Atualização nº 187 - ESCRAVO
BIOGRAFIA
O TIGRE E A TARTARUGA
Eduardo Prearo

I

Molinhara durante a madrugada inteira, e Bernadete ainda jazia na cama de viúva por volta das nove horas da manhã, momento em que a compainha soou. Ela assustou-se, é claro, pois naqueles dois anos e meio morando ali, sozinha, naquele apartamento, jamais ocorrera um fato desses. Levantou-se, vestiu o robe negro e espiou pelo olho mágico. Era um tira com a arma em punho. Em segundos passou-lhe pela cabeça os crimes que achara que cometera, todas as dívidas não pagas, seus surtos horrorosos, os pequenos furtos que fazia quando embriagada. Talvez fosse uma blitz ou algo assim. Antes de abrir a porta, bradou:

- O que você deseja?

- Abra. Precisamos revistar o apartamento. Estamos com um mandado.

Bernadete abriu a porta e deixou que os homens entrassem. A casa estava bagunçada demais, justo naquele dia, justo naquele instante. E ela que sempre deixava a casa em ordem, limpinha a seu modo, agora estava envergonhada. Pediu para o policial ler o mandado, e verificou que se tratava de uma queixa sobre droga, mais especificamente sobre haxixe. O cheiro certamente incomodara algum vizinho, mas era estranho. O morador antigo fora usuário, se bem que mantinha certos cuidados: utilizava incenso japonês e bom-ar para afastar o cheiro. De qualquer forma, não havia maconha no apartamento; Bernardete parara por uns tempos com a droga. Na universidade houvera um professor que lhe dissera que a maconha expandia a consciência, coisa em que ela no fundo nunca acreditou, mas fingia acreditar.

- Sua vagabunda. Já passam das nove e meia e a senhora ainda está aí.

- Eu não tenho passagem; os senhores podem verificar. Ando realmente acomodada ultimamente, vivendo de bicos. Mas se quiserem, podem ver pelos laudos médicos que sofro de uma esquizofrenia que agora não me recordo a nomenclatura. Vocês vão me levar presa? Se vão, preciso pelo menos tomar um banho, trocar de roupa. Mas vejo que não há razão para isso; vocês não encontrarão nenhuma prova de que fumo baseado em lugar algum desta casa. Esse apartamento é alugado, e sempre estou a sofrer algum tipo de pressão por morar sozinha e não ser batalhadora como gente desconhecida me diz que é.

- O que faz nesses bicos?

- Vendo, sou vendedora.

- Não tem cara de vendedora. Não nos parece uma pessoa que se relacione bem com quem quer que seja. E este apartamento não é seu. Provavelmente também está em situação ilegal aqui.

- Eu estou tentando ser vendedora. Sempre achei que minha área era humanas, quis até ser escritora. Mas minha área também não é exatas e nem biológicas. Não sei qual minha área, estou perdida. Talvez artes; mas tintas, o cheiro delas me atordoa.

- Bom, fique calma. Há centenas de milhares de pessoas como você.Como pode ainda estar em São Paulo? Volte para sua terra natal.

- Vocês são dois mas falam como se fossem um. Interessante; parece uma forma de aberração. Nunca vi isso. Gosto desta cidade, apesar de não ter dado certo e manter certos hábitos aversivos à maioria, como fumar, por exemplo. Vocês estão satisfeitos, não estão? E por que não vão embora?

- Queremos mais uma coisinha.

- Eu posso adivinhar o que querem, mas isso não dou não.

- Não é sua greta, dona vagabunda, mas o seu dinheiro.

- Mas eu não tenho nenhum dinheiro. Sou pobre. Que direito vocês têm de entrarem aqui e falarem dessa forma comigo? Sou marginal, irresponsável sim, mas não tenho dinheiro. Tenho vinte reais que é pra comprar carne de soja e algum feijão.

- Deve ter alguma jóia, alguma coisa de ouro...

- Não uso nem bijouterias. Os senhores viram aí, na minha carteira, vinte reais, viram pelo apartamento que não possuo jóias, imagine. Não entendo por que continuam aqui. Acham que tem um buraco no carpete onde escondo coisas valiosas? Tenha santa paciência!

- Está bem, deixaremos a senhora em paz. Mas fica esperta, dona. A senhora está na nossa mira. A população vive se queixando da senhora e não é de ontem. Esses seus berros pelas ruas, seu comportamento...

- É porque não sou uma mendiga, não é?, ou quase uma. Os mendigos podem estrebucharem o quanto quiserem, e é o que mais fazem nesta cidade: estrebucham e consomem crack. Merda, eu não pedi pra nascer, seu policial. Desculpe a bagunça. Se pedi pra nascer, talvez tenha errado. Mas não se preocupem. O populacho desconhecido é mestre em punir. Sou uma senhora e não gosto de ser chamada de senhora. Até bem pouco tempo não existiam essas formalidades. Sinto-me velha por causa disso.

- Vamos embora, Osvald.

Quando os dois policiais deixaram o apartamento, Bernadete desatou a chorar um choro de culpa e de raiva de si mesma. Ela merecera, ela merecera. Não tinha a quem pedir socorro. Imaginou-se na Lua vendo-se na Terra. Ela se dividira por instantes. Pegou o rosário de madeira que achara na rua fedendo suor, e que depois lavara com detergente de coco, mas não conseguiu rezar nada. Estava cheia, queria lazer, sim, queria lazer, viajar, ver o mar, barcos, embarcações, conhecer gente. Mas a gente da cidade grande estranhava-na. Queria era ser linda, e se não tinha amigos era talvez porque estava acomodada, assistindo demais à tv. Prometeu a si mesma que deixaria de ligar o televisor por uma semana. Ontem comera vários doces: bombom sonho de valsa, merengue, brigadeiro, etc. Hoje iria começar novamente a dieta. Em comparação com atletas, era muito sedentária. Foi tomar um banho; depois, vestida com a mesma roupa de sempre, calça jeans e camiseta, foi para a rua. Tratariam-na mal nas lojas? Sim, mas não aquele mal de esbofetear, pôr para fora do recinto, pelo menos por enquanto isso não ocorrera; nem aquele mal mais sutil, um carão de que não é benvinda. Ela também certamente que faria esse carão no futuro quando tivesse de deixar o apartamento ou dividi-lo com alguém. Triste era sua condição. Gastara muito com doces e besteirinhas. Hoje prometera a si própria que não pensaria em comprar. Não aprendia que sem dinheiro ninguém a ajudaria; afinal, não tinha amigos que a entendiam plenamente, a não ser que pedisse; mas não pedia como lhe pediam, não como essas crianças vinham-lhe pedir com a mãe do lado, mas de uma outra maneira que ela ainda desconhecia. Sentia-se egoísta. Agora cada minuto sem fazer nada era delicioso porém agonizante, pois seus laudos indeferidos significavam volta ao subemprego.

Durante o dia passou por sua cabeça entrar em um hotel, insinuar-se para a recepcionista, assistir aqueles filmes pornôs. Se desse sorte poderia apreciar uma gostosa no vídeo, mas na maioria das vezes os filmes eram decepcionantes, mais ainda do que o corpo dela, do que ela própria com seus vícios e vozes. Não entrou no hotel que queria, próximo do cemitério, não entrou em nenhum hotel. Precisava de um xampu, de cotonetes; precisava de comida, de feijão azuki, talvez de ovos e de um perfume francês só encontrado na vinte e cinco de março; precisava de uma agenda. Por que não cedera às tentações da carne, ainda que fossem mal-sucedidas? Era burra. De tanto beber os neurônios estavam sendo solapados. Chegou ao apartamento tarde da noite, depois de uns contatos com clientes, discussão com uma chefe medonha e a bebedeira na vernissage onde não era permitido tirar fotos; mas ela tirou e mais de cinquenta. Sentou-se na única cadeira que tinha e começou a escrever para Ian, um homem que conhecera só por uma noite e que lhe dera o endereço dele para que ela pudesse lhe escrever cartas. Ian era um psiquiatra.

Olá, Ian

Nesta noite estou sozinha de novo. Conheci um homem numa festa, mas esqueci de deixar-lhe o telefone; todavia, dei-lhe meu e-mail. Queria era ter falado com alguma mulher, mas foi impossível. Elas não se aproximam de mim. Enfim, um homem se aproximou e também se disse divorciado. Como já lhe disse em uma carta anterior, meu casamento foi uma farsa. Mas já se passaram tantos anos! Esse homem foi amável, mais até do que você na única noite em que te vi. Talvez eu e ele nos encontremos mais vezes, mas não estou com vontade. Estou velha. Hector me disse para me afastar dos homens; Hector me acha repugnante. O homem que conheci na festa chama-se Heleno. Se eu contasse a Hector que conheci Heleno, ele certamente surtaria. Não tenho atração por homens. Hoje teve feira próximo daqui, mas sempre esqueço que tem feira. Prefiro comprar abacates em feiras livres, pois são mais maduros do que os dos supermercados. Sou louca por acabate. Mas nos supermercados eles sempre estão muito duros; tem de se esperar uns dois ou três dias até que estejam no ponto. Passei agora em uma padaria caríssima, mas esqueceram-se de cobrar o pão nosso. Cobraram somente o leite e o queijo. O meu último psicanalista falou-me que no verão passado me tornei uma vegan porque me deram um pé na bunda. O fato é que não consigo ser vegan de novo, estou desanimada. Uma mulher me deu um pé na bunda, uma mulher muito fêmea, naquele verão que preciso esquecer de vez. Ian, preciso de dinheiro, não venço com o que ganho. Que perdulária! Estou gorda de novo, comendo docinhos, que horror! Se ligo a tv, fico amedrontada, e embora aparentemente eu não seja impressiva, sou e até demais. Hoje a polícia bateu na porta, quase a arrombou. Acham que estou fumando a Maria Joana. Mentira, já parei faz tempo. O que quero é parar com o cigarro, ele me incomoda, me torna pecadora. Tento imitar os bons vendedores; os que vi hoje são dedicadíssimos. Talvez eu nunca me torne uma boa vendedora. Nunca. Mas preciso continuar tentando, pois quero viver assim, vendendo; me sinto mais livre. A perita do governo perguntou-me o que faço durante o dia e eu não soube responder corretamente, pois disse-lhe que não faço nada. Mentira. Por que eu não disse a verdade, Ian? Agora, indeferido o auxílio, corro o risco de passar fome. Estou apavorada, tentando relaxar ao máximo. Por volta das sete da noite, a cidade já estava praticamente vazia. Não sei se gosto muito desse horário de verão; parece que nunca mais isso vai deixar de vigorar. Não sei, sou ignorante, mas por que o horário de verão, por quê? Parece que é algo ligado à economia de energia. No nordeste as pessoas não aceitam essa espécie de decreto que deixa o dia mais longo. Queria mesmo era sair daqui, deste país. Heleno me falou que a Europa é simplesmente maravilhosa. Michele se encontra bem; agora dorme no seu aquário de água esverdeada. Não troquei a água do aquário, não comprei água mineral para mim mesma, não comprei feijão azuki. Abriu um concurso que me interessou, mas a taxa é de mais de sessenta reais. E se penso em pagar a tal da taxa, penso também no estudo, na matemática, na química, na biologia, na literatura, na física! Onde iria encontrar material para estudo, Ian? E depois, não passando no exame, meu nome estaria lá no google como reprovada. Eu falo com Michele, você acha isso loucura? Bom, talvez seja melhor do que falar com as paredes da cozinha, o que dá para o prédio inteiro ouvir. Amanhã é um outro dia, mas não saberei o que fazer; não sei se compro uma agenda dessas baratas de camelô. Amanhã é hoje; já passa da meia-noite. Vou dormir e tenho ainda que trocar a resistência do chuveiro. Mas não sei se agora. Tenho uma lanterninha, uma escada...mas se porventura tomar algum choque...melhor deixar a porta aberta, assim pelo menos se eu morrer será mais fácil entrarem no apartamento pra me descerem em pé pelo elevador, morta ou em coma. Heleno me convidou para uma festa. Por que tenho que contar tudo a Hector? Sim, contei a Hector que Heleno me convidou para uma festa. Contei-lhe tudo pelo celular, gastei todos os meus créditos. Hector é misterioso: todo mundo gosta dele, até mesmo os porteiros dele, que nao têm muita paciência quando ele chega embriagado e briguento, tarde da noite. Seria bom se eu tivesse forças para ir até a cozinha preparar um chá de macela. Mas não tenho. Não tenho esperança e a vontade que tive hoje foi de chorar. Sou uma mulher que envergonha muita gente. Heleno foi uma benção. Sim, Heleno não estava bêbado. Deus me perdoe! Deus me perdoe ter gasto tanto com comida hoje; ter comido em bares ao invés de comer meu arroz integral onde moro. Antes de ir à festa, passei pela Maria Antonia para ver o preço de agendas, mas lá elas estão ainda mais caras do que no centro. Hector me sugeriu que eu fosse ao centro antigo. Estou cheia desta cidade, deste país. Michele desliza na água verde sem se queixar de nada. Não, não tenho comido mais peixe depois que notei que Michele tem alma. Que pecado! Que pecado dizer que um animal tem alma. Eu é que tenho a alma turva, não sou individualizada. Estou ansiosa; fico ansiosa cada vez que lhe escrevo. Tenho sempre a impressão de que, quando tiver de sair deste apartamento, irei para um lugar pior, para um albergue, por exemplo. Hector me disse que se eu tiver de sair daqui, ele me oferecerá um cantinho da casa dele.. Mas Hector me disse isso bêbado. Claro que foi mentira, coisa de momento. Bom, vou parar por aqui por enquanto. Daqui a dois dias lhe escrevo de novo. Preciso ir cedo até o correio, depositar esta carta; é quando não há fila. Tenho selos demais.

Bernadete dobrou a carta com delicadeza, coisa que achava que não tinha; ela se achava uma mulher rude, apesar de viver em uma cidade grande, uma mulher permeada entre a miséria absoluta e a alegria de um mundo sadio e trabalhador.

Poucas pessoas me acham delicada, mas o que me importa?

Pôs a carta dentro de um envelope que já vinha com cola nas bordas. Passou a língua nas bordas, bateu o envelope com os punhos e pensou em tomar um banho, pensou em suicídio. Bernadete estava embriagada.

Queria ser mais resistente, eu posso ser mais resistente. Nossas resistências se queimam como as dos chuveiros? Se for assim é bom então ficar sempre fria. Fiquem frios, por favor.

Ian receberia a carta dentro de uns quinze dias.

Ian não vai ler minha carta; ele simplesmente a jogará no lixo ou então na lareira de sua casa. Ele me disse que tem uma lareira, mas será verdade? Eu também tenho uma, mas é de papel.

Bernadete trocou de roupa, vestiu o penhoar azul-bebê nojento que comprara em uma liquidação e que nunca lavara, e deitou-se na cama. Pediu pela milésima vez que alguém a livrasse da populaça desconhecida e sempre inocente que ela achava que a perseguia.

Não contei quantos cigarros fumei hoje. Ainda vou me estrepar por causa disso, e por causa das cartas que mando a Ian. Ele nunca responde, nunca. Devo então crer que sou esperançosa? Estou preocupada, desocupada, vadia. Talvez me ponham na cadeia devido a reação estúpida que tive por causa do indeferimento. Mas não foi um surto visível.

A madrugada fora cheia de pesadelos os quais ela não se recordou quando despertou. A primeira coisa que fazia quando se levantava era comer e esperar os trinta minutos para poder fumar um cigarro.

Estupidez minha pensar que deixar passar os minutos me faça correr menos riscos. Estupidez dar tanto valor ao cigarro. Ou talvez não, já que a maior parte das pessoas odeia cigarro.

Bernadete comeu pão com queijo prato; e o pão, escuro, uma borracha laranja, estava gostoso. Fez o café marrom-claro tipo exportação que Hector lhe dera e misturou-o com um pouco de leite tipo B. Havia também geléia de framboesa, e Bernadete comeu um pouco dela com uma colherzinha de prata. A cor da geléia era a mesma de um vestido indiano que tinha; iria vesti-lo hoje. Andaria pela chuva intermitente sem guarda-chuva para que o corpo ficasse meio que a mostra, e os bicos dos seios suscitassem algum desejo em alguém que estivesse dentro de um carro. E ela saiu assim mesmo, de vestido framboesa, longo, mas não chovia. Há quanto tempo não punha um vestido! Calça jeans e camiseta eram as únicas peças de que realmente gostava.

Estou com nojo de ser esquizofrênica.

Ficou por muito tempo a andar sem direção. Queria viver em uma cidade mais bonita. Mas as pessoas também morrem e são esquizofrênicas nas cidades bonitas. E a cidade onde vivia era bonita também, por que não? Era só prestar atenção melhor na arquitetura, nas esculturas geralmente nuas. Eram cinco da tarde quando o céu no Pátio do Colégio tornou-se azul e laranja. De repente, nunvens negras surgiram e o dia virou noite. Bernadete ficou com raiva porque era mais um dia de chuva após as cinco. Ficou a andar.

Sou mesmo uma vagabunda. Por que não fui trabalhar de porta em porta vendendo estes cosméticos?

As pessoas pareciam frias, e ela sentiu-se mal. O cemitério ainda estava aberto; Bernadete aproveitou e entrou. Não, não havia ninguém em um caixão dentro da capela. Ela constatou isso abrindo a porta lentamente e espiando lá dentro, espiando o teto circular de vidro. Até que era bom andar na chuva dentro de um cemitério, e a chuva não estava forte. Sentou-se sobre uma lapela e lá ficou. Sentiu um vulto vindo por trás dela; naturalmente era o segurança querendo avisá-la que estava na hora do cemitério. Aqui não é um parque não, minha senhora, ele diria.

Os parques me deprimem mais do que os cemitérios. Nos cemitérios rostos que temo me olham de fotografias; nos parques ninguém me olha a não ser que eu esteja comendo. Mas se o alimento cai no parque é sinal de que ali há espíritos famintos.

A mão que lhe tocou o ombro esquerdo era de uma mulher, pois as unhas estavam pintadas de violeta-escuro. Bernadete não se virou completamente, nem se assustou.

Hum, uma mulher, que milagre! As unhas dessa mulher estão tão bem feitas; na certa ela acabou de sair de um salão de beleza. Meu Deus, mas pode ser um espírito. Não, para mim não se materializaria; não atraio o sobrenatural de jeito nenhum. Que tristeza de situação, porém excitante. Quero ir embora e a mulher misteriosa não tira a mão do ombro.

Finalmente a estranha verbalizou:

- Que medo tenho de ficar sozinha - ela disse.

- Não vou olhar para trás. Por que você está me tocando assim? -murmurou Bernadete mais para si mesma.

- Se quiser olhar, olhe. É melhor sermos amigas.

- Não, não vou olhar. Vá embora. Se pensa que me assustou está muito enganada - disse, olhando para o infinita calçada.

- Conheço-a melhor do que você a si mesma.

- Senhora, por favor. Já sou uma senhora e exijo formalidade. Não,não sei. Não exijo nada. Destesto fomalidades. O verbo detestar parece tão perigoso. Sua mão parece macia.

- Bernadete, por que sempre foi tão ausente? Queria-a mais próxima, mas você se isolava. Nunca me percebeu. E olhe que eu lhe dei oportunidades de me perceber. Sei onde mora. Por que não vamos até sua casa tomar um chá? Chove, e poderíamos ficar bem juntinhas ao pé da lareira.

- Ah, a de papel. Me diga o seu nome.

-Maura.

Bernadete levantou-se bruscamente e saiu correndo. Tinha de correr. Foi tossindo até a entrada do cemitério. Anoitecia. Resolveu olhar para trás. A louca desaparecera. Como ela era? Talvez fosse ruiva, pois as mãos eram sardentas. Bernadete correu mais um pouco, já estava na avenida. Os faróis amarelos ofuscavam sua visão.

Maura tem a voz parecida com a minha. Será uma parte morta de mim mesma que de súbito apareceu? Não, não tenho essa capacidade de contatar almas do outro mundo. Mas Maura me trouxe pra fora da mediocridade. Em um mundo tão competitivo até para ver almas, aquilo era uma vitória. Maura pode ser um ser humano, não uma alma. E é o que provavelmente ela é: somente um ser humano se passando por um espírito, convincente só para os otários.

Bernadete andou muito até chegar onde morava. Ela não tinha casa própria, não tinha bem algum. Isso agora importava um pouco, mas nunca a incomodou até os quarenta. O elevador foi subindo devagar; o de serviço estava lento e era que ela sempre tomava por não querer enfrentar espelhos.

Estou mal. O elevador sobe devagar, mas ele é menos lento do que eu para subir, subir na vida, por exemplo. Estou com medo, medo de apanhar, de sofrer, de fumar, de não fumar, dos surtos e suas sequelas. E se Maura realmente sabe onde moro? Vai subir e bater na porta como a polícia?

Michele parecia faminta, mas Bernadete não jogou a ração para peixes sobre a água do aquário, água verde-rio.

Amanhã troco; Michele também tem de aguentar.

Bernadete acendeu todas as luzes, e todas piscavam ao mesmo tempo. Será que sou paranormal? Pensava muito sobre essa possibilidade na juventude.

Mas não sou paranormal, e seu um dia for, todos serão.

As luzes continuaram a piscar e Bernadete achou a situação quase ridícula.

As luzes dos vizinhos também estão piscando. Minha luz interior não dá sinais, nem mesmo pisca. Sou uma monstra.

Os dias foram se passando mais rapidamente do que Bernadete esperava. A velocidade do tempo dependia do remédio que tomava. E se tomava uma quantidade maior de remédio, tinha acatisia; e aí o tempo não passava.

O tempo também é dinheiro para quem tem acatisia? Quem cedo madruga...tempo é dinheiro...Hector sumira. Ele deve estar namorando, mas nunca saberei quem. Diz-me que tem tantos amigos que até se esquece de mim. Mas que cultura que Hector tem; ele fala difícil às vezes. Bom, tem curso superior, e menos oportunidade de sofrer se um dia for pra cadeia.

O psiquiatra que lhe dera o diagnóstico de esquizofrenia dissera-lhe que ela deveria sair do submundo, esforçar-se para tal.

Vivo no submundo e não sabia. O que é mundo e o que é submundo?

O psiquiatra lhe dera um diagnóstico talvez errado, pois uma intoxicada não pode ser uma doente. Mas esse primeiro psiquiatra estava longe no tempo; águas passadas.

Hector na certa está com a francesinha antipática da penúltima festa...

Caro Ian, escrevo-lhe sempre que posso. Não sou correspondida por você, que pena. Ou ainda bem. Os dias passam e está tudo na mesma. Estou mais isolada do que nunca. Talvez me ponham pra fora daqui, não sei. Ou então eu talvez divida este apartamento com uma amiga ou um amigo lá da cosmética nacional. Achei o telefone de Heleno, o homem que conheci na vernissage. E pensei que não tinha anotado nada, mas anotei. Não, não vou ligar para ele, quem sou eu? Conheci uma mulher, estou feliz. Uma mulher que falou comigo em um dia chuvoso. Ela é ruiva e tem os olhos azuis; aparenta uns trinta. É uma menina. Ficamos amigas e ela tem vindo muito aqui. Minto, ela quase que está morando aqui. E como vão seus clientes? Seria melhor para mim sentar-me no seu divã e deixar de escrever estas cartas. Você as joga fora, eu tenho certeza. Talvez eu o visite se algum dia puder viajar. Você mora mui longe. Ah, como sou insensível. Mas hoje chorei, acredita? Quero crer que você está sendo indulgente para comigo, lendo minhas cartas. Mas não há tempo para respondê-las, eu bem sei. Ah, se eu pudesse escrever subindo um aclive para depois voar, captar certa inspiração! Mas não, escrevo sempre as mesmas coisas. Sinto que além de Maura terei outros visitantes por aqui. Nossa, como decepciono as pessoas! Temo ainda as lições de vida que me darão. Não sei passar sermão em ninguém, mas bem que Hector merecia um sermão daqueles. Minhas roupas fedem cigarro, e estou apavorada com os problemas que surgirão devido a falta de manutenção deste apartamento. Foi um milagre Maura me querer, entrar aqui sem criticar nada. Não a quero mais, já estou enjoada dela. Não queria falar isso, mas ontem a faxineira do prédio, enquanto limpava os vidros de fora da cozinha, falou algo sobre gente que fuma dentro de casa e que depois joga as bitucas de cigarro no lixão comunitário, sem pô-las em um saco plástico. Achei a princípio que era algo pessoal, mas depois disse a mim mesma que não. Maura tem sido um amor, não me critica em nada e não tem vício. Neste fim de semana quero fazer algo de bom. Há uma vozinha me dizendo para ser tolerante. Ah, não sei por que não guardo essas coisas para mim. Deve ser coisa da doença, pensar falando. Tive um sonho com grinaldas. Eu entrei em uma loja onde só se vendiam grinaldas de todas as cores e tipos, e fui logo pegando a negra, que tinha três rosas negras na frente. Por baixo delas saía um veuzinho transparente. Coloquei-a na cabeça e me olhei em um espelho em que minha imagem estava em preto e branco. A única coisa colorida que eu via era a boca, pintada de um bege-claro que nem o veuzinho diminuia o tom. Vai se casar novamente, vai se casar novamente, dizia uma voz vinda de não sei onde. Mas o fato é que não vou nunca mais me casar vestida de noiva ou desvestida. Quanta gente neste fim de semana vai ao Ibirapuera? Entristeço-me só de pensar que tem gente que sofre por não ter opções. A crise internacional, tenho percebido, tem tornado as pessoas mais próximas. Não me sinto bem conversando com ninguém. Como esquizofrênica, e estou utilizando esse rótulo por burrice, chego por vezes a pensar que têm inveja de mim; é, gente desconhecida, que nunca vi, me perseguindo continuamente. Não, não é um absurdo. Há muitas pessoas dormindo nas ruas, e eu não sei o que fazer para ajudá-las. Tenho de deixar o sedentarismo. A academia aqui perto promete beleza e felicidade, e sei que há poucos que amam gelatina de morango. A um vegan é proibido comer gelatina. Infelizmente deixei de ser vegan, de ficar neurótica por causa dos rótulos das embalagens. Tem traços de leite, tem traços de ovos...Tenho traços de Eva Brown. De que me adiantou não comer o que tinha? Meu caro, já lhe mandei tantas cartas que dava até para compilá-las num livro ou num arquivo científico sobre esquizofrenia. Preciso ir, Maura está tocando a compainha. Por que não me liga? Meu telefone é 9777-1359. Quero escrever um livro, mas na União Esotérica, Liz acha que se eu escrevesse um livro entraria em um círculo interminável, e o livro seria chatíssimo. Além do mais, não li os mais de oito mil livros que dizem ser o mínimo para se tornar um escritor, para escrever um livro. Portanto, desisti. Hoje é sábado, e como sempre fui até a União. Mas sou ignorante. Liz se sentiu agredida por mim, e tudo o que eu falava era motivo de correção, de crítica. Mas enfim, depois liguei para Hector e Hector está muito ocupado. Hector e Liz se assemelham. Para Liz sou sadia, mas ela me acha confusa para trabalhos que exijam esforço intelectual na União. Critica-me sem parar. Sou sadia sim, e se estou afastada é porque então sou malandra ou vagabunda, ou então malandra e vagabunda. Fiquei com raiva dos psiquiatras que fui até hoje por causa de Liz. Claro que os psiquiatras veem doença mental em todos, até na arquitetura, na arte. Estou realmente confusa e solitária. Andei gastando demais, não deveria ter saído, não, nunca. Passei pelo bar Legran, e gritei umas palavras o qual não me recordo. Chamaram-me de horroroso. Tenho dor-de-cotovelo. Hector parece que não quer que ninguém se aproxime de mim, Liz tem a mesma crítica há séculos. Liz me fez muito ir a missas, mas agora não estou indo mais, nunca mais. Uma pena, talvez. Queria esquecer que Liz, Hector, e toda uma corja existiu em minha vida. Eles me ajudaram em certo sentido, mas depois rejeitaram-me e eu não tinha mais beleza nem para me prostituir com os bêbados da rua do Ouvidor. Liz não imagina que fumo, Liz não sabe que estou com Maura, Liz...ah, como sou burra! Pra que ir a um lugar para ser criticada, para me irritar? E eu estava sentindo antes mesmo de chegar a União que seria criticada, apedrejada. Vagabunda milhões de vezes! Va-ga-bun-da. Um tipo de esquizofrenia é o de pensar falando, e é assim que ajo na maioria das vezes com essas pessoas, penso falando. Mas se procurasse outras pessoas, elas me criticariam também. O mundo parece não me aceitar. Sou bandida porque travam a porta dos carros quando passo? Por questões de precaução, presumo, mas nunca pensei em assaltar um carro. Só me arrependo de ter ido hoje a União. Vou apanhar. Mas você iria se perguntar: se eu estou com Maura, devo estar feliz, não é? Na verdade menti para você, não estou com Maura. É complicado de explicar, mas Maura é um fantasma, apenas isso. Estou fervendo por ter gasto cinco reais com um cd. Puta merda! Não quero ficar ouvindo Gretchen Peters a noite inteira. O que notei é que a populaça desconhecida não está mais sussurrando coisas nas minhas costas por enquanto, e isso se deve à crise mundial, sem dúvida. Ou talvez tenham prescendido dos sussurros para que houvesse o indeferimento.Hora de trabalhar, já! Mas se estou trabalhando como vendedora estou a enganar o governo? Não sei. Só sei que tenho algo de muito ruim em mim para que me contrariem o tempo todo ou então me desprezem. Sou horrível de feia. Horrível. Horroroso, como disse a mulher do Legrand, horroroso. E gorda. Preciso voltar a ser vegan, voltar a ser uma vegan fanática. Eu me sentia leve e tonta sem o leite, o ovo, as bolachas com traços de leite, etc. Somente o pãozinho francês já estava bom, junto com a margarina. Margarina não tem leite mesmo? O pãozinho francês tem açúcar mesmo?

- Padeiro, o senhor tem certeza de que o pãozinho francês não tem leite?

- Sim, no pão francês não vai leite nem ovos.

- O senhor é amigo daquela cadela importante? Sim, daquela cadela importante?

Era assim como estou lhe contando, Ian. Eu vivia nas padarias falando com os padeiros sobre o que continha leite ou ovo, sobre o que eu podia comprar. Bons tempos de dor de cotovelo aqueles. Mas a dor de cotovelo persiste. Tornar-me vegan me ajudou a esquecer aquela cadela que deu certo na vida. Novinha, mostrou seu mundo maravilhoso e depois se foi, inventando uma história de que era drogada, gostava de crack, de trepar com quantas mulheres estivesse na sua frente. Na última vez em que a vi eu havia cortado o cabelo. Mary, era esse o nome da cadela, nunca me esqueço; dançou um pouco comigo, olhou para meu cabelo e fez um gesto de negação com a cabeça. Cadela, puta sem-vergonha. Mas no computo geral foi bom porque conheci gente importante, gente que deu certo nesta cidade onde todo mundo se mostra perfeito. Nasci com defeito, infelizmente. A academia promete beleza e felicidade, mas já gastei o dinheiro para a matrícula. Estou mais calma agora, depois de escrever para você. Liz não acredita que eu possa escrever um livro; nem eu. Não seria obviamente um livro escrito por uma ocultista, mas por uma vadia, uma pseudoboêmia. E, naturalmente, eu iria, por causa do livro, para um purgatório-talvez-vip. Bom, como eu ia lhe dizendo, agora não sou mais vegan, tenho necessidade de leite, de doces. Estou engordando, e logo o jeans e a camiseta prediletos não me entrarão mais. Se eu tivesse coragem, faria a matrícula na academia que promete beleza e felicidade, mas como disse, gasto demais. Maura não apareceu hoje por aqui, que milagre! Temos um casinho. Gosto de mentir. Mas deixando um pouco de lado essas minhas aberrações, o fato das pessoas me fazerem de boba nesta cidade, de me virem como uma criança, alguém que não merece respeito, um marginal, estou bem.

A segunda amanheceu quentíssima.

Pois é verão, e o verão me deixa sonolenta; ou então são os remédios, o rivotril. Os médicos não têm me tratado bem, talvez porque eu não me enquadre dentro daquele tipo de loucura esteriotipada, não sei. Liz tem razão; Liz diz estar com Deus; Liz é que é a certa.

Bernadete preparou a malinha com muitos produtos, e uma listinha das ruas que iria visitar. Passou-lhe de novo pela mente a sensação de ser malandra, de que os psiquiatras particulares estavam errados, que eram vítimas do deboche dos peritos do governo. Para Bernadete, os psiquiatras particulares não tinham voz nem vez, como ela mesma não tinha. Bernadete estava sempre errada. A compainha tocou; já era a segunda vez no mês. Bernadete foi atender e com sua, por vezes, pouca intuição acertou: tiras!, os mesmos tiras da primeira blitz. Ela abriu a porta e eles imediatamente algemaram-na com uma algema de dedo.

Bem-feito para mim que sou uma egoísta. O que eles alegarão agora? Parece que o mundo me tem como morta, e a inexistência é aplaudida.

- A senhora não é maconheira, mas queremos que faça um servicinho para nós. Vamos levá-la até a praia para pisar em um lugar que dizem ser um campo minado e...

- Que bom! Faz anos que não vou a uma praia. E agora me parece mais interessante, pois irei como uma marginal, algemada. Mas sei que será uma praia deserta, não é?

- Sim - disseram ambos os guardas ao mesmo tempo.

- Mas o que estamos esperando? Vou finalmente sair da rotina.

- Vá primeiro tomar um banho, sua vagabunda.

- Não, não, vou tomar banho de mar. Sou a sapatão excluída da sociedade, não sou? Vou como estou, de lingerie vermelha.

- Está bem.

Sairam os três. No elevador, Bernadete notou que ambos os guardas estavam meio nervosos. Um, o que devia ser Osvald, suava frio. O outro, suava na calvíce. A viatura saiu defronte do prédio onde Bernadete morava por volta das dez e trinta. O zelador pareceu-lhe contente, pois era difícil ela passar de manhã por ali, pela portaria. Ou então estava contente porque finalmente a justiça estava sendo feita. A viatura seguiu pela via do Padre Anchieta a mais de cem por hora.

Osvald dirige muito mal. Mas estou gostando desta aventura. Irão me levar para uma praia e terei de pisar em um campo que acham que está minado. minado coisa nenhuma. Nunca vi isso na minha vida. A viagem foi rápida; durou uma hora e meia. Ontem não tomei os remédios; o tempo aumenta a velocidade.

A praia, totalmente deserta, tinha uma areia muito fofa e quente. O mar estava cinza, e as ondas bege.

Não sei por quê, mas agora me sinto Beatrice. Não quero ser mais Bernadete, mas sim Beatrice.

Beatrice pulou da viatura e correu para o mar, correu de encontro às ondas. Ela, de lingerie vermelha, naquele meio-dia ensolarado, finalmente na praia.

- Bernadete, deves pisar na areia, não na água. Comece a andar a partir dali - apontou o calvo em direção ao sul.

- Ah, sim.

Bernardete foi até o lugar indicado e começou a andar dançando. Soltou os cabelos negros e foi dançando uma dança que ela inventava a todo instante. Não lhe passara pela cabeça que ela poderia em segundos estar em frangalhos. Ou então, nuinha.

Se aos menos houvesse um champanhe para acompanhar essa loucura. Não estou gostando disso. Pareço uma palhaça, e há muito não me sinto tão palhaça. Ah, o mar me traz essas sensações, mas desgosto dele. O mar me enjoa.

Depois de andar por toda a extensão da pequena praia, Bernadete notou que os guardas já não a observavam mais; estavam decepcionados. Foi então que lhe surgiu a ideia de correr, sim, de correr até as pedras, até o morro. Escalou o morro até onde pode com toda sua força. Não viu mais os guardas.

Será que eles realmente existiram ou será que vim sozinha para esta praia?

Beatrice avistou uma pequena cabana quando chegou ao topo da montanha. Havia uma outra praia do outro lado da montanha e uma cabana. Aliás, era uma praia linda, pois a água continha todos os tons de violeta. Ela foi descendo devagar dentro de sua lingerie vemelha, talvez indecente, e gritou olá.

Não tenho mais voz, as pessoas não se fazem de surdas, de cruéis pra comigo. Simplesmente não me entendem. Falo para dentro, deve ser isso. Deveria ser cantora brasileira.

Ao se aproximar da casinha de madeira cuja porta tinha entalhes de sereias, Beatrice sentiu-se cansada. Não tinha mais sentido para ela a falta de juízo sem beleza. Bateu na porta com sofreguidão causada pelo vício. Ninguém. Bateu mais uma vez e aí então alguém foi girando a fechadura por dentro e abriu a porta. Bernadete deparou-se com uma mulher alta e loira, talvez australiana. Olhos azul-claríssimos, cabelos loiríssimos, tez bronzeada.

- A senhora deseja alguma coisa?

- Sim, eu estou perdida. Não quero lhe explicar como vim parar aqui. Você não teria paciência. Nem Jó teria paciência para as quarentonas de hoje. Por favor, não é um assalto, não fique assustada. Eu...eu estava passando e achei que você poderia me ajudar e me dizer como posso voltar para São Paulo. Desculpe-me pela minha indumentária. Mas finja que é um biquini de um estilista raivoso. A esta hora a maioria das pessoas estão trabalhando lá em São Paulo, e se eu chegasse muito tarde no escritório da Cosmética iriam dizer uns para os outros: fique frio, fique frio. Não sei por que dizem isso quando chego. Vai ver são adultos demais, não querem crianças nem doentes.

- A senhora tenha a bondade de entrar.

- Mas como? Não me acha uma idiota ou então uma assaltante? Não vai fazer teatro ou carão para passar a ideia de que está com medo de ser atacada, estripada, assassinada? Não vai me chamar de Lilico, a mulher que quer dar para outra e não consegue?

- A senhora tenha a bondade de entrar.

- Sim. Hum, que salinha maravilhosa. Posso me sentar um pouco?

- Mas é claro, Bernadete.

- Como sabe meu nome?

- Não sei, intuição. Mas a senhora me parece bastante aturdida. O que lhe fizeram de horrível?

- Nada. Não fizeram nada. Eles nunca fazem nada. É tudo muito sutil.Só querem me levar ao suicídio. Desconhecidos apontam nas ruas a minha condição, e provavelmente é a financeira menos do que a sexual. Mas...eu conheço essa mão. Você...Oh, por Zeus, você é Maura?

- Em carne e osso, e uma doçura de figura, não acha?

- Não posso crer que você seja de carne e osso. Como você se materializa?

- Poeira cósmica. Mas não se sinta especial. Eu faço isso para muita gente.

- Ah sim, deixe-me rir um pouco...

- Deixo.

- Não se sentir especial; aquela velha história de sempre.

- A senhora é fumante, e não existe espiritualidade em fumantes.

- Sim, tanto teoricamente quanto na prática. Num vaso sujo não pode haver luz, não é? Mas eu, eu sou perseguida pela população que desconheço e não posso sair deste país porque não tenho dinheiro nem dignidade. E meus neurônios já não são os mesmos.

- E nem os seus cabelos, Berna. Eu a conheço bem, de outras vidas.

- Sim, eu era bonita. Estou afastada do subemprego por esquizofrenia.

- Malandra. Se a senhora é esquizofrênica, eu também sou. E ninguém que eu saiba pode diagnosticar uma doença grave dessas em uma fumante. Mas de qualquer forma, não quero lhe ser hostil também. Aqui é um lugar único, é meu paraíso.

- E como ninguém encontrou este paraíso ainda?

- Porque ninguém consegue chegar até aqui a não ser que eu permita.

- Maura, estou com fome.

- Eu sei. Preparei uma saladinha para nós duas. Vamos até a mesa.

Sobre a mesa havia duas tigelas: em um havia alface com tomates e em outra espinafre cozido. A toalha sobre a mesa era verde-azulada, e Maura sentou-se lentamente. Ela estava vestida com um biquini florido, mas a parte de cima era branca. Maura serviu primeiro Beatrice e depois se serviu.

- Não há nada para beber?

- Não, mas a saladinha entra bem, Beatrice. Liz a deixou meio desdentada com a bondade que nem um tufão tira dela, mas procure mastigar. Tomar liquidos durante as refeições é uma coisa muito feia, pega mal. Talvez esse ato seja traduzido como um organismo débil ou uma mania de mimados.

Bernadete levantou-se após ter comido um pouco. Estava aflita. Não queria mais olhar para Maura, para aquela mulher belíssima e estranha. Claro que tinha desejo por ela, mas Maura não iria querê-la para esse tipo de pecado, não do jeito que ela imaginava. Saiu pela porta e disse adeus. Foi correndo para um matagal, foi correndo desesperada.

Se isso faz parte da minha loucura, quero estar fora dela; não, não sou mais louca; não preciso de auxílio doença, volto a trabalhar e pronto. Quem iria acreditar nisso?

Os peritos do governo eram piores do que os soviéticos; faziam-lhe perguntas desconsertantes.

Mas já estou onde moro, já estou na unidade. De repente, saí correndo da cabana e agora estou no apartamento. Vim voando, sou uma bruxa? E os policiais, e Maura? O celular me diz que ainda é segunda, que é segunda de noite. Ah, segunda de noite. Sim, fui ao cinema, agora me lembro. Fui ao cinema ver Sereias ao Vento.

Terça. Bernadete tomou o remédio ontem, mas o sono não veio tão fácil quanto anteontem. O remédio a fazia surtar, mas os psiquiatras não queriam mais ouvi-la. Ela talvez não tivesse humildade para conquistá-los. Era óbvio demais que ela era uma malandra sem-vergonha, uma bandida que se negava a ser bandida porque seria uma bandida medíocre, uma escritora medíocre. Na Cosmética estavam procurando alguém para emprego fixo. Pagavam bem. Maria Clara de Souza lhe disse que estavam procurando gente com capacidade. Por que foi falar pra todo mundo que era esquizofrênica? Isso pegava muito mal. Mas os psiquiatras particulares falaram que ela, uma idiota, era uma esquizofrênica. Por que mentiriam, por quê? Estava velha e desinteressante, a verdade era essa. Hector ligara pela manhã, mas Bernadete logo percebeu que era pra fazê-la de boba, descontar nela alguma coisa.

Pra eles será que tenho as manhas? Vim do interior, de São Caetano, e lá todo mundo sabia o que era bolinha, menos eu. Não sei o que é até hoje. Alimento Michele com oito bolinhas de ração; isso pode ser demais para ela. Meus surtos e minha morte podem ser demais para quem?

Terça; era preciso vender, tentar fazer algum tipo de terapia. Hector ligaria e a deixaria ansiosa. Depois, como sempre, Hector lhe daria um pé na bunda, mas não por maldade ou preconceito; Hector faria isso porque muita gente ligava para ele, muita. Era gente ligando para ele o dia inteiro, precisando saber sobre eventos, sobre as festas, sobre o que haveria nessas festas, se haveria champanhe do bom ou então aquele caviar mais caro, o pretinho. Hector naturalmente não fazia as coisas por maldade.

Mereço estar nesta situação. Dizem que ninguém sobre esta Terra passa por coisas pelos quais não merece passar. A causa e o efeito. Relutava em aceitar isso, mas é verdade. Eu fui escritora na juventude. Como perdi tempo escrevendo, céus! E como acho que talvez vá perder tempo escrevendo em vez de assistir à algum programa televisivo.

Hector tinha educação, coisa que Bernadete, sempre diziam, não tinha. Formalidade era indício de educação boa. Bernardete estava prevendo, naquela terça, que alguém da Cosmética iria lhe perguntar onde morava e por que não dividia o apartamento. Será que alguém perguntava por ela na portaria? Aquela cadela cheia de Deus que lhe dera um pé na bunda, por exemplo, Bernadete imaginava que ela vinha perguntar ao porteiro como ela estava. Mas não, aquela mulher fatal não teria tempo, e além do mais era jovem demais.

Mas os porteiros nem me conhecem. São impacientes também para comigo. Se ao menos eu tivesse um bem material não seriam impacientes. Mas o fato é que sou ruim, e se ofereço uma gorjeta, ficam indignados.

Para Liz, a mulher certa de Deus, Bernadete deturpava tudo. E se ela dera certo em São Paulo, se ela dizia que estava com Deus, então Bernadete devia realmente deturpar tudo. Não queria ir mais até a União. A União sugeria idas a missas, e apesar de Bernadete gostar de missas, achava que havia outro caminho para o êxtase. O sangue e o corpo de Cristo dentro dela não pareciam trazer-lhe algum tipo de poder, esse poder que os eruditos diziam ser inebriante; mas ela sentia-se acalentada por uns minutos quando tomava a hóstia; sentia-se protegida, abraçada, salva. Hum, Hector devia estar satisfeito a essa hora. O dia passara rápido. Bernadete não vendera nada, mas fora bom, apesar do fiquem frios, fiquem frios. Na União Esotérica lhe disseram que seu Marte era fraco, não era dispositor de nada. Enfim, teria sempre um emprego, não um trabalho. E o seu Marte não estava conectado com nenhum padrão artístico de escritor ou de cantor. Nem o de Elvis. Só se o dela ou o de Elvis estavam e ela estivesse enganada; só se o dela estava e ela estava amiúde na horizontal, não na vertical como a maioria dos mortais. Já passava das dez da noite e Hector não dera sinal de vida. Na Cosmética alguns vendedores endinheirados falavam coisas sobre estado laico, e que Bernadete nao parecia ter Deus no coração como eles tinham. Coitada!

Minha chefe contou-me então uma história. Ela e sua tia vieram do sul e quando aqui chegaram a tia foi trabalhar como limpadora de vidros em um prédio. Elas acreditavam muito em santos e santas. A tia, um dia, desequilibrou-se no décimo quinto andar e caiu, mas quando proferiu "me ajude São Francisco", alguém invisível lhe segurou e ela ficou dependurada em uma janela do sétimo andar que estava aberta. Aí surgiu uma voz grave perguntando-lhe qual o São Francisco por quem ela chamava. A tia falou: o de Assis. Aí a mão soltou-a e a voz se identificou, dizendo que era São Francisco de Pádua. A tia de minha chefe se espatifou no chão. Não sei por quê mas a maioria dos vendedores bem-sucedidos são crentes, e não católicos. Ser protestante parece que confere mais esperteza a uma pessoa. Eles parece não gostarem muito da Virgem Maria. Mesmo assim peço à Virgem Maria que me ajude a fazer uma vendinha que for.

Bernadete, já que Hector não ligou para irem a alguma festa, resolveu correr. Que absurdo, correr, ela correr. De qualquer forma, correu. E passou por muita gente: por nordestinos saradíssimos, por estrangeiros leitentos, por crianças tristes, por gente que topava tudo com o tudo de bom, gente saudável. Ela realmente talvez não tinha Deus no coração, não o abrira para Ele, mas estava disposta a fazê-lo. Ou seria seu coração algo esquisito, um músculo vermelho obdicodiforme? Imaginou um imenso objeto vermelho obdicodiforme na Paulista, gigantesco, uma obra de arte. Mas o ego dela não era gigantesco. Era apenas um eguinho. Seria a ponta de um órgão obdicodiforme cortante?

Agora me sinto um tigre, e não sei para que sirvo. Ninguém pode me comer, não produzo nada e por vezes roubo a caça alheia, mas não me sinto um espírito importante. A minha aversão é minha mesmo? Falo de minha aversão pelos homens. Talvez não seja eu que evite contatos, no fundo. Sou nada divina, sou animal. Mas ainda não sei a minha real reação frente a um ataque humano; se minhas garras irão ser eficientes para matar.

Bernadete voltou para casa...casa? simplesmente exausta mas feliz. O telefone tocou, e quando o telefone tocava não era Hector. Hector deixara de ligar para o telefone fixo há muito tempo. Era Mark, o pardo. E a mulher de Mark, o pardo, estava sempre lhe convidando para sexo a três. Ela queria que Bernadete ficasse prenha de Mark; o casal escolhera Bernadete sem ao menos conhecê-la bem, conhecendo-a mais por telefone.

Não sei por que a mulher de Mark, Jandira, quer que eu fique grávida de seu marido. Ela quer sexo, ele também; mas querem que eu participe. Não sei dizer não; fico a ouvi-los pelo telefone horas a fio. Marcamos datas e sempre fujo. Estou prestes a roubar Jandira de Mark, porque Jandira me parece sedenta por uma fêmea. Mas não suportaria engravidar, nem suporto imaginar uma cabeça abrindo meus lábios genitais. Resolvo escrever outra carta a Ian.

Ian, os dias têm passado rapidamente, e todos os dias fico aflita. Mark me liga dizendo que seu marido me quer, que ela me quer. Mas nem sequer a conheço. Conheço Mark há um bom tempo; Mark que me diz ter sido espancado pelos pais na infância, na idade adulta. A sensação que tenho é a de que serei espancada também. Ligo para Liz, aflitíssima. Mas Liz está má de novo, tem aquela maldade divina aplicada aos transgressivos. Jandira marcou um novo encontro. Ela me perguntou que tipo de licor eu gostaria de tomar no encontro, e eu lhe disse que queria o de menta. Comi doces o dia inteiro, gastei muito dinheiro com isso. Liz me pergunta o que quero, secamente. Ela parece somente me observar; ela observa meu declínio que surge de dois em dois anos. Falei para Hector que o caminho está estreito, mas Hector falou que são apenas problemas. Preciso de uma terapia. Liz me acha agressiva, e diz que quem mexe com ela paga em dobro. Ela é uma deusa. Mas Liz me provoca, Liz diz que sou malandra, que tenho uma capacidade laborativa fantástica. Ao mesmo tempo, diz que sou confusa. Enfim, Liz está confusa quanto a mim. A cada dia, enfim, vão surgindo situações novas, que exigem dinheiro e disciplina. Eu deveria estar dormindo agora, mas estou lhe escrevendo. Hoje achei-me um tigre; possuo aversão aos homens, mas nunca ataquei ninguém. Achei-me um tigre dos trópicos, um tigre fraquinho. Sim, pois se eu fosse um tigre da Sibéria, talvez pesasse mais para produzir mais calor. Talvez seja por isso que os estrangeiros leitentos são mais altos, mais bonitos...não sei. Heleno...ah, para esse menti na cara dura. E agora se eu o encontrar, ficarei em uma situação esquisita. Atraso minha vida. Não Heleno, não sou fotógrafa nem jornalista, sou uma farsa total ou quase total. O que Heleno faria se ouvisse isso? Chamaria a polícia, lamentar-se-ia? Dizem que queixar-se é pecado. Mas Hector não é pecador e se queixa o tempo todo. Não, não posso mais continuar com essa vida de penetra de festas, não tem sentido. Talvez eu entre em um hotel; essa fantasia com recepcionistas persiste. Sou egoísta e ridícula. Maura sumiu, mas não era real. Jandira com certeza se afastará ao conhecer-me, não ser que seja a completa louca que estou imaginando. Passei de novo pelo hotel próximo do cemitério e na ânsia de entrar, espiei para ver quem estava na recepção. Homem, portanto corri. Houve uma vez que entrei em um hotel paradisíaco em que só havia mulheres trabalhando. Era noite, mas quando amanheceu, ouvi vozes de machos e senti que seria difícil caçar uma gostosa. Foi um tédio terrível, mas amenizado pelos filmes pornôs. Não sei mais se é dia ou se é noite; não sei mais em que dia estamos. Parece não haver mais tempo, mas é verão, eu sei, por causa das chuvas. Tomara que você me responda. Você me internaria caso me visse: olhos no fundo, cansada, aflita e entediada. Ladra, vou acabar na cadeia. Vou parar, estão tocando a campainha. Alguém tocou a campainha e já está na cozinha. É ela. É Maura. Sinto que tudo vai terminar em silêncio mais do que em pizza.

- Materializou-se rápido hoje. O que vai fazer para o jantar, Maura?

- Nada. Só estou mexendo em suas panelas.

- Acha que isso me assusta? Acha que me sinto louca por isso ou então uma medium, uma paranormal? Alguém tem de se responsabilizar por mim. Vi isso na cara do síndico; vi na cara dele que sou esquizofrênica, incapaz. Mas o governo insiste em dizer que sou normal, que sou capaz.

- Preciso mexer em suas panelas.

- Por que não se materializa como a jovem da praia? Agora, pelo visto,está de Maria Antonieta.

- Sim. De qualquer modo estou sempre bela.

- Falei para Hector sobre Jandira e Mark. Hector acha que sou capaz de gerar um monstro.

- Talvez, mas de monstro já basta você, minha cara. Um tigre é um monstro, um ser inútil para os homens. Eu posso lhe dar um conselho?

- Complicado. Não acho legal ser penetrante. Saia daqui!

- Mas você é penetrativa e ainda mente descaradamente. Eu sou penetrativa e não minto. Eu posso levitar, veja. Eu posso voar como os deuses. Você não. Nunca irão crer que realmente me vê. Eu só existo para você.

- Na alcova espero que você não entre. Espero que você não durma comigo. Maura?Maura?

Maura havia se ido. Bernadete estava exausta e o dia não fora bom. Trazer problemas aos outros era a última coisa que queria. Mas era inevitável; não dera certo em São Paulo. Liz lhe dizia que talvez ela desse certo na África, no Kenya. Sim, Bernadete acatou o que Liz lhe dissera, mas viver no Kenya... De manhã Maura estava monstruosa sentada na cabeceira da cama. Gargalhou um gargalhar simplesmente aterrador e sumiu.

Acho que errei por ter nascido e errarei por ter morrido.

No outro dia, Bernadete, ainda no lusco-fusco do horário de verão, foi convidada por Hector para um evento. Na ida, dentro do carro, Bernadete sentiu uma certa reprovação que depois foi se relevando nos olhares das pessoas da festa. A gente com que ela conversou sempre dizia algo em sussurros, que ela captava como se a carapuça lhe servisse perfeitamente. Coisas do tipo: essa senhora é um parasita. E antes da festa, durante o dia, casais pelos quais ela passava, desconhecidos na rua, descarregavam sussurros que também lhe serviam perfeitamente como "essa sapa é albergue". Era tudo verdade: ela era um parasita, uma vagabunda, uma sapa, uma vendedora que não vendia, e muitas outras coisas. Talvez saísse do prédio onde morava porque a síndica também possuia o olhar de reprovação, de estranhamento. Não, então ela, Bernadete, não era uma doente como os psiquiatras falavam, era sã; era uma pessoa boba que fumava.

Não estou gostando desta festa; parece aos olhos alheios que vim aqui para comer, saciar minha ânsia de formiga. Como me estranho também, mas devo ser paciente para comigo mesma e para com os outros. Se eu me matasse resolveria alguma coisa? Talvez tudo se complicasse ainda mais, pois vai saber como é do outro lado! Era evidente que teria de voltar ao subemprego, era evidente que se voltasse seria demitida, seria vista como a séria-coitada que não cumprimenta ninguém. O suco de cajá está maravilhoso. Os penetrantes estão todos aqui, não faltou quase ninguém nesta festa, somente os penetrantes bonitões, da elite. Alguma coisa sobre minha vida vazou entre os penetrantes, e não quero acreditar que tenha sido Hector o responsável por isso. Não quero crer que alguém tenha de ser responsável por mim. Vou aceitar o convite de Jandira. Não tem jeito, sou vagabunda, não vendo. Va-ga-bun-da! A felicidade está longe, está mais distante do que qualquer galáxia que conheço. Acho que tenho lutado, mas lutado de forma errada, talvez caprichosa ou talvez idiota. As pessoas não estão sendo íntegras para comigo? Não sei, sou uma pouca vergonha. A miséria futura, a presente e a passada, tornou-se inelutável. Os penetrantes no final das contas são mais modernosos do que eu, mais espertos e pequenos vigias. E os dias têm sido entediantes porque fico parada, não luto. Não está havendo guerra para recuar, não está simplesmente acontecendo nada na minha vida.

O evento terminou cedo, mas Hector e os amigos e mais Bernadete não ficaram até o fim. Não havia o que Hector mais gostava, que era o champanhe, e se havia era pouco. A popularidade positiva de Bernadete estava no zero à esquerda. Dissimulada era o que teria de admitir que era. Era hora de dar um basta à esquizofrenia. Ninguém a aceitava, absolutamente ninguém com exceção dos psiquiatras. Palhaça, agora tinha que aceitar-se, trabalhar. Tinha de simplesmente trabalhar e ponto final; deixar o sonho de ser uma vendedora bem-sucedida de lado, voltar ao subemprego, parar de fumar. Seria melhor assim. Seus surtos não ocorreriam mais por motivos de doença, mas por motivos ligados à certa periculosidade. Não seriam mais surtos, mas coisa comum.

O mar não está pra peixe. Penso em ir até o cais, mas ir ao cais parece ser andar para trás. Aliás, tudo tem parecido ser andar para trás. Não deixo as pessoas em paz, mas mesmo assim sou tímida. A humanidade é o tigre que quer distância de mim. Debocharam de mim no evento. Sim, uma mulher que me acha doente e repugnante cochichou para um segurança algo sobre mim e depois eles soltaram boas gargalhadas. Um penetrante é sempre motivo de deboche ou de compaixão. A penúria vem chegando cada vez que como meus doces. O que será isso, por que saí do regime? Tenho fama de gulosa e mal-educada desde pequena. Michele não está na minha visão agora, estou deitada. Será que ela está com fome? A ração dela não terminou ainda; os humanos deveriam comer ração, deveriam vestir-se com a mesma roupa; seria tudo mais prático. No cais agora, sem beleza, eu certamente seria uma bandida. Tenho conversado com Jesus, pedido a ele orientação...

O telefone tocou. Bernadete levantou-se pensando que era Hector, mas era Jandira. E Jandira estava bêbada. Bernadete ficou a ouvindo, mas sem prestar muita atenção ao que ela dizia. Mark também falou.

Sim, agora em mim tudo é vaidade, tudo. Se acham que me olham com reprovação é vaidade, se quero uma palmilha, é vaidade, se penso em escrever um livro, é vaidade... Mark está me dizendo que a pobreza não está no discernimento quanto ao que podemos mudar, pois uma atriz que está no topo irá publicar um livro dizendo que foi pobre, dando lições de vida a pessoas como eu. E atrizes como essa me fariam enrubescer de tanta vergonha. Enrubesço ainda, mas não como antes. De qualquer forma, perco o controle quando enrubesço, fico estática. Será mesmo o Ego?

Bernadete foi dormir sem pensar no amanhã, absolutamente despreocupada, vadia, mas só por alguns minutos. Jandira lhe falara sobre o prometido, que Bernadete tinha um prometido que ainda não aparecera. Era hora de mudar, mas para o Kenya? As pessoas que haveriam de amar Bernadete surgiriam donde? Queria fazer uma consulta com Paracelso, mas ele vivia em outra época, em um passado meio distante. Paracelso saberia curá-la? Mas ainda não estava oficialmente doente, e Liz a achava dona de uma saúde excelente.

Era verão. E mais um verão se passaria sem que houvesse um romance na vida de Bernadete. Dentro dela, dessa mulher que se estranhava, também era verão. Na Cosmética houvera mudanças; Bernadete havia conseguido vender seu primeiro perfume. Não, realmente não era difícil vender perfumes. Por vezes ela chegava do trabalho exausta, com cheiro de várias fragâncias, mas quem as sentiria? Só se Michele pudesse senti-las, só se ela pusesse a mão dentro do aquário. Os perfumes, inspirados nos importados, não eram muito caros. Mas devido a atual crise mundial, não eram mais um produto de primeira necessidade para os que adoravam perfumes. Maura exalava um perfume que se assemelhava ao cheiro de rosas vermelhas. Maura não aparecera mais para mexer nas panelas, e então, Bernadete, resolveu ir até o cemitério. Sentou-se em uma lápide de mármore branco com uma margarida na mão. Bem-me-quer, mal-me-quer...O céu estava azul e mostrava uma lua cheia, vespertina. Havia cirros que mais pareciam rastros de foguetes. De súbito, Bernadete sentiu a mão tocar-lhe o ombro, a mesma mão daquele dia chuvoso, sardenta e úmida.

- Achou que eu não viria? Ah, eu vivo sempre por aqui. Não acha sinistro?

- Maura? Mas você não pode ser Maura. Você parece uma medusa. Por que se materializou assim?

- Para assustá-la.

- Na verdade eu gostaria de saber qual a sua verdadeira aparência, se é a de um anjo ou de um demônio.

- Posso ter a aparência que quero.

- Você poderia ter a minha aparência?

- Claro, com alguns retoques, naturalmente. Esses seus cabelos que você não lava, por exemplo, seriam brilhantes. Talvez eu mudasse a cor de seus olhos. Que tal o azul?

- Oh, azul não. Por que não negro? E você poderia se passar por mim em qualquer lugar? Ou seja, os outros a veriam como eu a vejo?

- Sim, se assim você quer, assim será.

Acho que estou realmente louca e mais preguiçosa do que nunca. Maura agora tem a minha aparência. Somos gêmeas idênticas ou quase idênticas, não fosse a cor dos olhos e o brilho dos cabelos. Mas estou em um cemitério, em um lugar onde futuramente talvez estarei. Não neste de ricos, é claro, a não ser que eu esteja vaticinando. Não sei, não sei o que faço com Maura, se ela é apenas fruto de minha imaginação; mas alguém se aproxima e diz que somos belas gêmeas. Não, senhor, é só uma alucinação, uma alucinação, eu grito. E o homem ri, acha que estou brincando. As pessoas em geral são puras; eu é que não presto. Mark me disse que se ouvisse as coisas que penso ouvir na rua, não sairia mais do lugar onde mora. Talvez seja mesmo a condição, a minha condição humana; coisas que desconhecidos falam quando me veem. Esses falares vêm de gente inteligente. A nação é a gente, mas para a nação gente é família ou então um não-baiano.

Maura e Bernadete se tornaram idênticas, mas Maura nem sempre aparece no apartamento. Hoje ela apareceu, mas em miniatura.

Ela seria então capaz de crescer, tornar-se uma gigante, abrir a janela pela manhã e me tirar da cama com a imensa mão. King Kong! Disse a ela que mudasse de aparência, que eu não gostava de me ver como em um espelho. Ela, após certo tempo, concordou e transformou-se em uma chinesa. Assim, saimos juntas. Pedi-lhe para me falar onde eu poderia encontrar dinheiro, mas ela não quis dizer. Pedi-lhe então que sumisse e fui comprar doces. Gastei tudo o que tinha na bolsa em doces. Sou voraz para doces e...e agora eu sei que o governo vai suspender meu auxílio. O psiquiatra me disse que tudo em mim é simples: a esquizofrenia, a babaquice, a burrice. Tudo. Sou um minestre inconsciente. A marcação cerrada vai se iniciar a partir de alguém que ainda desconheço. É sempre assim, as horas fazem as pessoas mudarem com referência a mim. Vou escrever mais uma carta a Ian...

Ian, resolvi lhe escrever de novo pois tenho uma revelação a lhe fazer. Vi-o uma única vez e foi paixão à primeira vista. Eu sei que esse negócio de amor à primeira vista é coisa da cultura oriental, mas então eu tendo mais para o oriental, vai saber. Hoje não falei com ninguem, falei somente com Maura, pelo que me lembre. Estou gastona! E gastei comprando coisas chinfrins, ou seja, não o que gostaria de comprar. Mas percebi que quando as pessoas notam que você vai para o mais barato, elas te tratam com formalidade. E me chamaram de senhora o tempo todo; de senhora e de dona. Estou em um profundo desequilibrio emocional, sem saber o que fazer de minha vida, temendo de novo o governo, minhas maldades. Não sou mais interessante, e caso você tenha se interessado por mim naquele dia, tire o cavalinho da chuva. Irá se decepcionar quando me olhar ou mesmo falar comigo, se é que vai me vir de novo. Estou lendo Flaubert e Flaubert demorava no mínimo três anos para escrever uma obra. Quero escrever um livro em dois dias. Flaubert devia ser cuidadoso com a própria imagem, com o que iria passar para o humanidade. Liz tem dito aos outros da União que a estou destratando, mas é ela quem me destrata. Bom, ela é a certa, mas mesmo assim, sinto que nunca darei certo. Está chovendo uma chuva intermitente. A angústia se concentra na barriga, e você sabe por quê: o governo me vendo como sana, Liz me vendo como sana. Sou sana e malandra. Ian, acho que querem me levar ao suicídio. Essa populaça desconhecida vive a sussurrar pelas costas coisas esquisitas. Hoje uma mulher, uma transeunte, vinha por trás acompanhada e dizia: ela é bl, ela é bl, coitada da bl! Claro que foi para mim, creio eu. Sou uma penetrante e acho que bl é penetrante, mas não sei o signigicado real de bl. Claro que não seria a bela louca, mas prefiro pensar assim, que bl é a bela louca. Estou te amando; é um amor platônico. Mas não tenho consciência total desse amor, nunca terei. Se tiver, eu fujo. O casal quer me engravidar e continua me ligando. Jandira é bipolar; diz nunca ter tido experiência com outra mulher, mas quer me beijar. Quando terei paz na vida? Vivo em constante agonia. Está tudo se fechando e sinto que talvez neste ou nos próximos anos eu tenha péssimas notícias sobre a minha saúde. Flaubert talvez reescrevia suas obras e demorava para terminá-las porque naquela época além de não haver computador, as pessoas tinham excelentes caligrafias. Havia dislexos naquela época? O mais certo é que ele não queria se expor ao ridículo. Estou apavorada. Hoje é sábado de novo, mas ontem também parece ter sido. A populaça desconhecida quer justiça, mas que crime cometi? Sou tão repugnante assim? Ninguém me quer; a oferta está maravilhosa, abundante, pois pouca gente por aqui não faz academia. Acho que para o tempo sou uma tartaruga, não evoluo. O que vou fazer agora? Dormir novamente. Tive mais um daqueles péssimos dias. Se ao menos fizesse amizades, mas me reprovam, acham-me velha. O que pode esperar uma pessoa como eu? A salvação? Parece que estou deveras intoxicada para qualquer tipo de salvação. As pequenas gentilezas alheias me salvam, e tento sempre ser amável. Dizem que as pessoas amáveis são as amadas. Não tem cortinas aqui onde escrevo e creio que no prédio da frente uma rede de tv me observa. Temo cair na boca desses apresentadores sérios e sensacionalistas. O que se pode esperar de uma pessoa como eu? Caráter? O casal me ligou sem parar e pus almofadas sobre o telefone. Bastava eu diminuir o som, afinal não estamos na década de sessenta e eu não sou aquela atriz. Vivo querendo ser artista, é isso. Quero ser escritora, cantora, que babaquice a minha. Com essa idade já era faz tempo! Mas a vida é mais curta do que imagino. Amanhã deve ser domingo, e estou depravada ao extremo para ir à missa. Por favor, não sofra por mim como acho que outras pessoas estão sofrendo. Como posso ajudá-las? Could I help you? Sinto que um milionário me observa e sorri a cada cigarro que acendo. Escreva-me, por favor, nem se for só pra dizer que me odeia. Se escondo o rosto, dizem que o rosto é comum. Sempre os desconhecidos estão a sussurrarem. É assim, eles querem justiça!

O cheiro de rosas vermelhas anunciava a presença de Maura. Ela apareceu a Bernadete naquele domingo chuvoso com uma roupagem esquisita: estava negra, como uma negra talvez do Kenya. A única alegria de Bernadete era a de se embebedar com champanhe. Ela pensou em levar o fantasma para uma festa. Naturalmente que devia existir fantasma bl. Agora ela se lembrou, ela se lembrou o que significava bl. Bl era boca livre, era a pessoa que comia de graça, mas nem sempre do bom e do melhor. Vez ou outra certas mídias alertavam sobre a existência de penetrantes, mas isso acontecia mais ou menos de dois em dois anos. Matérias frias precisavam de mais detalhes para irem se esquentando.

- Maura, estou apta para o trabalho, o governo não se engana. Estou simplesmente apta. Talvez eu desse certo no Kenya. Você bem que poderia me levar para lá, mas não vem com dinheiro! E por falar em dinheiro, o dinheiro que sempre dispensa essas formalidades que me atazanam (são educados demais?), gastei demais. Parei de comer doces, estou parando. Resolvi que vou a casa de Mark. Quero ter um filho de uma relação a três. Se você quiser vir comigo, ficará nos observando. Nem conheço Jandira. Ela disse que também fuma, mas me parece mais controlada. Ela disse que já transou com mais de cem prostitutos. Não acho que tenha tudo isso em São Paulo.

A casa de Mark tinha decoração simples: na sala, havia um sofá branco de couro, uma lareira laranja, um criado-mudo de mogno ao lado do sofá, um televisor de vinte e nove polegadas sobre a lareira e um tapete persa cor-de-rosa. Para mim o menos também é mais.

Bernadete tocou a campainha que era daquelas antigas que faziam dindon. Quando olhou para a moça que abriu a porta ficou simplesmente horrorizada. Era Jandira. A moça vestia uma lingerie preta e era bem magra, esquelética. Os cabelos pretos brilhavam sobremaneira, tinham o corte chanel. Jandira deu uma reboladinha e a convidou para entrar. Bernadete ficou excitada.

- Bernadete, você é horrível. Pensei que era mais bonita, mas deixe estar. Mark está nos esperando no quarto. Vamos logo ao que nos interessa. Queremos sexo, queremos te dar um filho, te engravidar. E é claro que com esse corpixo aqui lhe dando um banho de gato você nem vai se enojar de Mark, vai até esquecer que ele está te penetrando todinha.

- Caso eu fosse santa, talvez riria. Vai ter um filminho pornô também?

- Claro! Alugamos uma fita mui interessante, como você! Sabe, é a minha primeira experiência com mulher, e eu e Mark a escolhemos.

- Estou envergonhada. Pra começar minha lingerie não chega aos pés da sua. Pra terminar nunca tive atração por Mark.

O quarto estava iluminado com uma luz vermelha. Bernadete entrou nuinha, aconselhada por Jandira. Mark devia estar embriagado, pois jogou as duas na cama e caiu por cima delas, com as coxas enormes abertas abraçando os dois corpos femininos.. Bernadete cedeu a tudo, a todos os pedidos vindo de ambas as partes, tanto de Jandira quanto de Mark.

Acho que terei o filho ou a filha. Dentre as mulheres repugnantes, as endinheiradas é que são as dignas, as legais.

Quando a noite desmaiou, Bernadete acordou e saiu correndo para a sala. Voltou para o quarto: o casal jazia sorrindo. O oxigênio parecia diferente por causa da fumaça que não escapara. Ela recuou e foi até o banheiro pegar suas roupas. Olhou-se no espelho e se sentiu feliz. Era bom trocar fluídos, pecar. Hoje passaria um filme interessante na tv. Na sala, viu que havia dois gatos siameses. Eles a olharam com reprovação, como se ela fosse uma vadia menos do que uma intrusa. Na verdade, no acerto de contas ela não passaria de uma tímida. A porta estava trancada e sem as chaves. Bernadete abriu a janela e pulou. Estava frio. Dali em diante o tempo passaria mais rápido ainda...

Bernadete estava no sexto mês de gravidez quando Jandira lhe ligou. Era a primeira vez desde aquela noite no quarto vermelho que ela ligava. Ela disse que Mark havia ido para a Florida.

Não entendi direito, mas acho que era rua Florida.

Jandira perguntou-lhe como estava, se engravidara.

Por que não mentir?

Bernadete respondeu com um claro que não, sua tola.

Acho que o bebê vai ser menino. Não sei, não fui ao médico ainda. Talvez eu mesma faça o parto, de cócoras. Mas aqui no prédio estão rindo da minha cara. Já não pago o aluguel há seis meses e estou passando fome. Estou magra. Estou vivendo da caridade de Liz e da União. No mês que vem, o governo talvez me conceda de novo o auxílio, mas agora auxílio gravidez. Assaltei a União, não sabia que tinha tal capacidade.

- Conseguiu o auxílio doença?

- Sim.

- Está trabalhando?

- Sim.

- Ah, então é só isso. Tchau.

Bernadete estava conseguindo vender alguns cosméticos. Ela sentia que não era mais por sorte, mas que havia se tornado de súbito uma vendedora. Estava ali, esperando um bebê, tinha de se virar. E a esquizofrenia? Ela queria esquecer-se de que esteve dependente do governo. O bebê nasceria dentro em breve, seria de sagitário ou capricórnio. Não, libra. Maura a ajudava vez ou outra, dizendo onde havia dinheiro. Maura havia mudado. Agora ela só se materializava na forma de estrelas de cinema: homens. Clark Gable fora sua última materialização desde a última sexta-feira, justamente no dia em que Jandira ligara. Quando Bernadete acordou certa manhã de outubro com a bolsa estourada, Maura estava na porta do quarto e apontou-lhe o telefone.

- Victor, o bebê vai nascer aqui.

Bernadete ficou de cócoras. Agora era uma índia de algum século remoto. Não tinha uma explicação exata de como sabia ter um filho de cócoras. Por volta das dez da manhã, após um trabalho de parto alucinante, nasceu K. O ser que Bernadete dera a luz era hermafrodita e possuia um olho só. Victor riu muito vendo Bernadete gritar durante o parto. Claro que era perigosíssimo ter um bebê ali, e sem ajuda de ninguém, mas Bernadete não tinha a quem pedir ajuda naquele momento, e nem se tivesse pediria. Liz a criticaria e não aguentaria saber que a criança era daquele jeito. As cinco da tarde, Hector ligou. Hector pressentiu o nascimento. Bernadete, que não acreditava ainda no que acontecera, pegou o telefone com K. no colo.

- Hector, nasceu! E é simplesmente lindo o meu bebê. Não quero, por enquanto que ninguém venha me visitar. Os vizinhos já bateram na porta e ameaçaram arrombá-la. Eu disse a eles que estava tudo bem e eles se foram, calados. Vou passar amanhã com o bebê pela portaria e não vou mostrá-lo a ninguém.

- Nossa, que ignorância, Bernadete. Quem fez o parto?

- Uma tal de Maura, uma parteira.

- Menino ou menina?

- Eu queria os dois e vieram os dois em uma pessoa só.

- Que aberração! Já não basta você! Mas você pode ganhar muito dinheiro se essa criança for mesmo hermafrodita. Quem vai sustentar a criança, Bernadete? Dúvido muito que você a mostre ao governo. E além do mais, estamos no século vinte e um e não vivemos na Rússia nem no século três nem no interior de Santa Catarina. Os vizinhos, muita gente vai querer ver o bebê.

- Não o bebê de uma esquizofrênica.

- Você é sadia, teve um bebê sozinha.

- Hector, escute bem.

- Escuto.

- Você tem de vir aqui para ver o que saiu de mim. Ele tem a cor chumbo,um olho só no meio da testa e os dois sexos.

- Talvez seja o enviado.

- Eu amo meu filho do jeito que ele é.

- Mas não vai poder continuar aí.

- Vou sim. Sou humana, as pessoas vão entender. Vou trabalhar e deixar K. com Maura. Ela vai cuidar dele para mim.

- Mas onde mora essa tal de Maura?

- No cem...Hector, não me deixe mais nervosa do que já estou. K. precisa mamar.

- Você poderia ir para o minifúndio de uma pessoa que conheço, no norte do Pará. Pare de mentir para mim.

- Sabe, as pessoas estão em pânico por minha causa. Querem que eu me veja como uma estranha, como uma sociopata, como a que sempre erra. Sabia que agora me lembrei daquela cadela fatal com que tive um caso? E desde esse caso é que escuto o quanto é triste minha condição.

Ian, meu amor. Tive um filho hermafrodita. Sei que pode chocá-lo mas desta vez não estou mentindo. Sinto que evolui nos últimos meses. Agora tenho uma companhia. Não o registrei ainda, nem vou fazê-lo. Acho que vou para o interior porque aqui querem as coisas tudo honestamente. Teria de mostrá-lo a médicos, a padres, à liga das senhoras católicas. Ainda penso em ir para o Kenya. Maura tem me arranjado algum dinheiro, mas é pouco para tomar um avião. Não quero que ninguém veja K. Ele assustaria essa populaça desconhecida, provocaria pânico, e talvez me linchassem por ser uma mãe de um filho diferente de tudo. Mas eu sei que há casos semelhantes nos anais da medicina. Eu te amo, te amo, te amo, agora mais do que nunca. Quando vai escrever-me, meu amor? Pensei que pudéssemos casar e pôr seu sobrenome em K. Se eu fosse sábia, escreveria um livro? Não sei, não sei driblar a lei de causa e efeito. Eles, o populacho, estão imunes aos efeitos quando se trata de me virem como errada. Não fui mais à União; não sei mais de Liz. Temo ir para a cadeia, pois aqui tudo é motivo de cadeia. Peguei um ônibus com K. todo enfaixado. Umas mulheres quiseram vê-lo, ver a cara dele, e foi difícil de impedir. Disse a elas que K. estava gripado. Claro que elas desconfiaram de que se tratava de um bebê deformado. Sou também meio deformada. Não, a princípio elas pensaram que eu estava segurando uma boneca, mas depois que K. começou a chorar de fome, elas se entreolharam horrorizadas. Ouvi alguém dizer que a sapata iria matar o bebê; um homem disse que aquele bebê era roubado, gritando depois que me prendessem. Bom, saí logo do coletivo. O choro de K. me salvou, pois não é um choro normal; ele ensurdece. Ah, Ian, como posso fazê-lo crer que estou dizendo a verdade. Não sei o que fazer.

Três dias após Bernadete ter ido ao correio depositar a carta que escrevera para Ian, a compainha tocou.

É meu amor em carne e osso.

Ele a beijou meio que enojado, mas Bernadete quis crer que aquilo era só uma parcelazinha da reprovação recorrente do mundo para com ela. Ela devia, e ela devia talvez ao mundo explicações, mesmo ninguém pagando suas contas; nem ela.

- Posso ver a criança?

- Sim, está no quarto.

- Jesus amado. O que é isso? O que é isso?

- Doutor, o que farei?

- Vou lhe oferecer moradia, não se preocupe. Ninguém vai saber. Alguém, aliás, já sabe?

- O populacho desconhecido que sempre me persegue desconfia, claro. Eles por vezes não querem parecer otários. Acham que sou uma bandida que roubou um bebê. Mas não tem sentido, pois me viram barriguda.

- Na cidade do interior, para onde vou levá-la, é mais seguro. O bebê poderá crescer sem os curiosos.

- Liz sempre diz que sou uma curiosa. Ela não, ela sumiu, nunca mais ligou nem pra saber se estou viva.

- Faça as malas imediatamente. Você...você não tem higiene, Bernadete. Este apartamento é um foco de bactérias.

- Ai é que você se engana, Ian. Eu desinfeto sempre tudo. Não levei K. ao médico, parece que estou na pré-história ou na história.

- Fez muito bem. A mídia me preocupa.

Esta cidade do interior é bonita. Não me lembro do nome, não quero saber. O fato é que Ian resolveu cuidar de mim e de K. A crise internacional não acabou, já dura anos. K. babulcia mamãe, está andando. Lembrei-me hoje de uma paixão que tive em São Paulo; lembrei-me da cadela importante e acho que se aquele exagero de mulher aparecesse por aqui eu não resistiria. Mas ela é jovem, e quando chegar à minha idade, talvez esteja bem de vida. A cor da pele de K. é chumbo e a cor do olho azul.. Belíssima criatura.

Bernadete ligou do seu celular, que era de São Paulo, para Maria Clara de Souza, sua ex-chefe na Cosmética. Ligou porque precisava falar com alguém, precisava saber como estava indo a empresa, se estavam precisando de gente para revender em outra cidade. Claro que fora um ato perigoso, mas Maria Clara pareceu-lhe amistosa; perguntou de Hector. Bernadete então se lembrou de que Hector sabia da existência de K.

Doutor Ian, estou pensando em voltar para São Paulo. Vou deixar K. aqui, sozinha. Ela já tem quatro anos e sabe se cuidar. Imagine que ela sobe em um banquinho e já lava a louça. Você tem vindo todos os meses, mas não aguento ficar aqui, enjaulada. Bom, de fato talvez seja bem melhor do que estar na cadeia. Sim, temos um quintal enorme, aroeiras, figueiras, goiaberas, e os morangos são deliciosos, mas sinto falta da vida que levava. O remédio que estou tomando provoca acatisia. O psiquiatra desta cidade não entende o que é acatisia. Ele proibiu-me de ler bulas. Eles não gostam que a gente leia bulas. Vem cuidar de K. para mim. O remédio que você me deu acabou e tive de ir a um psiquiatra da região. Saí um pouco enquanto K. estava dormindo, desculpe. As pessoas desta cidade são sinistras, e parece terem uma alimentação fora de série. Tenho inveja do que elas comem. É tudo orgânico, como na época de nossos avós. Acho que têm compaixão de mim. Sim, gente desconhecida tem compaixão de mim. Maura nunca mais apareceu. Faz tanto tempo pra mim que ela se foi! Acho que é por causa de K., que aliás, não pára. A mulher que veio benzer K, que insistiu em vir benzê-lo, teve um enfarto fulminante na minha frente. Foi horrível. Até então eu não sabia o que era o ronco da morte. K. assustou-se muito, ficou com trauma. Como sou burra! Está faltando leite. Manda dinheiro logo. Enfim, quero ir visitar São Paulo, e você vai cuidar um pouco de K. Tira umas férias, vai! K. gosta muito de você. Não quero que ela seja uma criança mimada, que fique igual a Sabrina, uma amiga de infância que virou uma prostituta de luxo para satisfazer seus caprichos. Nossa, como estou julgando as pessoas. Eu sou mimada, eu também tenho meus caprichos. Liz diria isso, tenho certeza. Enfim, não quero que K. fique como eu; quero que seja uma pessoa sadia, que nunca precise do auxílio de governo, de laudos de médicos impacientes, sem demonstrações de perspectivas, mas cheios de lições de vida, talvez porque no fundo me achem sadia. K. diz que quer ser artista quando crescer. Imagino-a em hollywood. Lindeza de pessoa! Continuo uma tartaruga. Lavo a louça em duas horas, o que é uma aberração, já que ela nunca fica limpa. Você me prometeu que um dia me levaria para Venezuela. Quero tanto conhecer! Veio a polícia aqui saber sobre a benzedeira e quiseram ver a criança. Eu, como sempre, vivo encrencada. Mas aí eu disse a eles que a mulher teve o ataque antes de entrar na casa. Eles acreditaram também porque fiz uma ceninha, vai. Até chorei. Quem vai pra hollywood sou eu, velha desse jeito, e senhora. E seu for indicada para o Oscar, vou ficar feliz. Deus me perdoe, como sou errada.

O clima em São Paulo era, como sempre, bastante pesado. Bernadete se instalara em uma pensão; alugara uma vaga. Poucas vezes na vida havia ficado em vagas, dividido um pequeno espaço. Na manhã negra de julho, ela acordou quando a companheira de quarto já havia ido trabalhar. Sentiu-se vagabunda, mas o fato é que estava desempregada. Pensou em Ian, no quando K. deveria estar-lhe dando trabalho. K. já estava crescidinho; contava sete anos e meio. Ian prometera-lhe cuidar bem do menino, talvez até fazê-lo de cobaia, o que Bernadete não admitira. Vestiu seu jeans e sua camiseta habituais, mas calçou um sapato alto verde que achara na casa do interior e que era seu número. Pensou em procurar Heleno, outro divorciado que conhecera em uma festa. Estava decidida que naquela noite iria para alguma festa, iria dar continuidade a sua vida de penetrante, pois além do mais não tinha nem dinheiro para comida. Ainda era manhã, afinal; eram onze horas; horário em que alguns já suaram muito no trabalho. Mas ela não ligava para esse tipo de coisa, não ligava mais. Foi até à biblioteca e pôs-se a ler os jornais, secção de empregos.

Como garçonete eu nunca trabalhei e talvez dê certo.

Horas depois estava batendo na porta de um restaurante até que chique. O empregador apareceu e ela lhe disse que queria ser garçonete. Mentiu que tinha experiência e fez-se toda charmosa. Conseguiu o emprego, mesmo o empregador a achando velha demais. Começaria na manhã do dia seguinte. De noite, vestiu o seu único vestido, o framboesinha, e saiu com uma bolsa a tiracolo preta, realmente de couro. Segundo vira pelos jornais, haveria uma festa de inauguração de um shopping na zona leste. E quando chegou ao shopping, sentiu o passado de glamour voltar. Entrou fingindo ser uma importante jornalista, sem maiores problemas. Estava perfumada, pois Patrícia, sua companheira de quarto, deixara-a passar um pouco de Angel. A câmera ainda estava funcionando, não quebrara com o tempo.

É, estou aprendendo a conservar bem minhas coisas, e o paulistano sempre disse o contrário de mim.

Bebeu champanhe francesa e comeu caviar, salmão defumado, petits dos mais diversos; enfim, estava feliz de repente. Um homem veio lhe perguntar algo e aí eles iniciaram uma conversa. Bernadete procurara por Hector, mas Hector não havia ido ao evento.

- Posso saber seu nome?

- Meu nome é Berna, de Bernadete.

- Lembra a Suiça.

- Sim, mas não sou tão pontual.

- Meu nome é Flávio e sou psicanalista.

- Interessante. Um psicanalista em São Paulo deve cobrar caro. Você psicanalisa casais?

- Sim, todo o tipo de casal.

- Mas por que se aproximou de mim? Sou uma senhora, uma senhora que aparenta mais idade do que tem. Merda, e isso vai continuar até o fim da vida, essa questão de senhora e de idade.

- Acho que já a vi em algum evento.

- Não, se quer saber, não sou uma penetrante. Sou jornalista.

- Verdade mesmo?

- Está bem, Flávio, está bem. Tire de mim o que quiser. Estou bêbada a ponto de falar tudo. Estou minada.

- Tem religião?

- Claro. Apesar de ter tido uma educação religiosa descurada, sou sou meio católica. Mas por que quer saber? Achas que tenho talento para freira ou coisa assim?

- Não sei, achei-a esquisita, e achei que essa esquisitice estava ligada à religiosidade. Trabalho também com astrologia.

- Sou taurina.

- Não quer me falar sobre seus relacionamentos?

- Sou divorciada de um homem que está morando atualmente na Holanda. Ele é caixeiro viajante, desses chiques. Me separei porque não havia mais sexo. Eu não queria mais sexo, eu estava a fim de uma mulher, sabe.

- Sim.

- E depois...bom, é só. Morei sozinha em um apartamento, mas minha vida era monótona, sem alegrias. E ela continua sem alegrias até hoje. Uma pena eu não ter aproveitado mais. Tudo que era grande hoje é pequeno, de concreto. Tudo que era de mármore hoje é de concreto. Acho que vou vestir o terno de madeira logo. Ou, ficar doente, dando trabalho. Mas estou parando de fumar, estou parando de comer tantos doces. Sou uma formiguinha. Daqui a pouco vou ser apontada na rua como a mulher do cigarro. Odeio cigarro, mas fumo.

- Você deve ser importante, uma jornalista importante. Acha que as pessoas apontam para você na rua?

- A populaça desconhecida me persegue. É porque não admitem que eu tenha defeitos ou então me amolam porque sabem de alguma forma sobre minhas fraquezas. Algumas estão escritas na cara. Pena que não sou mais bela. Mas de que adianta ser bela? Adianta no sentindo de ser delicioso por vezes. Mas isso não te livra de preconceitos, muito pelo contrário. Tem gente que tem preconceito contra beleza; acha que beleza está associada à burrice. Mas não, talvez feiúra esteja. Você acha que beleza é fundamental?

- Sim, de certa forma sim.

- Sim, eu também acho porque o mundo é só aparência. Eu tenho uma filha linda. Meu amigo, se eu lhe contasse minha história, garanto que metade dela você não aceitaria; acharia-a inverossímel.

- Vamos até minha casa esta noite?

- Amanhã tenho de trabalhar, Flávio. Que tal no meu dia de folga?

- Uma jornalista tem dia de folga?

- Claro. Ah, meu amigo. Sou que nem faxineira, garçonete, ainda mais sendo mulher. Me deixa seu telefone que eu te ligo. Um psicanalista deve ser bastante ocupado. Estou tão feliz esta noite porque alguém olhou para mim e quis conversar comigo, mesmo sendo um homem! Mas com homem não vou com muita sede ao pote, não tem perigo...

Antes mesmo de o dia nascer Bernadete já estava acordada. O efeito da bebida fazia-lhe dormir bem pouco. Vestiu-se antes da companheira, ou irmã, como ela preferia chamar, e saiu de mansinho para não acordá-la. A lanchonete abria às sete. O empregador estava-a esperando, e Bernadete chegou meia-hora antes do combinado. Ele parece ter ficado bastante satisfeito. Ela já procurara emprego de garçonete no passado, mas nunca deram-lhe oportunidade, talvez porque quisessem mulheres bem femininas. Era preciso sempre ter o certificado de garçonete. Ou quase sempre. O expediente transcorreu tranquilamente; afinal, não houvera muitos clientes e Bernadete estava aprendendo o serviço. Um cliente, um homem calvo com cara de bandido, chamara-lhe de retardada porque ela derrubara um pouco de Coca na mesa no momento de encher o copo dele. Mas o cliente havia lhe diminuido com razão.

Devo ser mesmo uma retardada, e tomo esse tipo de agressão verbal como punição. Hoje em dia ninguém agride outros gratuitamente, há sempre uma razão bem forte; afinal, dizem que na cidade grande a maioria é civilizada. Estou no quartinho, e Patrícia ainda não chegou. Já se passou uma semana desde que comecei na lanchonete e amanhã é meu dia de folga. Vou ligar para Flávio, se bem que gostaria de ligar para Mark, levar-lhe K. e dizer toma que o filho é teu.

Amanheceu um amanhecer sem Sol visível. Isso fazia-a recordar dos problemas que advinham das compras visíveis. Após as oito, Bernadete ligou para o consultório de Flávio, mas ele não havia chegado.

O que fazer, então? Sou mesma péssima em tudo. Não acho que alguém me odeie. O cigarro me apavora, mas acendo outro e mais outro. Estou aflita, envergonhada de falar alto pelas ruas. Uma louca é pouco. Estou no consultório de Flávio, e ele não parece me estranhar como o populacho desconhecido.

- Sabia que viria.

- Não quero tomar muito o seu tempo, Dr. Acontece que ando aflita.Parece que têm algo contra mim, não sei. Enfim, esse estranhamento advindo de gente desconhecida não está me favorecendo em nada.

- Você não é uma estranha, é bem comum.

- Nesses anos todos, minha fé não tem se renovado. Minha luta se resume basicamente em sair do país, mas nunca consegui.

- Mas você não é jornalista? Deve ganhar razoavelmente bem.

- Não, não sou jornalista. Menti. Peço o seu perdão. Na verdade estou trabalhando de garçonete no momento. Eu finjo que sou jornalista, mas também não me considero uma penetrante. Estou a procura de meu amigo, Hector. Ele sumiu. Deve ter ido a Paris, o grande sonho da vida dele. Eu tinha o sonho de ir para a Europa, mas se agora me estranham aqui assim, imagine lá. Estou reconhecendo que não tenho muito juízo e que por isso sou sempre punida. Claro que não aceito punições, mas de repente elas se tornaram claras. Sou apaixonada por um homem que se chama Ian e que cuida atualmente de meu filho.

- Ah, a senhora tem um filho.

- Sim, e ele é lindo. Mas resolvi abandoná-lo porque me senti incapaz de educá-lo. Senti saudades de São Paulo, como pude?

- Hoje tem algum evento que pretende ir?

- Sim, sim. Eu...eu vi através dos sites que tem eventos bons para se ir.

- Tem coragem de vir até aqui e dizer na minha cara que é penetrante.

- E daí, muita gente que tem dinheiro é.

- Mas você não quer ser punida e continua penetrante.

- Acho que eles sabem que sou penetrante. Dizem que têm um dossiê,que sabem quem é quem. Mas basta olhar para mim, não basta? Descobri que as pessoas com quem converso são de certa forma intolerantes quando mostro um lado que elas não aceitam em mim.

- E que lado seria esse?

- Um lado cruel.

- Lado cruel?

- Sim, mas meu lado cruel não é pesado. Não atinjo ninguém; atinjo mais a mim mesma. Me sinto vagabunda. Bom, vamos terminar logo a sessão. Eu sei que você sabe que não poderei pagar e...

- A primeira eu não cobro. Quero que venha a meu consultório uma vez por semana. Não vou cobrar. Geralmente costumo cobrar quatrocentos reais por sessão.

- Mas então que bom. Como disse, estou aflita, sem norte.

- Mas veja bem. Eu poderia abrir essa exceção para qualquer outra pessoa. Não se sinta especial.

Ian, quero saber notícias de meu filho, como ele está, se está bem de saúde. Estou com muitas saudades. Estou fazendo terapia, mas ela não parece estar me ajudando. Flávio gosta de mim e me pediu em casamento. Estamos namorando. Acho que terei oportunidade de me mondar. De qualquer forma, continuo apaixonada por você, desculpe ser tão sincera. E agora mais ainda, pois sei que K. está em boas mãos. Eu poderia ligar, falar com K., mas quando tentei fazer isso uma voz robótica disse que o telefone inexistia. Onde será que vocês dois estão? Na Venezuela? Não vou à procura de meu filho, nem de você. Por favor, me ligue. Ou então me escreva. Larguei o emprego de garçonete e estou trabalhando de secretária, no consultório do doutor. É uma chatice, sou uma chata. Enfim, não defino o rumo que quero tomar em minha vida. Talvez eu vá para a Europa, finalmente. Sonhei com isso minha vida toda, mas foram sonhos esporádicos. Sou pecadora e suja. Diga ao K. que eu o amo. Não, não diga nada. Sou uma monstra, mas nunca pensei em aborto. O inverno tem sido rigoroso. Estou preocupada. Tive notícias de Jandira; ela está internada em uma clínica para adictos. Quanto a Mark, ele está bem. Mas eu não o vi, não falei com o pai do meu filho. Preciso de ajuda mesmo estando com Flávio. Ele sabe que sou penetrante, sabe da porcaria, das minhas vaidades, sabe tudo ou quase tudo. A crise tem estado braba. Eu também. Mas não se nota isso nas ruas. Tive muita sorte com Flávio, apesar de ele não me amar. Ele detesta cigarros e esquizofrênicos. Continuo dando minhas escapadas para motéis com prostitutas. Ou então Maura vez ou outra se materializa. Desta vez ela se materializou de Mary Stuart. Eu nunca lhe falei que ela era um espírito. Sim, mas estou lhe contando agora. Estou lhe escrevendo com meu robe negro, e já passa da meia noite. Flávio jaz na cama de casal. Ele não quer que eu trabalhe de jeans e camiseta; deu-me dinheiro para comprar roupas que me tornem mais feminina. Fui na terça até a União Esotérica e encontrei uma Liz mais forte. Estou pintando...gosto de pintar obdicodiformes vermelhos. Não sei se tudo que se inverte é do mal. Mas eu mesma me acho do mal, não do bem. Estou cheia de mim mesma. Mas feliz. E por causa do dinheiro. Flávio deve ser um anjo, pois pra me aturar! Ele tem outras mulheres, porém não ligo. Ele vai me levar para a Europa. Ah como estou repetitiva. Será que chegarei da Europa e ficarei melindrosa? Sim, será que ficarei melindrosa por ser mais uma a ir para a Europa? Não sei, acho que Flávio me engana. Na verdade, acho que ele pensa que vou aprontar com os leitentos. Disse-lhe então que era melhor irmos até o Kenya. Vou lhe passar uma receita de bombom de feijão que adorei. Por favor, faça-a para K. Vai uma xícara de chá de feijão preto, uma xícara de chá de água, uma xícara de chá de açúcar e quinhentos gramas de chocolate meio amargo. Você cozinha o feijão primeiramente; depois bate ele no liquidificador acrecestando água aos poucos até formar uma pasta decente. Então, basta levar a pasta ao fogo com o açúcar por uns vinte minutos e deixar esfriar. Faça bolinhas com a pasta e banhe-as no chocolate derretido em banho maria. Fica uma delícia. Não fiz a receita ainda, experimentei-a em uma festa.

- Oi, querido. Vim pra sessão pensando em como lhe dizer a respeito da Europa.

- Não quer ir mais?

- Não, não quero. É muito para mim. Hoje tive um surto, acho que para chamar a atenção. Mas vou ser punida, tenho certeza. É a lei da causa e efeito, o qual pareço não ter consciência. Acho que sou muito masculinizada. Me têm como bandida, louca, um lixo.

- Fale-me do surto.

- Não, não vou lhe falar nada porque você também vai achar que sou culpada. Estou apanhando e o populacho desconhecido acha que preciso de um corretivo. Eu...acho que vão me pôr na cadeia. Isso tudo é falta do que fazer; pequenas coisas, fúteis, me irritam. Mas como você vê não sou nenhuma Joana D`arc. Não dei sorte. Tudo se baseia em sorte. E se a polícia aparecer por aqui, não será para perguntar se estou bem, mas para me incriminar, incriminar a lésbica.

- Você mexe com as pessoas. Acha-se mais sensível do que elas? Precisa realmente de um tratamento, ser internada. Bem, não creio também que elas sejam atingíveis como a senhora quer. Todos têm problemas. Quer resolver questões, queixa-se, está confusa, sem amigos. Só tem a mim e esse tal de Ian e também seu filho. Mas onde eles estão?

- Eu nunca lhe disse...

- Eu sei tudo sobre sua vida. Andei pesquisando.

- Não, não sabe tudo.

- Talvez você precise ser operada.

- De quê?

- O que a nicotina faz, santo Deus!

- Obrigada por estar falando comigo quando poucos me dão atenção.Claro, também por que dariam se sou uma fútil, um sapatão, como dizem? O fato é que ando mexendo com coisas sagradas, e estou merecendo mesmo punição. O que faria na Europa? Teria de ser tratada lá também. Você não entende. Pra certos casos não sou sadia, como pra esse, o de sair daqui. Para outros, para receber auxílio doença, essas coisas, sou, e como sou sadia. O fato é que são inatingíveis às minhas palavras. A verbalização não atinge quem quero, mas quem não quero. Sou uma tola. O bumerangue vai e volta com força total contra mim. Que estupidez. Não sei como você me aguenta, mas sei também que você é volúvel como todos são pela redondeza. Por que se interessou por mim? Eu deveria era estar em um albergue ou no máximo em um quartinho. Patrícia era interessante, apesar de também volúvel. Todo mundo tem duas caras, menos eu. Ou será que tenho duas ou três e desconheço? Dizem que destrato as pessoas e então as ofensas são necessárias, nada puníveis quando partem deles. A razão se perdeu por causa da droga, talvez, eu não sei direito. Esse droga, esse ansiolítico, faz você perder a razão, com certeza. Mas estou passada, enojada de mim mesma. Dou nojo. Por que não vou para a Europa? Não sei. Por que não ir para uma outra cidade. Aqui não dei certo, simplesmente não dei certo e é só isso. Antes tivesse ficado com K. onde estava. Mas fui criança querendo retornar a São Paulo. Surtar traz consequências, fumar traz consequências; ah, a consequência...

- Tenho muito o que fazer, Bernadete. Pegue suas coisas e saia do apartamento, sim. Não vou lhe dar um centavo mais do que já lhe dei. Também não a quero como secretária; já arrumei outra. Enfim, dê o fora, e logo.

- Eu sabia que isso iria acontecer. Sou uma monstra. Não tenho direito algum neste país, pois perdi a razão. Se ao menos parasse de fumar...

- Você não é nenhuma santa. Volte para seu emprego de garçonete.

- Estou com preguiça.

- Sei. E os empregadores sempre arrumam um jeito de discriminá-la. Isso é bem comum. Os empregadores, se se for ver bem, discriminam todos os seus funcionários. Na verdade, ninguém discrimina ninguém. Há leis neste mundo e se não se cumprir ordens...

- Tenho um qi baixo para atingir quem quer que seja. Não sou daquele tipo que não se importa com o que os outros dizem, que não toma conhecimento. Sou do outro tipo; do tipo malvada e estranha, inacabada.

- Você não tem dinheiro, é isso. Se tivesse estaria bem. Mas meu horário com você já acabou; os honorários praticamente ultrapassaram seu salário e, enfim, você não vai me tirar mais um centavo. Vá arrumar emprego em outra parte. Olhe que me é difícil estar lhe dizendo essas coisas, talvez porque eu seja criança também. Imagine, dar atenção a um esquizofrênica lésbica. É o fim. Mas tudo bem. É que você hoje está até que bonita. Se pelo menos você soubesse resolver seus problemas, e com elegância! Mas surta, sai por aí surtando feito uma louca, gritando...tenha santa paciência! Se não fosse ignorante, talvez não fizesse nada disso. Agora está ferrada, minha cara. As pessoas desconhecidas, o povo, que tem dinheiro ou que não tem, enfim, é mais inteligente do que você.

Bernadete saiu da sala achando-se sem razão para nada, uma vagabunda. Na verdade não sabia o que iria ser sua vida dali para frente. Era uma porca, não estava mais tomando banho como antes. Precisava ter mais humildade. Bem mais, ou mais um pouco, ou talvez mais ainda. E se estava naquela situação era porque merecia, haja vista que a intuição dos que deram certo não falhava. Fez sua mala e foi até uma estação. Não tinha nem dinheiro para um hotel. Desistiu da estação e foi procurar Patrícia. Teria de voltar para o quartinho.

- Patrícia, voltei.

- Sim, mas aqui o pagamento é adiantado.

- Mas você pode me emprestar? É que o Flávio me botou no olho da rua sem um centavo. Eu andei surtando, fazendo umas bobagens.

- Tudo bem. Fique aqui este mês, mas preciso de uma nota fiscal, alguma coisa assim, comprovando que você realmente irá me pagar. Você não me parece caloteira, mas nunca se sabe. É uma estranha para todo mundo. Por que você não se mata?

- Por que você me diz isso? O valor da vida...

- Não tenho tempo pra dar valor a sua vida, minha cara. Ninguém tem tempo. Aqui se faz, aqui se paga. Você passou dos quarenta, agora tem um corpo em processo de envelhecimento. Não é como antes, eu mesma não tendo quarenta sei. É que aqui as pessoas se preparam; elas se preparam para feriados, preparam-se para a velhice. Sim, pessoas inteligentes são exatamente assim. Um regiminho ia bem no seu caso. Sabe, ninguém vai dar a mínima pra senhora.

- Você tem razão no que diz. E eu perdi a minha. Fumo. A droga faz a gente perder a razão; foi o que disse um filósofo espanhol, Mariá.

- E pra ter um corpinho agora com idade não vai ser fácil. Academia, minha cara. Olha, não vão te querer mais no restaurante. Parece que você andou surtando lá também. Mas que coisa, viu! Pare com isso! Essa porcaria tá te matando. E vocês põem sempre a culpa no governo, o que é burrice. Eu quero um papel lavrado em cartório dizendo que você irá me pagar a quantia do mês. Não sei, fala com seu protetor, o Ian.

- Você leu minhas cartas?

- Li, e pelo que percebi você é completamente louca. Tem um filho ou então uma filha. Qual o nome dele ou dela?

- Estou precisando das pessoas no momento e elas se afastam de mim. Mas tudo bem. É assim.

- A senhora tem um passado aqui. Por que não procura os amigos
que perdeu?

- Tem Hector, mas Hector talvez tenha se mudado, eu não sei. Não o vejo mais nas festas.

- Festas?

- Sim, vou muito a festas. Sou uma penetrante.

- O que é isso, penetrante?

- É o nome que se dá a quem chega sem ser convidado.

- Isso não leva a nada. Ah, então tá. Você conheceu o Flávio em um desses eventos. Ponha-se no seu lugar, mulher. Essa é boa. Fica lá dando uma de gostosa, e não é nada. Que absurdo! Se bem que a senhora, não sendo flor que se cheire, não tem muita alternativa na vida. Vai lá, se embebeda...Mas venha cá, agora me interessei. Ui. Essas festas são legais?

- Muito, mas nem sempre. Você deveria vir comigo um dia.

- Eu, me tornar uma penetrante?

- Sim.

- Sou honesta, minha cara. Acordo seis e meia, caramba. Não tenho a mínima vocação para boemia. Gente fina é outra coisa, todavia.

- Amanhã haverá umas festas. Eu posso te levar.

- Vou pensar no seu caso.

- Você vai adorar. Vai conhecer gente nova, é extrovertida. Eu já não presto, não presto para ir a esses lugares. Vou mais para beber e comer. Tem vezes que tem até caviar. Mas no momento, quero ir mais a festas porque preciso encontrar Hector. Ele frequentava muito. Preciso saber de algum penetrante o que aconteceu com ele.

A conversa entre Bernadete e Patrícia rendeu frutos, se bem que não muito bons. No outro dia, de noite, elas foram juntas a uma festa, o que provocou curiosidade dos penetrantes mais tradicionais. Bernadete procurou Hector mas não o encontrou. Perguntou a Samira, uma senhora penetrante de bastante prestígio, pois entrava em qualquer festa com uma facilidade incrível, por onde andava Hector.

Talvez ele tenha ido a Paris. Não, não sei.

- Olá Samira. Desculpe o incomodo, mas eu gostaria de saber se você sabe algo a respeito do Hector.

- Hector está em Lisboa.

- Eu não posso acreditar. E com que dinheiro ele foi para Lisboa?

- Não sei, é um mistério. Dizem que ele volta na semana que vem. Foi conhecer a Europa. Vai voltar melindroso mais do que já é. Agora me dá licença? Ah, e aquela sua amiga, quem é? É muita responsabilidade iniciar alguém nesta área, minha cara. E pelo que sei uma esquizofrênica não é lá muito responsável.

- Patrícia é minha amiga de quarto. Eu a trouxe pra ver se ela gosta de festas. Quem sabe não entra para a gang.

- O círculo é fechadíssimo. Ainda mais com a nova crise, não convém iniciar pessoas. Todavia, ela é bastante bonita.

- Samira, você é uma das poucas pessoas que me acham esquizofrênica. A maioria me acha sadia, não crê que eu surte. É que talvez eu mostre um lado mais pacífico a elas. Também nem sei por que comento qualquer coisa sobre mim porque sempre vou entrar em conflito, e não há pessoas salvadoras; se há, não têm tempo. Os meus surtos podem ser sonhos?

- Sim, seus surtos podem ser alucinações, já que ninguém fala nada nem lhe acode. Ou então, você tem cara de bandida e as pessoas têm receio de se aproximarem para oferecer algum tipo de ajuda.

- Patrícia, pelo visto, está gostando da festa. Ela é bem mais bonita do que eu, e não fuma, não corre risco de pegar câncer.

- Não me diga que você está com câncer.

- Não, ainda não. Mas do jeito que fumo escondido! Você não se importa de eu ficar trazendo Patrícia para os eventos, se importa?

- Não é da minha conta. Hector volta na semana que vem da Europa. Quando eu soube que ele fora para lá, tomei um susto. Na certa você deve pensar que as pessoas não te compreendem. Na certa você está sem dinheiro, eu sei de tudo, sou meio vidente.

- Obrigado, Samira. Ah, faz tanto calor, e estou sentindo um certo torpor que não passa. Estou cansada e com sono. Por mais que ache que não, sou sedentária. Patrícia ainda é jovem. Ela achou-me completamente louca depois que leu as correspondências que ainda não pus no correio. Mas não há ninguém que queira me tratar. Mesmo Ian, um psiquiatra, não quis saber de me tratar. Ele está com meu...bom, deixa pra lá. DEIXA PARA LÁ. Até.

Ian, querido, você ainda não me ligou, e estou ligando para seu celular e só cai na caixa postal. Trocou de celular? Os números todos agora são inexistentes. Onde está meu filho? Que tipo de preconceito ele pode sofrer sendo chumbo? Não, nem por carta deveria citar isso. Estou tendo um torpor que não cessa; é um sono advindo da falta de dinheiro. Que vergonha! Patrícia, a companheira de quarto é mui jovem. Mesmo assim, estou levando-a aos eventos. Ela não sabe ainda se quer ser penetrante. Não sou uma penetrante, nem sequer sabem que existo. Quando existirei? Surtei e foi apenas um sonho, uma alucinação. Na verdade, não surto, penso que surto. Ninguém ouve meus berros; se eles existem são realmente irrelevantes. Vou acender outro cigarro. Maldito cigarro, maldita Bernadete! A vida é realmente dura para quem é mole. Anotei hoje do que me chamaram na rua, quando saí:

Sapatão: homossexual que dá pra sentir pela roupa, pela aparência ou pelo jeito de andar que gosta de mulheres.

Feia: não sou bonita. Sou feia e desinteressante. Estou ferrada por causa do cigarro. Desculpe, mas fodida é a palavra, e não só por causa dele.

Sapa inferior: as que me chamam disso são evoluídas, bonitas e têm uma verbalização e um emprego excelentes. Nada lhes falta.

Tenho me aberto com Maura, que tem aparecido como Joana D`arc. Maura me acha sadia, creio eu. Maura me disse que se ouvisse isso das pessoas desconhecidas nas ruas, não sairia mais de casa. Mas que casa? Não tenho mais casa. E a casa em que eu estava com K., você a vendeu? Nem sei mais se você existe, Ian, nem sei mais se existo. K. realmente existe? Minha vida por vezes parece uma ilusão, uma horrível ilusão. Mas não posso pensar assim, pois na cadeia haveria outra ilusão mais triste, e doente uma outra mais triste ainda. E na cadeia e doente, então! Maura não aparece mais como aquela linda mulher da praia. Mas Joana D`arc é lindíssima. Agora acabo de ler em um jornal que um escritor americano disse que quem dá certo pode não ser autossuficiente, mas dá certo por causa de conjunções incontroláveis. Estou com o estômago embrulhado, pois tenho comido uma coisa só. Preciso de dinheiro. Maura me disse que não gosta de São Paulo. Eu jamais gostei. E por quê? Não sei, vivi minha vida toda por estas ruas, achando que poderia dar certo. Ainda penso que no Kenya eu daria certo. Eu surtei feito louca, e dizem que as pessoas surtam mais na madrugada, quando estão sozinhas e o nível de depressão aumenta. Isso parece ser verdade. Mas o meu surto foi apenas uma alucinação. De qualquer forma, o bar onde surtei hoje está fechado. Esse torpor! Patrícia quer que eu leve uma amiga dela para os eventos, e estou pensando nisso. O círculo não está tão fechado. O problema é que poucas pessoas são penetrantes hoje em dia. Acho os penetrantes buracos negros, estrelas de pouca dimensões que talvez não brilhem muito. Me escreva, por favor, me mande dinheiro. Me escreva para eu me sentir viva, me ligue. Abraços.

Bernadete conheceu, em uma certa noite de quinta-feira, a repugnante amiga de Patrícia. E antes de irem a uma festa, ficou conversando com ela, que se chamava Abigail. Esta, trabalhava como vendedora de loja, e parecia muito extrovertida. Abigail lia muito, tinha cara de intelectual: usava óculos, e dizia sempre o nome de um autor só conhecido no meio literário.

- Você quer ser penetrante como eu?

- Sim, mas que termo estranho. Só quero ir a festas, só isso.

- Veja bem. No início, eu achava que sendo uma penetrante seria importante porque conheceria gente importante, mas não era nada disso. Fiquei mais frustrada ainda. Eu surto, por vezes, e são surtos horríveis. Tem lugares que só posso voltar a entrar após uns dois meses ou nunca mais.

- Eu não acredito que você surte. Você me parece tão...tão equilibrada. Acha que alguém liga para os seus surtos, que alguém correrá atrás de você um dia para lhe dizer que você surtou, para lhe perguntar se está bem? Não acredito nesses surtos.

- Não entendo por que você não aceita meus surtos. Eles são reais. Você não está sendo intolerante? Abigail, você é jovem como Patrícia. Vamos, querida, vamos para a festa.

Caro Ian, a vida sem dinheiro está um inferno. De qualquer forma, estou trabalhando em um restaurante japonês.. Conheci Abigail, a amiga de Patrícia, e ela me pareceu intolerante. Ela não me aceita como uma pessoa não-sadia. Isso é bom, não é mesmo? Abigail gostou da festa em que fomos, as três. Era um evento em que no final foi sorteada uma viagem para Angra dos Reis. Mas não ganhei e nenhuma delas ganhou. Quem ganhou foi Samira, e Samira tem muita sorte. Uma penetrante tem que provar, talvez, que não é penetrante, mas trabalha com alguma coisa ligada à festa ou é de alguma mídia. Não vou sair esta noite. Patrícia é prostituta. Eu nunca lhe disse, mas ela faz programas e ganha muito bem. Mas como pode uma prostituta ter tempo para ir a festas? Não sei. Basta o celular dela tocar que ela já está saindo quase que com o champanhe. Acho que ela quis se tornar penetrante para comer coisas boas; e nem sempre comida boa é o sonho de consumo das pessoas. Mas o de Patrícia parece ser. O caviar negro, que tem um nome o qual não me recordo, deixa Patrícia extasiada. Abigail, a amiga dela, é vendedora de loja. Vende muito bem, pelo menos assim o diz. Ela vende roupas em uma boutique. Descobri nesta tarde que te amo loucamente, e por isso pensei em suicídio como forma de apagar esse sentimento. Não sei se quero mais saber da sua existência, da existência de K. Abigail não crê que eu pense em suicídio. Ela acha que eu jamais me apaixonei. Mentira. Pessoas se apaixonaram por mim, mas quando descobriram estarem apaixonadas se afastaram. Prefiro pensar assim a pensar que se decepcionaram. Abigail me emprestou vinte reais. Já paguei o que estava devendo a Patrícia. Faltei ao trabalho para pensar em K. Ele deve estar lindo. Se quiser, mande-me uma foto dele, senhor ausente. Encontrei finalmente Hector. Ele está mui antipático; cumprimentou-me de longe. Ufa, ainda bem que me cumprimentou. Sou deveras imatura, pois penso isso de Abigail. K. foi apenas um evento paranormal em minha vida. Mas minha realidade é outra, não é de fenômenos paranormais, pois sou sem-vergonha. Minha realidade é a da miséria, do povo sofrido e desconhecido me perseguindo, da doença mental.

Maura apareceu a Bernadete no cemitério. O cemitério tornara-se um lugar comum. Maura estava vestida de preto, era uma perfeita viúva.

Se eu pegar o purgatório, acho que me arrependerei de muitas coisas. De não querer olhar para a cara dessa populaça desconhecida que parece me ver como uma extraterrestre doente, por exemplo.

Maura pôs a mão no ombro de Bernadete, que estava sempre de costas para o espírito. As unhas, pintadas de verde, pareciam azeitonas coladas, repugnantes de podres.

- Tenho dívidas, estou ferrada. Tenho pensado em que tipo de morte terei.

- Sem dúvida ela estará associada ao cigarro.

- Ou então a essa demência. Tenho vontade de rever Liz. Mas Liz, ah Liz, nunca me perdoou por eu tê-la de certa forma explorado.

- Liz deu certo em São Paulo.

- Sim, e segundo a mesma, foi com muito suor. O que fazem pessoas nesta cidade como eu?

- Pensam vagamente em suicídio.

- Seriamente. Vagamente penso eu. A minha vida parece não ter valor nenhum. Estou cheia de ser a insana. Abigail e a puta estão se indidualizando, indo a festas sozinhas.

- Isso é individualizar-se?

- De certa forma sim, pois não dependem mais de mim. O empregador me vê como doente. É japonês. Fui obrigada, o-bri-ga-da, a apresentar um laudo médico para receber o salário sem descontos. Estando ligada ao governo, não posso dizer que trabalho. Terei que voltar, provavelmente, ao outro subemprego.

- E você fazia o quê antes do auxílio?

- Eu era tecladora, nada sub-reptício.

- Pois então volte. Pelo menos em vez de um, ganhará dois salários mínimos.

- Não sei. Não sei se existe mais essa função na empresa. A última vez em que estive lá, os que trabalhavam na mesma função agora trabalham no RH. Abigail, se soubesse da minha real situação, se mataria. Pobreza.

- Procure um advogado.

- Os advogados do governo não têm paciência, e além do mais as pessoas que trabalham nesses lugares me discriminam, ou seja, me punem da forma delas. Eu falei para Abigail que a punição para psicóticos que mais dá certo é deixá-los na miséria.

- E ela?

- Não acreditou, mas é assim que ela talvez pense. Cansei de me achar vagabunda e invejosa, achar que querem me levar ao suicídio.

- Tem de haver uma solução. Vamos orar.

Pai que está no Céu, livrai-nos das pessoas falsas, das que não querem nosso bem. Livrai-nos do mal. Mostrai-nos a luz no fim do túnel, mostrai-nos que não somos pessoas más nem vagabundas. Deus da vingança, nos mostre o caminho a seguir para que possamos aniquilar o inimigo e sermos felizes nesta cidade. Que sejamos compreensivas assim como queremos que nos compreendam. Que tomemos o desprezo e a perseguição como dívida a ser paga, e não como punição ou discriminação. Que sejamos solares ou mais solares, pessoas expressivas e perfeitas e ricas em saúde. Amém.

Maura se afastou de Bernadete após a oração, deslizando pelos corredores do cemitério, lentamente.

A minha vida devassa me torna herética sem saber?

Bernadete não queria mais ver Abigail, simplesmente não queria mais vê-la nem falar com ela. As mulheres sempre se afastavam dela, com exeção de Maura, e Bernadete não sabia por que Abigail estava lhe incomodando tanto. Foi em uma terça vermelha que Hector ligou. Era manhã, e a cidade estava vazia por causa do carnaval. Nem tão vazia, nem tão vazia quanto Bernadete queria que estivesse. Bernadete teve um dó de Hector porque ele tinha planos para o futuro, e nesses planos incluia ela. De qualquer forma ela tentou digerir o otimismo dele. A cumplicidade existente entre as pessoas do populacho desconhecido adulto ela também digeria. Era punição. Estava condenada à forca. Hector pelo menos tinha bens, mas como penetrante as coisas não pareciam fluir. Havia inimigos, gente que dera certo.

Por que, meu Deus, fui trilhar por esses caminhos? A droga, a insanidade, as dívidas, as pessoas olhando, e olhando para perceber imperfeições, aniquilar-me. Na certa essas pessoas que desconheço choram e oram. Mas são mais bem quistas por Deus, com certeza. O fato é que sou vagabunda. Preciso de dinheiro para ontem, e não sei se terei forças para procurar advogados que me tirarão a razão. Foi sempre assim. Hector queria que ela fosse procurar psicólogos. Estava claro que a consideravam uma lésbica. Enfim, havia um mistério só seria minimizado quando alguém sadio a aceitasse e começasse a passar-lhe lições de vida. Devo ser uma invejosa. Esses contratempos são merecimento. Causa e efeito. Não seriam causa. Todos são mais inteligentes do que eu. Hector a convidou para sair: vernissage. Têm nojo de mim, e nas vernissages os seguranças ficam me seguindo. Talvez pensem que eu estrague os quadros com as unhas, com tinta. É o trabalho deles e eles podem dizer que trabalham. Mas me seguem nas vernissages. Será que pensam que vou furtar um quadro? Furto as cores dos quadros, os tons, tudo em pensamento. Talvez um dia eu possa pintar, mas vagabunda desse jeito. Não há perdão. Não me perdoo. Hector mesmo dizia que a crise não afetaria os mais pobres. Hector nem me perguntou onde estive, mas eu acho que tem certeza de que eu tive um caso com Jandira.

Hector estava de preto, como sempre, de noite, e Bernadete se olhara umas quinhentas vezes no espelho para ver se não estava tão masculinizada antes de sair. Ela estava com raiva do empregador, do dono do restaurante, um japonês que vivia lhe fazendo perguntas. Sem dinheiro, sem-vergonha, estava claro que o populacho desconhecido preparava represálias por causa de seus surtos. Antes de chegar aos eventos, Bernadete ficava eufórica.

A falta de dinheiro diz-me que sou errada. Apanhe, apanhe!

Ao chegarem, Hector foi logo pedindo uma taça de champanhe.

Por misericórdia talvez eu seja velada na Dr. Arnaldo, 666.

Bernadete hesitou em pegar uma taça para si mas depois de alguns segundos, permitiu-se ingerir álcool. Alguns penetrantes jamais a cumprimentavam. Educação, certamente. Os colégios de São Paulo eram bons, e segundo ela soubera, esse penetrantes que jamais a cumprimentavam haviam estudado em São Paulo, nos Jardins.

Estudei pouco na vida, e de que adiantou? Mas poderia ser pior se não estudasse. Na certa, se eu tivesse tido algum vislumbre do futuro procurava um emprego. Mas sempre fui burra. Estudei em colégio de moças, havia poucos rapazes.

Bernadete não se sentia mais bela, e todo o encanto da noite resvalara para as terras além das dos disponíveis. Se sentia uma velha, uma velha que iria atrapalhar, um dia, mais e mais a vida alheia. O governo parecia-lhe correto, mesmo quando indeferia o auxílio. E no momento o auxílio estava indeferido, a empresa não a pagava, mas também não a demitira por causa dos laudos de Ian. Depois da gravidez, Bernadete recebera o auxílio-maternidade. Na festa, Hector conversava com todo mundo. E quando os penetrantes o deixaram, ele foi até Bernadete e resolveu fazer-lhe perguntas sobre K.

- E seu filho hermafrodita?

- Tive-o de cócoras.

- Eu duvido. Não acredito nessa história. O fato é que você não está postura adequada nesta festa. Você não tem postura adequada.

- É? Tive K. de cócoras, mas ninguém quis saber de me ajudar, a não ser Maura, minha melhor amiga.

- Onde está K.?

- Ele está com o psiquiatra, não sei exatamente onde.

- Mas o psiquiatra não está te sustentando?

Não, ele desapareceu por uns tempos.

- Que história esquisita. Você deveria falar isso ao governo. Quem sabe te aposentam.

- Mas foi tudo abafado. Eu não sei onde está K., no momento. A cidade do interior no qual eu vivia com a criança era bonita. Mas não me lembro do nome dela. Ian não me liga, não me escreve. Se a mídia descobrir que K. existe...

- Calma, nesses casos a mídia é omissa, tenho certeza.

- Se eu me tornasse mídia, fizesse um blog, por exemplo, falando sobre K.?

- Esquece K. Bernadete, você é fraquinha. E sem dinheiro ainda, muito mais. Tente ler algo sobre como se reeducar.

A festa terminou por volta das duas da manhã. Bernadete e Hector estavam bêbados. Tomaram um táxi por dez reais. Claro que os taxistas adoravam Hector, mas em se tratando de Bernadete, quando esta resolvia pegar um táxi sozinha, eles a faziam de boba. No táxi também estava um casal que deu setenta anos a Bernadete. Não de vida, mas de idade. Claro que Bernadete tinha bem menos.

Acham-me velhinha. Enfim, não sou aquele tipo de pessoa que não aparenta idade. Estou ounvindo vozes dizendo que sou vulgar. As mulheres acham que sou vulgar. Vulgaridade! Sim, devo ser bem vulgar. Mas tem gente mais vulgar do que eu? Não sei, tudo é um mistério. Sou um nojo e queria ser diferente. Hector desconfia que a K...não, não posso aceitar...meu bebê! Vou ligar para Ian. Como ele pode ter me esquecido? Tenho fotos de K. Mas prometi a mim mesma que jamais a mostraria a quem quer que fosse, nem mesmo para Hector.

Bernadete deixou o táxi, e Hector seguiu com o taxista. A Paulista estava deserta. Bernadete entrou no vão do Masp e sentou-se um pouco nos bancos de concreto.

Ah, como queria que alguém se interessasse por mim! Uma mulher, uma mulher gostosa. Mas elas se afastam. Sou vagabunda. A cadela importante mora ali, trabalha demais.

Ficou um tempo lá, satisfeita, feliz; fumou um cigarro. Sentia-se como nos velhos tempos. O glamour do início ainda poderia existir, ela estava certa; era só fingir que ele existia.

A cadela importante, Mary, hoje me chamaria de senhora, tenho certeza. A intuição alheia para comigo não é nunca boa. Naquela noite, com a cadela importante, achei que seria feliz para sempre, que a cadela me ajudaria financeiramente. Não, nunca pensei nisso de fato, ou melhor, com lucidez. Foi Hector, Hector que achou que fui com muita sede ao pote, que eu queria era ter uma vida boa. Talvez no domingo eu vá à missa. Como estará Liz? Liz e Abigail, duas que me acham sadia, que fizeram aborto espontâneo. Não fiz aborto.

Caro Ian. Obrigado por ter me ligado. Achei que estava louca. Mas K. é realidade, ele realmente saiu de mim. Deve ser duro para uma mãe ter um filho assim, mas não para mim. Eu sou assim, o assim mais comum para muitos e muitas. Mas K. é diferente, ele não é assim como eu sou assim. Agora sei que K. está bem, vivendo entre o povo venezuelano. Mas queria saber mais. Você pode me mandar uma carta neste endereço? Melhor um e-mail. Bernadete2232@mirasol.com.br. Ele está falando castelhano ou inglês? Estou radiante! Agora sei que as cartas que lhe enviei demoraram meses para chegar em suas mãos. Você vai pouco à sua casinha no interior, não é? De qualquer forma, ainda estou enviando as cartas para esse endereço. Uma hora você as pega e as lê. Sua voz está esquisita! Será que lhe passei o número da conta certo? Aqui o empregador do restaurante não me paga. Está me enrolando, dizendo que pisei na bola com ele e que sou vagabunda. Estou devendo muito para Patrícia e para Abigail. Agora trabalho como operadora de telemarketing. E receptiva, veja bem. Re-cep-ti-va! Espero esse dinheiro chegar. Tenho pavor do empregador. Vai me enrolar até o fim, mas é assim mesmo que as coisas funcionam; as pessoas estão sendo honestas e a culpa toda é da crise ou minha. Cai amanhã na conta? Que lindo! Patrícia é muito trabalhadeira. Faz três programas por noite. Pego-me fazendo as coisas que o populacho desconhecido faz. Outro dia, eu estava comendo açai, um desrespeito! Aí, olhei para o lado, e vi mais duas pessoas comendo açai. Fiquei tímida, me achando medíocre. Sou mediana. Olham-me como se eu fosse uma briga de cachorros. Se Liz e Abigail me acham sadia, por que vou me preocupar com minha esquizofrenia? Marquei uma nova perícia com o governo e estou apavorada. Vou levar aquele laudo antigo, não sei se vão aceitar. Mas fazer o quê, você não me envia novos laudos! Por favor, envie um novo laudo. A nação está muito falante, mas não comigo. Apenas me observam, mantêm distância para não se contaminarem. Sou uma porca; entro nesses banheiros cheios de bactérias. Mas também tenho pouca higiene. Não sei, provavelmente tenho.

Abigail entrou certa manhã na pensão para falar com Bernadete. Ela queria ajudá-la, saber mais sobre a vida dela. Entrou no quarto e viu uma Bernadete envelhecida, deitada na cama e coberta com lençois brancos, cheios de renda.

O que Abigail veio fazer aqui?

Abigail sentou-se na única poltrona existente no quarto, de couro vermelho, e disse a Bernadete que lhe contasse sua vida desde o começo. A mãe do filho hermafrodita hesitou um pouco, mas depois decidiu contar toda sua vida, ou quase toda.

- Pelo que sei nasci de parto normal com três quilos e duzentas, pelas mãos de uma parteira peruana em São Caetano do Sul. Fui um bebê lindo, dizem que todo mundo gostava. Engordei muito no primeiro ano de vida, e com uns dois anos já era considerada obesa. Bom, na minha infância vou ser rápida. Vou ser rápida em todas as fase, aliás. Comecei a trabalhar muito cedo, mas não por necessidade. Mamãe era cantora de rádio, e ganhava muito bem. Papai, pelo que me lembro, não trabalhava, e fumava charuto. Lembro-me que sempre que ligava o rádio e quando a ouvia, ficava emocionada. Aos quatro anos fui violentada por meu tio. Bom, é só isso da infância. Claro que os detalhes eu não vou lhe contar. Passando para a adolescência, fugi de casa aos quatorze: fui morar com minha avó. Não foi bem uma fuga, foi uma decisão, e meus pais não ficaram muito bravos. Vovó, que também se chamava Patrícia, era italiana. Ela era uma alcoólatra; bebia duas garrafas de vinho tinto por dia. Eu tinha um quarto só meu, no porão. Eu enchi uma parede de fuxicos de tecidos estampados. A janela, ficava atrás da cama. Tínhamos tv na sala, eu adorava assistir à entrega do Oscar e também ao Miss Universo. Vovó me mimava demais: os bolinhos de chuva nas noites de inverno, o sphaguetti com molho ao sugo, inumeráveis doces.

Estou ficando gorda só de imaginar.

- Eu invejava as atrizes americanas, e os atores também. Claro, eu já estava ligada ao glamour. Eu queria ser artista, mas vovó sempre me dizia que esse mundo de glória poderia ser uma farsa, e que eu não tinha talento pra nada. De qualquer forma, eu nunca tive estrutura para ser famosa, artista, nem tenho estrutura para ser a penetrante. Não tive namorados na adolescência, mas uma ou duas amigas, o que não é mesma coisa. A primeira vez que beijei uma mulher na boca, e tive sorte, foi aos quinze anos. Eu era repugnante e doente, mas nem sempre. A mulher, madura, de uns trinta anos, era cliente de vovó, que vendia bijouterias. Ela gostou de mim; entrou no quarto e me agarrou. E eu gostei dela. Enfim, a adolescência não foi bem vivida; eu era preguiçosa e fazia o segundo grau. Não tinha quase nenhuma amiga, a não ser Margaret e Suzi, o que já estava bom. Eu era uma estranha na classe. Não tomava banho. Não vou mais lhe falar nada, Abigail. Você não sabe, mas a cada dia surge um novo problema. Sim, eu sei, todas nós temos problemas.

- Vai ver é por causa do cigarro.

- Talvez. Estou com problemas de autoestima. De uma hora para outra os dentes amarelaram. Nunca foi assim. E no momento, de um ano para cá, me sinto velha, mormente porque me chamam de senhora. A cada dia um novo problema. Preconceito? Não sei. Acho que não gostam de mim. Você era uma das últimas pessoas que eu queria ter como amiga, desculpe ser sincera. Não vou falar de meus pais, mas sei que você mora com os seus, que tem problemas...

- Sim, todas nós, como você mesma disse, temos problemas. Mas eu queria ajudá-la - disse, desnorteada.

- Não, não queria não. Você me parece uma pessoa abalada, revoltada.Quer que eu resolva os seus problemas, não quer me ajudar. É falsa. Não sei dizer não. Estou cheia. O dinheiro que disseram que me enviariam não caiu na conta bancária; muito pelo contrário, clonaram o cartão e estou mais pobre, comendo de novo doces e mais doces.

- Não existe mais isso de clonagem de cartão. Você deve aprender a não pensar coisas ruins. É tudo engano seu, erro. Você vai ver.

- Estou enjoada, enojada. Se eu me envolver com você, eu sei que seus pais me destratarão. Não quero mais isso. Você é muito jovem. Afinal, o que quer? Sou tímida, não vê? Estou perdendo gradativamente a saúde, e talvez tenha de ir para um albergue ou um asilo. Já entrei em situação semelhante quando um casal me escolheu...não fui forte para dizer não; acabei tendo um filho.

Abigail foi embora, com a sua cara de compreensão de sempre.

Não, não quero mais vê-la. Ela vem até o quarto para tirar coisas da minha vida. O que ela pretende exatamente, eu não sei, não tenho qi para saber, nem ao menos intuição. Menti o tempo todo. Jamais vivi com uma avó. Penso no que vai surgir amanhã de problemas. Temo ir a médicos nesta idade, mas ela avança, é necessário. Vou marcar uma nova perícia. Mas será que posso marcar uma nova perícia se já dei entrada...? A cada dia uma nova e lamentável surpresa. Está assim. Vou mendicar pelas ruas. Penso em suicídio, isso é ruim. Mas todos estão silenciosos, todos ficam me observando na rua, me olhando, me olhando. Mostro o dedo, mas de que adianta? Isso não ofende. Essas pessoas desconhecidas ficam olhando porque querem olhar, é um direito delas. Assim como é direito meu ficar olhando também. Erro o tempo todo. Quanto é um mais um? Isso eu não erro, são dois. Sim, há pessoas como eu, que não gostam de serem olhadas. O que está olhando? Estou acabada, é isso, estou acabada. É verdadeiramente risível ou então patético meu semblante, minha condição? Se mostro o dedo, apontam um defeito. Não, não têm defeito. E agora vou ter de enfrentar de novo o governo, deparar-me com minha própria ignorância. Essa nação quer que eu morra de fome. Já não chega o tabaco, que poderá ser a causa mortis! A saúde, a saúde é o que mais importa agora. Um câncer, um AVC, um câncer, um enfizema, alguma coisa assim, seria o fim, ou uma punição. Mas por que os homens me olham nas ruas, ficam me observando, por quê? Estou no Terceiro Mundo, Terceiro Mundo. Não tenho direito algum, direito algum. O povo desconhecido é tido como honesto, e me encurrala para que eu seja também honesta, ou então para que eu assalte um banco. Mas ficam todos de olho, ficam olhando. Eles têm razão e ponto final. E agora surge essa tal de Abigail que se parece com Jandira que se parece com Liz que se parece com Hector. Como me queixo! Sou uma penetrante espirituosa. Essa história de ser penetrante já me cansou, cansou o pouco que me resta de beleza. Tudo o que faço ou penso em fazer é semostração. Meus semelhantes são loucos. Não há outros semelhantes que não sejam loucos, que não venham sutilmente me infernizar, me julgar.

A noite estava fria, assim como Bernadete era uma fria para os outros, os outros desconhecidos. Mas como dizem, a voz do povo é a voz de Deus. Então ela era pecadora, errada, não sofria injustiças e cavava a própria cova com uma força invertida, do mal. Entraria na internet de novo. Estava cheia, não tinha dinheiro para ter internet, muito menos para ter um canto. Maura apareceu no cemitério de novo; Maura lhe dissera que da próxima vez em que aparecesse, seria um tigre. O tigre foi calmamente andando pela alameda principal até a lapela onde Bernadete estava sentada. Roçou a cabeça na coxa dela, e depois, apoiando-se também na coxa dela, ergueu-se e lambeu-lhe o rosto. Bernadete não ficou nem um pouco assustada. Os tigres queriam distância dos seres humanos, não queriam devorá-los. Bernadete não era um tigre, não, nunca seria. Nunca teria capacidade de devorar alguém, de acabar com alguém. A nação era mais forte do que ela.

- Maura, da próxima vez em que aparecer, venha como um animal semelhante. Não sei, talvez uma tartaruga.

O tigre não falou como nas fábulas. Tigres não falam, era óbvio. O tigre foi se afastando e de repente desmaterializou-se. Maura não vinha mais lhe dizer onde encontrar dinheiro. O jeito talvez fosse ir até a União Esotérica falar com Liz. Mas Liz, ordinária, não soltava um centavo sequer a não ser para seus amantes. Ela era uma mulher extremamente inteligente. Bernadete resolveu se matar. Sim, assim não prejudicaria ninguém; talvez trouxesse alguma tristeza, mas só. Voltou para a pensão e tomou uma garrafa de vinho. Depois, engoliu a seco oito comprimidos de clonazepam. Lembrou-se que ela e Hector haviam combinado de fazer isso na praia. Mas não havia praia. Era São Paulo, a São Paulo punidora. Após meia hora, Bernadete estava em coma. Patrícia a encontrou no quarto e lhe deu um chute na cabeça para ver se a acordava. Não acreditando que Bernadete não estivesse fingindo, gritou de raiva.

Eles me perseguem, eles, os outros, os desconhecidos, são a miséria.

O hospital a tratou como uma cachorra. Ela devia ser mesmo uma cachorra. Ela tinha que pagar porque fumava, porque não era santa. Jesus adivinhava o que pensava os corações dos homens.

Se ao menos eu tocasse na túnica Dele, mesmo sabendo que estaria comendo as migalhas...

Que ódio, que verme que era ela. A população desconhecida então devia se amar, mas achavam Bernadete estranha. Excluiram-na e iriam ficar excluindo-na para o resto da vida. Herética, pseudocatólica!

Vinte anos se passaram e Bernadete não morria. Um dia acordou. Acordou justamente no dia em que o hospital estava fechando as portas, no dia em que desligaram os aparelhos. Olhou em volta e não viu ninguém. Após dois dias acordada, conseguiu mexer as mãos e os pés. Engatinhava. Mas conseguiu andar, e disparou rumo a alguma saída. Estava magra demais. Pensou na nicotina. Estava magra demais, mas quase que totalmente desintoxicada da bebida e do cigarro. Olhou da janela e o mundo lá fora parecia o mesmo, a não ser pelos carros com designers diferentes, bonitos.

Preciso encontrar alguém, mas não conhecia quase ninguém. Não me lembro. Tinha uma tal de Maura, uma tal de Patrícia, um tal de Hector. Preciso de um telefone. Não, mas os números já são outros.

- Por favor, em que ano estamos?

- Em que ano estamos?

- Sim, em que ano. Eu preciso de ajuda. Preciso saber onde está meu filho. Ian? Ian, é você? O que está fazendo aqui?

- Não acredito que tenha acordado do coma. O deus dessa populaça desconhecida sempre foi mais forte do que o seu. O hospital está fechando e eu fui o responsável por desligar os aparelhos. Que sorte que me encontrou. Já estávamos fechando o recinto. O prédio será implodido em dois dias.

- Seria comigo dentro?

- Sim, a eutanásia era o mais correto no seu caso.

- E meu filho? E K.?

- Está na Venezuela. .

- Precisa me levar até ele.

- Não, não sei se merece.

- Como? Eu sou a mãe, você não entende?

- Parou de ouvir vozes?

- Não sei ainda. Mas eu sei que as ouvia. Elas falavam sobre meus defeitos.

- Bom, então vou lhe arrumar algumas roupas, e vou levá-la até a Venezuela. O populacho pensa que você está morta, aí fica mais fácil.

- Minhas chanches de redenção são sempre mínimas ou não as percebo corretamente.

Cararas! Não sei por que mais estou sem medinhos. K. vive em uma comunidade rural. Os presidentes da América do Sul agora são vitalícios. O cabelo cresceu muito, mas não posso me arriscar a cortá-lo. A comunidade me parece alternativa, dessas onde as pessoas comem tudo o que é orgânico, como na cidade do interior, mas há muitas diferenças entre as duas,é claro. Talvez aqui seja meu ponto final nesta vida.

Bernadete entra em uma pequena casa e avista uma cama. Há alguém deitado nela. Bernadete vai se aproximando devagar e avista K., imenso.

- Sou eu, a mamãe.

- Mamãe está morta. Era uma penetrante, dava vergonha.

- K.,sou eu mesma, acredite.

K. levantou-se. Media uns dois metros e meio de altura. Quando seu grande e único olho azul mirou Bernadete, uma pequena lágrima desceu pela pele plúmbea. Abraçaram-se. K. prometeu a Bernadete que jamais a desampararia.

Estou segura agora para viver o resto de meus dias aqui. Como foi minha vida? Não sei. Só sei que fui lenta como uma trtaruga, fui vagabunda. As pessoas parecem simpatizar comigo. Não me sinto mais estranha, mas parte desta comunidade. Não me sinto mais velha, aqui todos me tratam por você. E também não me sinto mais escrava de nada. Que alegria!
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