Tema 189 - ANGÚSTIA
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AS VOLTAS DO CORAÇÃO
Léia Carvalho

Discreto em sua essência, assim é um coração. Coração não dói, se doer está perdendo parte das funções, tendo um mal, vezes súbito e necessitando de socorro. Como um bom forasteiro, ele vive discretamente dentro de cada um. Olhos, mente, boca, sempre nos holofotes. Ele, pelas coxias dos seres, possibilitando o grande espetáculo, vendo tudo por um ângulo mágico, sabendo que há um novo ato, mesmo quando as cortinas se fecham. Aos 28 anos, não é comum pensar que se tem um coração. Zilá tinha um dos mais valiosos. Órgão feio quando mirado, raro quando sentido. Talvez ela não sentisse com precisão algumas coisas, entre elas, não sentia ter um coração. Nela havia um batendo forte, pulsando na velocidade necessária sempre, mandando vida para cada pedacinho daquilo que chamam de corpo, invadindo todas as conexões da mente. Com adrenalina o pulsar é freneticamente tão acelerado que, por vezes, ele, coração, está certo de sua própria pane. Esse coração sempre forte, ainda que isso não fosse uma marca de seus ancestrais, acompanhou uma menina, apertou quando houve perda, a sentiu transformar-se em mulher, deu alertas para Zilá correr alguns riscos e mover-se sem parar. Com o tempo, o mundo estava diferente, a moça estava livre de título e detida pelos vícios, o principal era a eterna busca de um salvador, mesmo a boca não tendo proferido, essa era a realidade, ela clamava por um resgate de vida chamado amor. Ele bondoso, ou simplesmente lutando pela vida, tentou avisá-la quanto aos ajustes que ela deveria passar na forma de viver, para que ambos ficassem inteiros. Implorou um pouco mais de quietude e menor fluxo quanto aos moradores convidados por sua dona para nele morar. Sem dar ouvidos ao amigo do peito, ela colocou tantos quanto quiseram entrar e na mesma velocidade de entrada, eles saíam, correndo desesperados, assustados com o que viam dentro daquela pessoa tão mulher por fora, tão menina por dentro e com um coração enorme que caberia diversos moradores ao mesmo tempo e isso muitas vezes acontecera. Cansado de 28 anos de lida, ele queria um substituto para aquele trabalho, era difícil para ele brigar sempre com Dona Mente Teimosa. Desejando curtir um pouco a vida, ele pedia folga todos os dias, era ignorado, nada de mente, de corpo, de alma, ninguém, nadie, nobody. Todos juntos e separados calaram a voz de um coração. Em um verão, a moça desceu a serra. Naquele paraíso de montanhas e mar, o coração sentia-se calmo, era regozijo. O mar lavava tudo e ali era possível descansar. Quem trabalhava arduamente nessa época era a mente, remoendo todos aqueles que se foram sem explicação, deixando portas e feridas abertas, as quais o tempo custava a ter forças para fechar. Surpreendentemente, nesse ano, surgiu um passatempo novo de verão. Como é sabido, amor de verão não sobe a serra, quem dirá um pousadeiro- um moço que trabalha em pousada- que nem amor é; chegou mesmo com um carimbo feito pela mente: DIVERSÃO GARANTIDA.

Pele e cabelo de um tom dourado tão próximos e lindos, que só deixavam de ser apreciados quando os óculos escuros eram retirados e duas bolas verdes que pareciam faróis sinalizando vida tranquila. Voz suave e cheia de gírias surfistas, sorriso escancarado, delicadezas de um jovem cuidadoso, carinhos de um homem apaixonado e caminhar sempre altivo como de um leão. Esse era o pousadeiro. O coração viu nele um salvador, sua dona nada viu além do carimbo feito pela mente. Antes de chegar à metade do verão, eram íntimos além dos padrões costumeiramente estabelecidos entre hóspedes e pousadeiros. Difícil era definir com exatidão de quem eram os quartos. O dele sempre de portas abertas e ela por lá quando queria, e não era pouco querer; o dela ele tinha a chave e ia visitar quando tinha vontade, folga, ou era solicitado. O coração não dava sinais de vida, paixão, amor ou coisa parecida que tenha outro nome, apenas cumpria as funções básicas, mas sabia que a hora de escapar daquele corpo ia chegar. No dia da partida, o pousadeiro tirou lhe o coração sem que nada ela sentisse. Passou a cuidar dele em segredo absoluto, guardou tão bem guardado que ninguém jamais poderia achá-lo. Com dois corações voltou as suas aventuras, nos mares, na terra, nas camas. As garras de leão eram escondidas para cuidar dos dois corações, sempre alimentando-os e protegendo-os, não trazia nenhuma visita para neles habitar ou sequer pousar uma noite. As visitas tinham área restrita, poderiam viajar por todo o corpo dele, mas ao redor dos corações haviam grades e cobertores que impediam até mesmo que fossem vistos. A moça sem coração subiu a serra com o sorriso de sempre, com sua mente falante e seu olhar atento, mas ainda e cada vez mais, sem sentir. Passou o restante do verão sem mar, sem praia, sem piscina, sem sol. Ficar molhada para se refrescar não era mais tão agradável, melhor era um ar condicionado, ficar queimada era ridículo demais para uma mulher da cidade. No outono, não viu beleza alguma nas árvores e suas folhas caindo, achava tudo aquilo muito chato por sujar tanto as calçadas, usar roupas de meia estação era algo desagradavelmente morno, quase frio. No inverno, aquele frio exigia cobertores demais para dormir, roupas demais para sair, vinhos demais para abrir. Em todas as estações, via casais apaixonados se beijando em estações de trens, pontos de ônibus, filas de cinema e achava tudo aquilo muito desagradável e desnecessário. "Por que mesmo essas pessoas não deixam para fazer isso em casa? Qual é a necessidade de tanta carícia pública?" A mente ficava um pouco confusa, pois em sua lembrança continha cenas mais que apaixonadas, haviam momentos insanos de agarramentos em praça pública, de transas a luz da lua e no meio da rua, perda de calcinha atrás da biblioteca da cidade, mesmo com todos esses fatos, a mente se continha. Com o passar dos meses, os resmungos de Zilá só pioraram, ela já tinha 29 anos. "As mulheres ficam piradas aos 30, mas não sinto que ficarei, estou bem. Sou feliz com a vida que tenho, não preciso de mais nada, nem de um companheiro, já passei dessa fase. Como meu amigo pode se sujeitar a esse relacionamento tão pegajoso com essa fulana, chegada ontem na vida dele? Só vivem saindo juntos, ele não poderia um dia ao menos estar sem ela, para assim ser ELE?"

A mente cansou de tanta baboseira e berrou:

? MALUCA, DOIDA VARRIDA! Seja lá o que houve com você, pare de recriminar o mundo, no passado você viveu isso intensamente.Nos raros momentos de solidão que tinha, IMPLORAVA por um alguém ao seu lado e quando chegado o ser novo, era automaticamente transformado em DEUS. PARA QUE TANTO RANCOR COM OS APAIXONADOS? Não seria isso falta de paixão dentro de você? Falta algo em você, te foi tirado o real sentido de viver e você nem sentiu. PARE de agir como um robô, você é um ser humano, é uma mulher, seu natural é sonhar. Impossível que construa algo, mesmo que tenha todas as ferramentas e mão de obra disponíveis, é necessário SONHAR antes de agir. VOLTE A SONHAR.

Não houve pausa na frase da mente, foi uma metralhada só. Desacordada por algumas semanas talvez, Zilá acordou nos primeiros dias do verão. Lembrou-se do mar, das montanhas, da estrada, da pousada, mas não do pousadeiro. Seguiu serra abaixo, sem saber ao certo o que faria naquele lugar, mas já era uma tradição e essa não se questiona apenas se cumpre. A primeira pessoa que viu foi aquele lindo moço de olhos verdes, lembrava dele, mas não conseguia ter certeza do que viveram, parecia tudo tão distante e cristalizado. Carregando as malas dela para o mesmo quarto do verão passado, ele falou com o coração dela:

? Amiguinho, agora você já está forte. Nossas aventuras foram radicais, mas é preciso voltar para sua casa e arrumar as coisas por lá, um ano fora causa um estrago e tanto.

Tremendo um pouco, o coração tomou coragem e balançou positivamente afirmando estar pronto. Malas acomodadas no chão, Zilá apreciando a vista, pousadeiro na porta do quarto. O coração com vigor de 15 anos, pulou de dentro dele para dentro dela, um salto longo e feito em câmera lenta, penetrando o peito houve uma onda de luz, som e calor explodindo em toda a região, as árvores tremeram e Zilá apertou o peito com força para ter certeza que não estava morrendo, delirando ou devaneando. Sentiu todas as partes do corpo vibrando como se todas tivessem tomado um choque, foi capaz de sentir o dedinho do pé, os fios de cabelo na cabeça sem as mãos neles passar. Tentou sentar, mas não houve tempo, desabou no chão. Minutos depois, acordou nos braços do pousadeiro. Viu aquele sorriso lindo, sentiu o coração pulsando e todas as veias do corpo pulando no mesmo ritmo.

? Desmaiando de calor ou de emoção com a vista?

? Você não sentiu tudo tremer?

? Sempre sinto, mas não posso falar isso para ninguém, não diga nada você também gata. Essa região não tem terremotos, nós somos loucos, só isso.

O coração sabe bem o quanto será difícil viver longe do pousadeiro, após um ano de tão bons cuidados, protegido do mundo convencional, mas tem noção do quanto Zilá precisa de ajuda. Ainda é verão, mas ele a encheu de desejo de subir a serra e em todas as estações vai lhe mostrar outros pousadeiros escondidos em ternos de executivos, camisetas pintadas a mão dos artistas, nos jalecos dos médicos, nos instrumentos dos músicos. Existem pousadeiros cuidadores de corações por todas as partes, mas somente quem está com os olhos ou os corações atentos, consegue perceber e por eles serem resgatados para tratamento de uma temporada, ou até por toda vida. Vai da sorte. Vai da fé. Vai do querer

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