Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
O TALENTO DO ESCORPIÃO
Luís Valise

A inspiração apareceu a coronhadas, e Ruy, não perdendo a chance, fustigou o teclado:

"Certo dia, ao ver um colibri sugando a flor, Ricardo percebeu a origem do seu amor por Luciana. Seu coração era um colibri (ou abelha?) sugando o prazer da vida que brotava nos olhos da mulher amada".

Enxugou o suor, acendeu um cigarro, deu um gole no uísque, e releu a frase. Julgou-a um bom começo para o livro que urdia em madrugadas insones. Quanta gente não ficava rica assim, pensou, à força das coronhadas que faziam brotar talento, por bem ou por mal? Só precisava decidir pelo colibri, ou pela abelha.

Talvez não fosse culpa sua, mas Ruy se sentia um inútil. Tentara várias profissões, fracassara em todas. Tinha se esforçado, enquanto os pais eram vivos. Filho único, orgulho do casal simples e honesto. Vira lágrimas nos olhos do pai, quando chegou em casa com o diploma. O velho acariciava os grossos livros de Direito, novos em folha. Dr. Ruy Campolongo. Logo percebeu que não aprendera picas durante todo aquele tempo. Nem tentou advogar. Entre um emprego e outro, fez um curso de Detetive Particular. Também não aprendeu muito, mas custou menos. Ganhou carteira preta com distintivo dourado. Comprou algemas. Não tinha licença para andar armado, mas comprou um revólver que deixava ao lado da cama, e que era seu xodó.

Sem aptidão para nada, escrevia contos de mistério, aceitos por um jornal que tinha espaço sobrando. Pagavam uma miséria. Sentava-se com a arma na cintura, esperando que o talento surgisse de repente, manso como um marginal amarrado. Enquanto escrevia contos, gestava aquele que seria um grande livro. Tinha a história quase completa na cabeça, o que faltava era um começo arrebatador. Mas depois daquele colibri (ou abelha) já não faltava nada. Sentiu-se esgotado. Se um simples começo exigira todo aquele esforço, como não estaria ao terminar o livro?

Trocou a bermuda e a camisa por uma calça jeans, justa, e camiseta preta. Viu-se no espelho como um daqueles tiras do Grupo de Operações Especiais, uns fudidões que encaravam qualquer parada. Guardou as algemas num bolso traseiro, e no outro a carteira preta de Detetive. Tênis de sola dupla, pra ficar mais alto. Achou melhor deixar a arma em casa.

O bar da esquina ainda não estava cheio. Encostou-se no balcão, e pediu o de costume:

- Parafuso, vê o meu aí!

Parafuso tinha uma perna mecânica, e ninguém sabia seu verdadeiro nome. Mancava pra lá e pra cá atrás do balcão, barba eternamente por fazer, camiseta de cor indefinida pela gordura que saía da chapa onde fazia seu famoso bauru. Pegou a garrafa de Licor de Ovos Tamandaré, a de conhaque La Vie em Rose, e misturou em doses iguais. Era a bebida preferida do Ruy. Como sempre, Parafuso espiava com o rabo do olho a reação do Ruy ao tomar a bebida. Como sempre, Ruy tomava aquilo sem fazer careta, virando o rosto para a rua, para que ninguém visse as lágrimas que enchiam seus olhos.

Algumas horas, e muitos cigarros depois, Ruy estava bêbado:

- A saideira, Parafuso! E um bauru pra viagem!

O balconista se equilibrou na perna boa, que era um pouco mais comprida que a mecânica:

- Já vai, Dr Ruy?

- Já, Parafuso. Estou trabalhando num romance.

- Romance? Qual é o nome?

- Ainda não sei. É sobre um colibri, ou uma abelha, que fica chupando o olho de uma loira peituda.

- Parece bom.

Três meses e oito quilos a menos depois, o livro estava pronto. Mostrou primeiro ao editor do Gazeta da Praia, onde publicava seus contos de mistério:

- Aurélio, é pra ser sincero. Se gostar, diga. Se não gostar, diga também.

Depois de alguns dias infernais, não resistiu, e telefonou:

- Como é, Aurélio, leu ou não leu?

- Li.

- E?

- Como você conseguiu? É ruim pra caralho!

Ruy ficou possesso:

- Você é que não entende porra nenhuma de literatura! Teu negócio é jogar nos cavalos! Vive pedindo dinheiro emprestado pros outros! Pensa que não sei?

Aurélio desligou o telefone, e nunca mais publicou contos do Ruy.

Os comentários de quem lia o livro não eram muitos diferentes da opinião do Aurélio, apenas mais educados. Ruy não acreditava, e não viu outra saída senão buscar a ajuda de quem realmente entendia do assunto: Pérola Peixoto. Crítica literária, famosa pela justeza com que criticava livros fossem lá de quem fosse. Quando o livro era bom, um comentário seu bastava para que virasse best-seller. Mas também, quando não gostava, seus comentários eram demolidores. Alguns amigos foram cautelosos:

- A Pérola, não, Ruy, é muito arriscado!

- Antes de mostrar pra ela, tenta mudar aqui e ali...

Ruy estava inflexível:

- Pérola, ou ninguém!

Mandou o calhamaço pelo correio. Por telefone, certificou-se que ela recebera, e quis saber:

- Quando posso passar por aí, para conhece-la pessoalmente?

- Pode deixar, eu mando avisar quando chegar a hora.

Sua voz era fria, impessoal, majestática. Ruy até comentou com o Parafuso:

- Mas comigo ela não come farinha, não!

Recebeu o recado: ir à casa da Dra. Pérola na quarta-feira, nove da noite.

No dia, teve que reconhecer, estava um pouco nervoso. Queria impressiona-la. Uma mulher daquela idade... devia gostar de homens viris. Então foi de camiseta preta, justa, e calças jeans, também justas. Comprou tênis novo, preto, de solado alto. Não fez a barba, para parecer rústico. Deixou em casa as algemas, e a carteira de detetive. Mas não o revólver. Este, ele levou, para compor o personagem. Cano curto, preto, calibre 38. Encaixado na cintura, sob o blusão de couro também preto. O ônibus estava vazio, mas foi em pé para não amassar a calça.

O prédio era em estilo clássico. Quem morava ali sabia usar os talheres. O porteiro tinha seu nome na lista de visitas autorizadas. Subiu no elevador adornado de latão dourado. Um apartamento por andar. Foi ela em pessoa que abriu a porta:

- Entre, meu jovem.

Aquilo o incomodou um pouco, afinal já tinha passado dos quarenta. Buscou não demonstrar irritação, e com um sorriso, beijou a mão da grande dama. A sala era decorada em estilo Luís XV. Bem decorada. Móveis caros, tapetes espessos, lustres que valiam tanto quanto um carro popular. Ela sabia receber, e ofereceu um licor. Ruy gaguejou:

- Tem de ovos?

- Menta. Ou de cerejas. Ou de amêndoas.

Ruy aceitou de menta. Ao estender o braço para pegar o cálice na bandeja, o blusão abriu um pouco, e ela viu que ele estava armado.

- Que belo revólver! Posso vê-lo?

Orgulhoso, Ruy tirou a arma e estendeu-a à temida crítica. Afinal, combinavam em algo.

- É uma bela peça. Deve ser bem eficiente. E está carregado com munição de carga dupla, o que o torna terrivelmente destruidor!

Ela mostrava que entendia mesmo do assunto. Em seguida, foi direto ao que interessava:

- Meu caro Ruy Campolongo, li seu livro, e devo confessar meu espanto. É seu primeiro, e único livro?

Ruy não escondeu o sorriso de satisfação, e orgulho. Deu um gole no licor antes de responder:

- Meu primeiro, sim. Último, nunca! Não saberia viver sem a dor e o prazer de criar outros livros, outras obras...

Não terminou a frase. A crítica segurou o revólver com as duas mãos, e deu sua opinião mais definitiva.

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