FESTA
DE FIM DE ANO
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Marcos
Correia
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Saí
da rodovia e virei à esquerda para passar por baixo da pista num
trevo bem sinalizado, antes de atravessar uma ponte e pegar uma estrada
de terra. O endereço e as orientações de como chegar
não deixavam margem para dúvidas, mas eu tinha esquecido
o nome do lugar. Fiquei atento, observando as saídas à direita
ao longo do caminho à procura do sítio onde a festa ocorreria.
Só notei que tinha passado do ponto quando cheguei a uma bucólica
vila no fim da estrada. Meia-volta, percorri o trajeto de novo no sentido
contrário, sem sucesso. Cheguei até o trevo de onde tinha
saído e voltei mais uma vez para a estrada de terra, no sentido
da vila. Meio contrariado com aquele vai-vem, resolvi pedir orientação
a qualquer um que aparecesse, cansado de dar voltas como pião.
Duas charretes passaram por mim levantando poeira, puxadas por cavalos
empolgados demais para interromper o trote e permitir um diálogo
com os condutores. Só
me restou seguir em frente. Na primeira portaria, que antes ignorei deliberadamente,
eu parei e perguntei sobre a festa da empresa em que trabalho. "É
aqui mesmo, siga em frente mil e trezentos metros e depois vire à
esquerda", disse o simpático porteiro. "Por quê
não perguntei na primeira vez que passei aqui?", pensei. E,
ao mesmo tempo, imaginei que aquele porteiro devia ter ensinado o caminho
para tanta gente nos últimos anos, que tinha se dado ao trabalho
de contar os metros que separavam a portaria do sítio. Coitado. No caminho
esburacado que se seguiu, percebi que minha noção de distância
é absurdamente ruim. Andei alguns segundos pela estrada sinuosa
e já fiquei ansioso: "Cadê o lugar?". Pensei em
parar o primeiro capiau que aparecesse para perguntar, mas me contive.
Olhei para o painel do carro, e percebi que deveria ter marcado a quilometragem
inicial. Aí era só fazer as contas para virar à esquerda
a exatos mil e trezentos metros da portaria. Tarde demais, não
tinha anotado a quilometragem inicial, fosse o que Deus quisesse. No fim,
porém, tudo dá certo, diz o cliché, e eu tive a oportunidade
de comprovar isso. Cheguei cedo à festa, ainda tinha vaga bem perto
da tenda, fui até lá. Desci do carro com uma forte impressão
de armadilha: "festa de empresa, só pode ser encrenca. Chefe
por perto vigiando, gente ficando pegajosa na mesma proporção
em que toma cerveja, longas conversas furadas sobre futebol e, claro,
sobre trabalho. Afinal, sobre o que falaríamos numa festa com colegas
de trabalho?". Lutei
contra o sentimento renitente, e prometi a mim mesmo nadar contra a maré:
"nada de falar de trabalho. Nada de ficar na mesma mesa o tempo todo,
com as mesmas pessoas que vejo todos os dias no emprego, falando das mesmas
coisas, com a única diferença de ser apresentado a algumas
esposas, maridos e filhos. Vou circular, puxar conversa com o cara da
contabilidade que tem fama de maluco, com o engenheiro de produto que
adora encher a cara, até com o office-boy de cabelo punk e piercing
no nariz. Vou sair corajosamente do meu círculo e, qual explorador
em terra estrangeira, travar conhecimento com outras culturas". Nunca
fui a uma festa da empresa em dez anos de carreira, com medo das armadilhas.
Dessa vez não tinha como escapar, seria homenageado justamente
por completar dez anos na empresa. No livrinho de marketing pessoal e
gestão de carreira que li, essa era uma regra sagrada: "não
falte a nenhum evento de confraternização!". Ai de
mim. tinha quebrado essa regra tantas vezes, que agora só me restava
tentar remediar a situação. Cheguei
e fui me espalhando. Cumprimentei quem eu conhecia e quem eu não
conhecia. Circulei pelas mesas, beijei esposas, apertei as mãos
de maridos, belisquei carinhosamente as bochechas de filhos. Senti-me
o próprio candidato, mas uma coisa engraçada aconteceu.
Fazer aquilo começou a me proporcionar uma genuína e sincera
alegria, uma satisfação pessoal. Que bom poder falar com
pessoas com as quais esbarro nos corredores da firma, sempre correndo.
Que bom saber que elas têm uma vida fora do trabalho, têm
amores, devoções, alegrias e tristezas. São gente,
enfim, não apenas colegas. Empolguei-me
por fazer parte daquele grupo. Na hora
da homenagem, mais surpresas. Não tinha tomado nenhuma gota de
álcool. Precisaria dirigir depois, sabe como é, a lei seca
está aí. Mas a emoção embriagou-me. À
medida que o animador da festa chamava os nomes, eu ficava mais excitado.
Até que chegou a minha vez. Fui chamado à frente da multidão,
meu diretor e meu gerente aguardando-me com sorrisos e presentes. Cumprimentei-os
sob aplausos dos colegas, fui fotografado com uma placa nas mãos
onde se lia um agradecimento por meu profissionalismo durante a última
década. Outros funcionários foram homenageados também, por 10 ou 20 anos de serviços prestados, e a festa continuou. Fiquei andando pelo recinto, olhando para aquelas pessoas, mostrando a placa para alguns que se interessavam em ler o texto, lisonjeado com aquela atenção. Comi, bebi (refrigerante, água, suco), conversei, dei risada. Um de meus colegas,
com quem trabalho mais diretamente, veio puxar conversar. "Sabe,
dez anos são muito tempo mas passam tão rápido!"
Fiquei esperando ele concluir o raciocínio. "Eu tenho nove
anos aqui na empresa, ano que vem eu que vou ganhar uma placa dessas",
prosseguiu. "Quando cheguei aqui, era solteiro, não tinha
filhos, não tinha casa própria. na verdade eu construí
minha vida por aqui!". "Eu também", percebi um pouco surpreso. A década passada nesse emprego, esse emprego que às vezes irrita exigindo mais do que queremos dar mas que também traz satisfação e alegrias, esta década, eu dizia, foi o período em que firmei rumo. Foi o tempo em que saí das garras do destino para fazer meu próprio futuro. Papai Noel chegou para fazer a festa das crianças, filhos dos meus colegas de trabalho. Fiquei observando de longe, quando caiu uma garoa que logo se transformou em chuva pesada. Enquanto as pessoas se abrigavam na tenda central, eu concluí que já tinha me divertido bastante. Fui embora, despedindo-me apenas de quem encontrei pelo trajeto até o carro. Dia seguinte, cheguei muito bem-humorado ao trabalho. Logo na entrada, dei um não-rotineiro bom-dia a um colega do RH. O rapaz, aparentando pressa e preocupação, não respondeu. Seguiu seu caminho escada acima, até o terceiro andar. "Pode fingir", pensei sem perder o rebolado. "Depois da festa de ontem, sei muito bem que você também é um ser humano". O sorriso ainda se mantinha no meu rosto quando entrei na minha sala para mais um dia de labuta. |
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