Tema 188 - ASSOMBRO
BIOGRAFIA
PASSAGEIRO
Ana Cristina Melo

Enquanto o carro avançava numa velocidade de metros por hora, a pista inversa corria fluida, levantando uma nuvem de fumaça preta. À sua frente, outras nuvens. O sol tentava vencer a parede cinza-chumbo. Um raio a cegou momentaneamente. Tateou a bolsa para encontrar os óculos escuros. Vinte metros depois, o vidro foi salpicado por grossos pingos de chuva, logo transformados em temporal. Poças rapidamente começaram a se formar. Até que ela viu caminhar, por entre os carros, uma verdadeira multidão de homens e mulheres de branco. Seu coração ao mesmo tempo em que não sentia medo, parecia diminuir de ritmo.

Eles cercaram seu veículo, enquanto ela mantinha o olhar à frente, ansiosa para que o trânsito fluísse. Travou as portas e evitou a visão periférica.

O tempo foi ficando cada vez mais fechado. Não arriscava confirmar, mas sabia que eles continuavam ali.

Quando sua mão chegava para destravar as portas, seu olhar esbarrou no painel. Viu a foto com as filhas e os netos. Sentiu falta do marido, que a deixara há dois anos, após um casamento de cinquenta e um. Mas a vida ainda era boa, não lhe faltava amor, nem saúde, apenas pequenos engasgos comuns às suas sete décadas. Falta mesmo só sentia do ombro companheiro que ainda a fazia chorar todas as noites. De repente, sentiu vontade de fugir dali.

Os carros da frente começaram a se mover. Ela engatou a primeira e seguiu devagar, até que no espelho retrovisor não viu mais nenhum vestígio da multidão.

A chuva cessou e o sol foi vencendo novamente as nuvens pesadas. A luz voltou a cegá-la momentaneamente.

Fechou os olhos para se proteger e ao abri-los, viu-se então de branco. Ouviu o barulho metálico das máquinas que diziam o quanto estava viva.

Segurando suas mãos estavam duas gerações que lhe eram ainda o motivo para continuar.

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