Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
NATÁLIA
Fatima Reis

Natalia acordou sentindo as costas doerem tanto que ardiam. Sentir que sofria à toa era um castigo. Tão jovem e ao mesmo tempo, tão calejada. Por isso as costas lhe doíam daquela maneira. Cansaço de carregar o mundo sobre os ombros. Virou de lado e o cheiro de mijo do irmão menor penetrou-lhe na narina e ela foi se sentindo enjoada. Cheiro de mijo forte, quente, misturado com mijo antigo dos quatro irmãos menores que dormiam naquele mesmo velho colchão. A ponta de seus pés bateu nas costas da sua avó que dormia atravessada na cama. Natália encolheu o pé. Ela tinha nojo da avó e de suas pernas gangrenadas, cheias de feridas, que fediam, e que não eram nada agradáveis à vista. Na noite anterior, o pai mais uma vez chegara embriagado. Sua mais uma vez fingiu que não viu. E antes que o sol nascesse e iluminasse o interior do barraco, Natalia sentiu uma mão enfiar por dentro de sua calcinha. Sua boca ficou seca. Seu queixo batia, fazendo um barulho engraçado. Seu tio colou a boca em seu ouvido:

- Shiiiiii..., quietinha...

E lhe enfiou o dedo com mais força enquanto com a outra mão, bulia seus pequenos seios que mal acabavam de nascer. Ela odiava a sensação que sentia. Medo. Nojo. Aflição na boca do estômago. Taquicardia. Um rancor desesperado que ela alimentava como moedas num cofrinho. Sentiu asco quando seu tio deu um gemido curto e o liquido quente e viscoso jorrou em suas costas. Mais um dia começava no barraco de pau a pique.

A degradação e o caos só não eram piores que a aversão imperiosa que lhe devorava o corpo mirrado e ia comendo sua alma em pequenas colheradas. Panelas vazias, cheiro de mijo, gritarias, xingamentos, nenhum futuro à vista, tudo perplexo, profundo e deprimente. Mas Natalia vivia às turras com seus sonhos. Desejava ser modelo. Igual da televisão. Queria desfilar em passarelas com um gingado requebrado e cruzar as pernas em X. Tinha uma pele morena jambo, de olhos amendoados, dentes brancos de estalar no escuro lhe davam a certeza de um sucesso instantâneo. Diaba! Era assim que o tio a chamava nas noites em que calava de ódio, com a mordaça lhe apertando o coração.

Natália se sentia suja. Sabia que aquilo era errado. Mas não podia fazer nada. Se contasse, alguém acreditaria? Acreditaria? Tinha 14 anos. Tinha mente de criança, mas o corpo... Diaba.... Ela temia quando chegava à noite e o cheiro de cachaça que antecedia a chegada de seu algoz. Atrevido, vadio!

Na escola, a barriga vazia a impedia de prestar atenção no que a professora dizia. Ela abaixava a cabeça. A professora não gostava. Sentia-se afrontada. A aluna não prestava atenção nas coisas importantíssimas que ela tinha para dizer

- Menina abusada! Vai mofar na 3ª Série. Não quer nada. É uma burra mesmo.

Natalia foi parar na coordenação. Nada dela mesma. Mas era preciso tomar providências. Conteúdos a dar, responsabilidades com os documentos, prestação de contas à Secretaria de Educação.

Números, números, números....

- Essa menina é assim mesmo, não faz nada, é muito desinteressada. Vai ver é doente. Precisa de psicóloga, bater um eletro encefalograma, sei lá. Vamos chamar a mãe.

- Natalia, o que você quer da vida, minha filha?

Adiantaria Responder? Natália pensou olhando para as mulheres a sua frente e pensou em falar:

-Não quero aborrecer ninguém, só queria possibilidades. A possibilidade de não ser atazanada, de não ser estuprada todas as noites, a possibilidade de comer todos os dias, de meus pais terem um emprego e se não fosse pedir muito um vestido novo, com sapatos brancos! Eu adoro sapatos brancos! Mas Natalia ficou calada. A professora se sentia afrontada.

-Notas abaixo da média. Incompetente. Repetente. Insuficiente!Menina burra! Não aprende! Tem 14 anos na 3ª série!

Em casa a mãe chora. A vida é dura. Sem emprego, vivendo de biscate, devendo deus e o mundo.

- Mãe a professora não entende!

-Você é que não entende de nada! Eu não sei mais o que fazer com você. Eu não sei ler, nem escrever. Não aprendi na época certa, se não aprendi quando era pequena, agora não tem mais tempo.... Tempo... O tempo passa, e Natália vai ficando pelo caminho.

-Mãe, eu queria ser igual à professora. Queria ter educação, falar baixo, sem erro de português. Queria me sentar com as pernas fechadas, comer sem parecer esfomeada, ter caderno encapado com papel bonito, queria ter o carinho da professora, mas não consigo. Não consigo aprender a ler e escrever, embora esteja na escola desde os seis anos. Obviamente eu tenho um problema sério, grave e irreversível. Por isso, desisti.

Naquela noite, na escuridão da noite, seu tio finalmente lhe penetra. Não havia mais pureza para roubar. Só lhe restava limpar o sangue do colchão no dia seguinte. Lembrou-se da sua vó. A vida é teimosa. No outro dia de manhã, quando o sol invadiu o cômodo, a mãe descobre a mancha no colchão.

-Diaba! Bem que eu desconfiava! Fica atazanando a vida de seu tio! É por isso que não aprende! É por isso que não aprende! Agora você vai viver disso, sua imprestável!

E Natalia virou modelo de pista, desfilou nas ruas sua pele índia e seu andar em X. Fez programa todo dia de manhã até de noite. Aprendeu a beber de tudo de cerveja, merla, benzina e solventes. Aprendeu a fumar de tudo de cigarros, maconha e pedras de crack. Quando Natalia completou 18 anos, morena, bonita de jambo, olhos amendoados de estrela, sonhos estalados de menina-moça, foi encontrada morta na cela da prisão onde estava presa depois de ter assassinado um homem, supostamente seu tio, irmão de sua mãe, com quatorze facadas no coração.

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