Tema 188 - ASSOMBRO
BIOGRAFIA
SEPARAÇÃO FUTURA
Marcelo Moraes Caetano

- "Socorro! Não!... tem que existir algo além das quartas-feiras!" - É de ter pensado assim que nasceu, por certo, a atitude que transfiro de minha visão e mente abismadas às letras: condescendência, generosidade, partilha. Muito haveria eu de, mais tarde, sofrer intermináveis elucubrações (apesar da metamorfose em palavras que se processou de repente) acerca do ato dentro de cuja aparente superficialidade, enfim, afoguei-me em desprezíveis incompreensões; por minha parte, não foi de maiores achaques, todavia, a consequência do descrédito que teimei em atribuir a quanto viam meus olhos e, cada vez mais, descria minha mente. Porque o fato é que o olho humano costuma vencer a ideia mesmo, ainda que sempre se tenha suposto, em muitas mentes, o contrário.

Por isso conto o episódio.

Se bem que "contar" não tenha sido um termo exato, não é revestido da precisão que, talvez, satisfizesse-me por razões alheias à minha vontade.

Metrô, se me fora um meio de transporte prosaico até então, sinceramente, passou a ser, após a quarta-feira que ora vos fala, das máquinas inusitadas o suprassumo, o baluarte em que se procurariam ver refletidas todas as demais, ainda por muito e muito inusitadas que fossem. A compensação que se dá quanto ao tempo excessivo gasto nas famigeradas (até certo ponto) viagens de superfície - há toda uma preciosidade temporal que se leva em conta -, afora a estranhíssima claustrofobia que advém daquela justa compensação, numa antítese autorreciclável, portanto, isto tudo são as linhas mestras e gerais que se pretendem pintoras de um bosquejo do que vem a ser, pois, o metrô. Mas tudo, assevero, antes da ocorrência. Depois dela, nem sei o quanto se diga... Dentre os inusitados o inusitado, isto posso: repito ser como eu o encararia, aquele trem do submundo, dali em diante.

Há três meses, eu descansava (razão por que me difiro do morto soldado d'Os Sertões? O de lá descansava por três meses, fazia três meses, quero dizer. Nisso, colocá-lo-ia, um pouco à frente, em pé de igualdade com o casal que se formará: quanto à separação acrimoniosa por que passaram, homem e mulher, haveria de fazer três meses que não se viam). Pois bem, faz três meses que tudo passou. Eu, descansando no banco abóbora e duro de um vagão, o que me sustentava, éramos chacoalhados pelo movimento perdulário que o trilho que se supõe reto a todos impunha. Livro meu e de outros caiu na freada havida entre a Estação São Francisco Xavier e a Afonso Pena. Metrô costuma ter aparelho de ar-condicionado; este há por bem estar ligado; se ligado, é interessante que funcione; e, funcionando, que diminua o calor.

Sensações que, em seu conjunto, como em suas individualidades sustentáveis, de mim haverão de sôfrega e futuramente apartar-se. Por um estado de assombro que se assenhoreou de mim.

Porque eram cinco horas da tarde (e por eu ir no sentido exato em que iam, também, todas as demais pessoas da cidade), a cada estação, portas abertas, o vagão em que eu muito paradoxalmente vinha sentado se entulhava de ternos, vestidos longos, calças amarfanhadas, mochilas, cansaços, olhares vívidos e outros nem tanto, sortilégios, tentativas de jornal. Mas conversas amenas, sorrisos, futilidades, poucas coisas, enfim, em que coubesse o apuro de uma detenção auditiva, irrelevantes o eram; parcos comentários com que se pudesse compatibilizar minha atenção. O que se não deu com este, que me revelou o pasmo oriundo do ver mas não crer.
Se bem que "comentário" não foi bem o que ocorreu.

Por fim porque o leitor de há muito exausto de minhas tentativas frustrantes de estabelecer perfeição epistemológica a essa altura deve estar dizendo: - "Chega!"?

O rapaz (moreno, mochila nas costas, seus dezenove anos, alguns meses e poucos dias) devia ter entrado algumas estações atrás; eu o não havia visto até ali, não o vi senão no momento em que, agora (Uruguaiana), entra-me uma moça loira (dos únicos caracteres que, de meu inventário com outros acima atribuídos ao rapaz, deste houveram de diferir). Excetuássemos o ser uma mulher - e loira -, no mais não se veriam grandes disparates entre ambos: muito se adequavam às compleições um do outro. O que se chamaria um casal perfeito, respeitando a que tivessem, até, superado a simbólica separação passada que lhes recrudescera a ânsia do reencontro - imaginário?

Que se me mostrará, nunca me canso de dizer, um equívoco monstro.

Primeiro pé no vagão, feminino, o segundo foi exclusivamente dedicado a regatear e equilibrar-se, tamanho o arroubo do abraço que ele lhe dera (falo do rapaz à moça, vítima do abraço, esta última): não tivesse ela dois pés sadios - embora devendo ter contribuído sobremaneira para a inclinação o peso da mochila que também a vergava -, e o modo, como que atávico, a que deu guarida aquele garoto, o modo como se lhe puxaram os dois braços (à garota), enfim, não tivesse ela duas pernas, ratifiquemo-nos, aqueles (maus, péssimos) modos do recém-homem tê-la-iam seguramente feito titubear; e, vagão empanturrado, sem oásis para apoios de mão (somando-se a isto o auxílio ora insidioso da mochila pesada), sobrevir-lhe-ia uma rasteira razoável, pela qual, se já não conhecesse, conheceria a rapariga, agora - sem dúvida -, o chão.

Abraçaram-se como quem morrerá; o rapaz na moça, com a moça, pela moça. O rapaz a moça. Ela igualmente nele, com ele, por ele. A moça o rapaz.

Assim: sem fôlego.

Um beijo demorado, demorado. Como os que, por quem namora e ama alguém, já foram devidamente aceitos e vividos. Quase morrendo, eu nunca vira.

- Um casal apaixonadamente perdido! - pensei, cogitando sobre a pretensa separação momentânea que lhes devia ter sido impingida algures por dado percalço do destino, e que, justificativa para a demora de um beijo que já durava duas estações, fora interrompida, à custa da dor e da saudade, outras razões justificativas, ainda maiores, para o beijo.

- Separação - divaguei - é bela se a análise parte do momento do reencontro. Acho que suspirei; não saberia dizer se suspirei.

Como rolava o beijo de que meus olhos disfarçadamente não se descolavam, pensei então na "festa" - propiciada pelo confronto com a quase tragédia antecedente - que era o terceiro movimento da Sonata opus 81a de Beethoven: em primeiro lugar (o primeiro movimento), "Les Adieux", não adeus no singular, mas o plural do inquantificável: adeuses. Depois, "A Ausência". Por fim, a festa a que me refiro com timidez - "O Retorno!" - provável paradigma, aliás, da cena que diante de mim insiste pela continuidade. "É interessante revisitar o passado, mesmo dos mais infelizes, se o presente se nos revela ou uma compensação - qual o é, a título de exemplo, um metrô (não sei por quê) -, ou um subsídio profícuo à aprendizagem, em que âmbito o for"; fui em visita à Antiguidade. Esbocei um much ado about nothing, e mais ainda um all's well that ends well. Porque Shakespeare é um tapa-buraco da filosofia ocidental. Onde não couber nada, ou onde nada lhe ocorrer, caberá Shakespeare, ocorrerá Shakespeare. Isto coube, ao menos em minha visão réproba, ao casal: "O Retorno" sobrepujara (naquele exemplar de dois à minha frente) "A Ausência", movimento intermediário, de uma presumível outrora, consagrando o êxito ao presente, coroando-o, por fim, com nada menos do que um beijo de três - e meia, beirando a quarta - estação de metrô. Será que eles respiram neste entretanto?

É claro que sem fôlego. Claro.

Deixando pensar alto um verniz hipócrita, escapou-me:

- Falta de educação...

Claro que não penso isso, mas as convenções sociais, os olhares olhando-me obrigaram-me a um ato-falho politicamente correto e nada acessível à verossimilhança do meu verdadeiro pensar consciente. Um ato-falho perfeito: falhou até no que queria dizer... Freud se deliciaria.

Sei lá, já devíamos estar quase no Flamengo. A moça deve ter escutado o maquinista anunciando o seu destino: desvencilha-se da fome e da sede insanável do rapaz. Igualmente sedenta:

- Tenho que ir.

- Já?!

- Já. - E sorriu-lhe doce.

Havia um livro aberto, nem sei se de cabeça para baixo, sobre meu joelho cruzado sobre uma outra perna, nem sei qual. O livro ou era sobre Linguística, ou sobre Música, mas era - único detalhe do qual estou convicto - em português. Disto tenho certeza!

Melhor dizendo, afirmarei não ser o livro sobre Matemática, e nada mais se diga a respeito: como a falta de pendores do Machado (de Assis) ao amarelo, assim é a minha em relação àquela ciência misteriosamente matemática, pelo que afirmo o que afirmei - não o era sobre tal o livro que me entretivera até o princípio do beijo custódio e, dir-se-ia, tendendo matematicamente ao infinito.

A porta do vagão abriu. Antes de sair, antevendo pretensa nova separação, à guisa de despedida, a moça tascou novo beijo estrelado no rapaz. Qual uma frigideira. A sede deixara-lhes aquela impressão que às vezes lhe é intrínseca: impossível compensar a privação, como a separação.

- Tchau.

- ... (...) ... - respondeu-lhe ele.

Poucas vezes verei despedidas assim dolorosas. Tocou-me, como aos demais do vagão, que, a essa altura, esvaziara-se sobejamente (não sei por qual motivo mais empertigado: o longínquo das estações ou o beijo assustadoramente apaixonado).

Fechava a porta; fechava, mas lentamente fechava... De fora, era até certo grau comovente a cena em que se via uma moçoila acenando lacrimosamente ao "namorado" (meu último engano).

- Tchau!

Já separados por vidros, o movimento da boca da menina, fora e longe, fazia notória a insistência, por sua parte, não só em acalentar a despedida do rapaz, como, sobretudo, em corroborar-lhe, na essência de dor e vertigem, o sinal de novo insuportável momento de separação, ruptura, futuro reencontro. Sim... Não... Sim... Não...

Sem som algum, a boca de fora move-se nominalmente em adeuses.

- (tchau)... - percebi.

Iniciando nova partida, o trem, em preliminares de movimento chacoalhador, far-me-á reproduzir fidedignamente a frase por parte do rapaz que derrubou o meu livro como a minha boca; fê-los despencar irreversivelmente ao chão, de onde, mercê das contingências aludidas da hora tardia e do banco que me sustinham, não foram recolhidos.

- EI!

Foi alto o suficiente para fazer a moça olhar através do vidro.

O rapaz, embora à moça estivesse dirigindo-se, foi a mim que quase matou:

- QUAL É O SEU NOME, GAROTA? - ou algo que o valha.

Perdão, meu livro era sobre mitologias. Em francês. Nunca mais o vi.

Perdeu-se entre o sonho e a realidade.

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