Tema 189 - ANGÚSTIA
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UM COPO DE VINHO
Isaias Edson Sidney

... embora minha língua já esteja roxa e grossa; do outro lado da mesinha redonda do bar, os sons - música, conversa, talheres - não impedem que eu ouça apenas um marulhar de ondas vindo de sua boca carnuda e vermelha a queimar por dentro o meu peito, e o meu estômago roda em ânsias de querer sair dali e ao mesmo tempo o cérebro lateja e o coração aperta e comprime o peito, arrebentando o botão de meu colarinho e ela ri e eu a desejo mais que tudo naquele bar no centro da cidade, a cidade que pulsa lá fora e aqui dentro eu quero um beijo, apenas um beijo que redima o fato de estar aqui, eu sei, não posso, não posso, e ela é encarnação de sonhos de toda uma vida, uma voz a marulhar em meus ouvidos, leve perfume de narcisos e o toque suave de sua mão sobre a minha ao desvelar com graça mais um pequeno detalhe de sua vida, o decote do vestido a revelar uma curva leitosa de caminhos que não ouso imaginar, eu , tensão e tesão, amor e desejo e não posso, não posso, o sonho impossibilita-se ao ser sonhado, quero acordar, mas os sons do centro da cidade não me deixam senão mais alerta e meus sentidos se voltam mais uma vez para o perfume de seus cabelos, trigal de delícias a dissolverem-se em minha boca em brioches e croissants, em cremes e recheios de nozes e passas, e o pão que assa o meu ventre, fermento de paixão a latejar em meu ventre, sua mão, longos dedos a percorrer o espaço e descrever algo que não sei bem o que é e sua voz pianíssima a bater em meus tímpanos e o sonho de estar com ela em algum colchão de nuvens, a ouvir anjos risonhos de igrejas barrocas, a tocar sua pele em suavidades de narcisos, e o bar segue um ritmo que eu não acompanho e o sonho se dissolve quando o pensamento voa para longe, para longe, e eu quero voltar e eu quero voltar ao bar, ao sonho, ao bar, ao sonho e eu quero voltar, o pensamento se fixa no som da música e no som entrecortado das conversas e dos talheres, no cheiro de pães, de doces, de fermento, no calor de seus dedos sobre o meu braço, no sabor da bebida a refletir na taça o vermelho suave de uma mal entrevista lingerie, e o pensamento se prende e luta para não voar, o olho que se desvia e se prende a outros olhos ali fora, não, não posso, não quero, mas o olho se volta, se volta e se prende a outros olhos além do vidro, na calçada lá fora tão longe do bar, ali tão perto, não mais que a extensão de meu braço, tão longe quanto os caminhos que sigo para voltar, ali, dois olhos me olham e me lembram, dois olhos pequenos e ávidos, apenas um menino curioso, logo puxado pela mão tensa de um braço solto no ar, apenas uma criança e talvez sua mãe, e meu pensamento se desprende e voa, enfim, para onde está meu filho, a sofrer numa cama de hospital e eu não posso continuar aqui e a sonhar este sonho de narcisos e trigais, de sedas e arminhos, e então eu só quero mais um copo, só mais um copo de vinho...

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