Tema 189 - ANGÚSTIA
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ANGÚSTIA OU ENSAIO SOBRE A MORTE
Suzana Fagundes

Dá vontade de cruzar os braços, ficar inerte aos acontecimentos da vida. Cruzá-los e amarrá-los, para não sofrer da tentação de me enrolar nas tramas do dia-a-dia outra vez. Dá vontade de ficar parada, sob os lençóis, sobre a cama esticada, assim, sem ver a luz ou a escuridão. Dá muita vontade de morrer, tão somente, sem ver os que ficam, pobres sobreviventes.

Dá muita vontade de fechar os livros, de me fechar a qualquer informação, a qualquer pessoa ou coisa. De fechar os olhos, crispar as mãos, colocar-me em posição fetal, abaixar a cabeça, para que sangue não flua mais, pelo menos por algum tempo. Tempo que me dê algum alívio.

Dá vontade de chorar. Quem sabe se eu ao menos tivesse ainda lágrimas, essas gotas de cristal líquido, que contra o sol brilhariam? E para quê?

Poderia, quem sabe, afundar os pés no chão, de tal modo, que ficaria plantada como "pé de planta". Mas talvez sem fotossíntese, porque nem oxigênio eu teria, para contar a história.

Um quarto escuro, talvez fosse esse o destino para o meu corpo em abandono total à realidade ao meu redor. Sem frestas, como na sala de projeção cinematográfica. Quanto mais escuro, mais nítida a imagem do "sonho".

Que seja filme minha passagem límpida e ao mesmo tempo obscura pela terra brasilis. Já não é Brasil onde piso, nem Rio de Janeiro ou Mato Grosso. É a Terra, ela mesma, esse planeta solto no espaço, girando sem parar. Pudesse minha cabeça também estar solta, e meu corpo ser mero transeunte sem a menor consciência de absolutamente nada, como os moribundos, envoltos pela dor, tão somente: galhos secos, torrões de terra ressequidos.

Perdi minha alma neste trajeto de morte que, fluida, etérea, imortal e imaterial deu-se o direito de vagar, de novo, pelas paragens do tempo.

Meu corpo se dilacera vago, longilíneo, deixando, pelo caminho, as sombras acumuladas; pelo ar, as mágoas guardadas até logo antes de morrer. Sim, porque parece que estou morta. O meu organismo, forrado de lixo, de matéria orgânica inútil, pesada, densa, procura um caminho pelo espaço cósmico, esquecendo-se de que jaz sob a terra, sob mortalhas em sua homenagem num enterro simbólico, manuseado pela indústria da morte, mancomunada com os leitos de hospital ou com armas do crime organizado por uma sociedade também moribunda.

O esquecimento se faz presente em cada célula do meu corpo, agora imprestável e febril. Cada fibra deixa de vibrar a vida, e um organismo já encerrado em suas atividades dá adeus às cores que outrora viu.

Féretro dos confins, adeus às armas, à enorme pequenez na qual minha vida se constituiu! Que momentos posso levar daqui? Nenhum. Tudo é passado, porque a beleza não se mistura aos corvos da morte, à negritude de séquitos desnecessários. Melhor seria dar meu corpo aos abutres e não à terra, como no Tibet. Muito melhor seria alimentar esses seres que, afinal, têm a função de limpar, comer o podre da vida. Não tenho a intenção de adubar a terra. Nem em cemitérios, nem em jazigos perpétuos.

Em vida, esperei que os fatos não fossem aqueles, não mais aqueles, forjados e enganosos que foram. Esperava que os meus relacionamentos, os transeuntes do meu destino, fossem uma grande festa de amor. Não vi esse amor. Em quase nada. Vez ou outra, troquei mesuras com aves de rapina disfarçadas em cordeiros humanos.

Meu passo alcançou poucos horizontes, raríssimas veredas, a não ser os poucos espaços do meu peito ardiloso, do meu cérebro computadorizado e sem uso. Desligado, mas não deletado.

As palavras me vieram em forma de poesia e eu não pude proferi-las. A comunicação se fez precária, infértil, causando-me a mais profunda de todas as solidões do mundo e a mais dilacerante angústia. Vivi, pensando um futuro amalgamado pelo passado, sem viver direito o presente como presente de Deus. Ponderei até a exaustão. Até às partes lívidas que em mim queriam desvendar o teor da existência. Nenhuma resposta. Silêncio de morte.

Morrer é uma dádiva inexplicável, é sair de cena, desta enorme fantasia que acontece aqui em meio à natureza dilapidada de agora.

Do Brasil descoberto, virgem, em verdes frutos, coexistindo pacificamente com os filhos-da-terra, hoje restam reservas, reservadamente. De mim redescoberta, resta esta morte bendita, legítima, que eu tanto esperei, mas que não veio.

Perco-me agora em tempo e espaço, buraco negro, viajante do nada e ao mesmo tempo de tudo. Agora faço parte do eterno sono do absolutamente nada. E, inda assim, onipresentemente, aqui escrevo nenhuma memória, a não ser a do meu suicídio lento, da morte que começou quando nasci aqui.

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