinicamente morto. No necrotério, o médico legista examinou os meus órgãos. Era um procedimento corriqueiro. Eu estava bem ciente do que se passava, mas não podia me mover, foi horrível. Meu cunhado buscou o meu corpo, sei que para ele deve ter sido uma cena muito forte, eu jazia pendurado por um gancho nu com as suturas recém feitas pelo médico. Fui tratado como um marginalzinho qualquer, o que na verdade eu realmente era. A noite não parecia ter fim. Eu sentia tudo aquilo, mas meu corpo não agia perante aos estímulos da minha mente.

A minha maior dor não foi física. Foi à dor dos meus pais ao descobrirem que o seu filho tinha morrido tão violentamente. Destruiu a minha alma por inteiro. Minha mãe, quando soube, ficou deitada no chão gritando como louca, rasgando com os dedos a terra úmida. Ela não acreditava no que a vizinha tinha acabado de contar. A mãe não voltaria a ser a mesma pessoa alegre e brincalhona. Meu pai ficou imóvel, paralisado. Só lágrimas enchiam o seu rosto, os olhos azuis como os meus, verteram muitas lágrimas nas noites que se seguiram até o meu enterro. A minha família tinha dez membros. Além dos pais, eu tinha mais sete irmãos. O nosso pai era carpinteiro. Trabalhava no sol quente, construindo casas, enquanto eu roubava. Acho que fui um das maiores decepções dele, logo ele que era extremamente honesto, não levava um prego embora.

No caixão simples, ganhado pela prefeitura, jazia o meu corpo morto. Vieram os amigos e familiares. Fiquei incrivelmente diferente com a barba rala amorenada. Olhos azuis como vidro e uma terrível faixa branca de hospital enrolada na cabeça. As roupas de sempre, um cunhado que vestiu meu corpo rígido e frio. Saiam lágrimas dos meus olhos mortos. As pessoas diziam ser efeito da autópsia, mas eram lágrimas verdadeiras. Fui enterrado numa dessas gavetas que não são túmulos, mas são mais baratas. São como uma grande colméia de concreto, que cabe só o caixão deitado de comprido. O pedreiro lacrou com cimento a tampa do meu novo lar. A minha foto mais recente ficou numa moldura oval, lá estava meu nome e as datas de nascimento e de morte.

À noite, uma voz conhecida, a voz da minha salvadora. Ela ordenava que eu levantasse e saísse. Eu era como um Lázaro dos anos oitenta. Arrebentei a tranca do caixão podre e fraco. Tinha uma força sobre-humana. Com os pés tirei a pedra que tapava a gaveta por fora. Naquele momento renascia. Não era mais humano. Só mais uma criatura da noite.

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