Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
UM CONTO DE BEIRA DE ESTRADA
Tieme Mise

Um freio brusco. Ananias abriu um olho, ainda adormecido. O caminhão estava parado. Havia uma mulher curvada na frente do caminhão. Chovia fino sob a luz do farol. O tio já havia descido da boleia do caminhão e rapidamente se aproximou da moça, que ostentava uma barriga avantajada. Ele falava algo e a mulher parecia relutar, balançando a cabeça, mas, por fim cedeu. O farol iluminava a estrada molhada. Puxando-a pelo braço seu tio a conduziu para fora da estrada e a colocou sob uma árvore.

Ananias pensou no contratempo. Olhou de soslaio para o relógio de pulso. Eram quase 23hs. Viu a mulher ajoelhar-se, como se possuída por alguma entidade de umbanda, e levar a mão à barriga.

Resolveu descer do caminhão que cheirava a manga madura, a carga que transportava. Foi se aproximando devagar quando um grito agudo rompeu o ar seguido de um longo e entrecortado gemido. A mulher se deitou, com os olhos arregalados. Agora o grito parecia um urro de um animal ferido. O tio, nervoso e meio atrapalhado pediu-lhe a manta grossa que havia comprado para o frio, que estava sob o banco no saco de roupas. Foi buscar a contragosto pois não havia sentido molhar a melhor manta das duas que estavam no saco, com a chuva que caia agora com mais força. Quando ia descendo do caminhão com a manta, ouviu um grito agônico e um choro estridente. Correu para o local vendo o tio debruçado sobre a mulher, tendo nos braços ensanguentados um filhote de algum animal. Apurou os olhos agora bem despertos e pode ver, através da chuva, um bebê que berrava enquanto seu tio ria como um doido.

-Anda, me dá a manta, Ananias.

Entregou a manta quase sem sentir. Seu tio enrolou o bebê desajeitadamente na manta e pediu o canivete e a linha de costurar a lona que cobria o caminhão. Desta vez veio correndo.

A mulher, sem forças, olhava a cena como se não fosse com ela. Viu o tio amarrar o cordão grosso e ensanguentado que unia o bebê à placenta imersa em uma poça de sangue, e com o canivete separou o bebê daquele complemento agora inútil. O bebê chorava. A mulher pareceu despertar do torpor que a acometera e estendeu os braços, recebendo o bebê enrolado na manta. Aconchegou-o ao corpo quente e ele, como por encanto parou de chorar. Meu tio perguntou onde ela morava. Ela lhe disse que o marido havia ido buscar a parteira e como estava demorando demais, as dores haviam aumentado. Resolveu ir até a parteira, mas não aguentou chegar até lá. Viu a luz do caminhão e resolveu pedir ajuda.

Enrolou-se na manta, aconchegando o bebê ao próprio corpo e foi até a boleia do caminhão amparada por meu tio. Perguntou o nome dele e o meu.

- Jose e Ananias - disse meu tio.

A mulher sorriu e disse que o menino se chamaria Josenias. Seria a única forma de agradecer a ajuda.

O caminhão parou em um vilarejo de casas pequenas. O marido e a parteira pareciam assustados pela ausência da mulher. A receberam com gritos e sorrisos de alegria. Ela orgulhosamente anunciou o nascimento do terceiro filho, desta vez um menino que se chamará Josenias. Entrou um pouco na casa pobre, mas limpa, de dois vãos apenas, enquanto o tio se banhava e trocava a camisa suja. Duas meninas dormiam num colchão em um estrado..

Após um café quentinho feito pela parteira, Ananias deu uma última olhada no Josenias que sugava com avidez o seio materno da mulher que sorria. Rejeitaram o convite para a pernoite. Mãos foram apertadas e José se despediu. Tinha pressa e já estavam atrasados mais de duas horas da entrega da carga de manga. Partiram sob a chuva fina que não cessara em nenhum momento. Ananias olhou o tio que mantinha um sorriso suave nos lábios e balbuciou

- Josenias!

Ambos sorriram. A estrada, agora novamente silenciosa, os engoliu!

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