Tema 190 - O LADO BOM...
Índice de autores
O CASACO AZUL
Eva Ibrahim

A geada chegou forte com um frio cortante, que penetrava na alma das pessoas. Uma frente fria que assolava a região sudeste que pegou muita gente desprevenida; muitos não tinham roupas adequadas á nova situação meteorológica. Cada um se protegia como podia; havia pessoas com cobertores nas costas andando nas ruas. Há muito tempo não se via uma estação tão gelada, havia notícias de mortos encontrados nas ruas com hipotermia.

César recebera alta do Hospital no dia anterior e não tinha para onde ir; sua família morava no nordeste e ele acabara de chegar. Passara a noite sobre um papelão coberto com jornais em um vão de uma loja de departamentos. Seu corpo doía de tanto frio, o homem estava gelado; sua perna parecia rasgar com tantos ferros enfiados na carne. Seguiu apoiado na muleta até um banco do ponto de ônibus e deitou todo encolhido; vestia bermuda e uma camiseta de mangas curtas.

O nordestino chegara á cidade em busca de trabalho, trazia consigo uma muda de roupas e muita vontade de vencer. Era do interior do Ceará e não imaginava os perigos da cidade grande; um sertanejo simples e semi-analfabeto. Fora prevenido contra ladrões e aproveitadores, mas nada disseram contra o trânsito infernal da Capital de São Paulo. Vendeu a velha bicicleta para comprar a passagem para a cidade tão sonhada. Queria trabalhar muito e voltar vitorioso para se casar com Edileuza, sua namorada.

Desceu do ônibus e ficou espantado com a grandeza do lugar; nunca vira tanta gente junta andando rapidamente. Queria encontrar patrícios que pudessem ajudá-lo, disseram que havia muitos deles trabalhando na cidade. Pensou que seria fácil, mas as pessoas passavam e não prestavam atenção nele; nem mesmo o viam. Queria perguntar á alguém onde ficavam alojados seus conterrâneos e depois iria procurá-los. Não tinha outra saída, precisava tentar ou ficaria na rua; contava com a sorte e a proteção de seu Santo de devoção, Padre Cícero.

Trazia alguns trocados no bolso e estava com muita fome; precisava comer alguma coisa. Resolveu entrar em um barzinho do outro lado da rua "Bar do Severino", devia ser patrício, pensou o rapaz; iria falar com o dono do bar. Ficou parado na calçada esperando o melhor momento para atravessar. Depois de diversas tentativas, César ficou olhando para ver se alguém se aventurava e um rapaz forte ia correr para o outro lado; ele resolveu segui-lo. O homem conseguiu, mas ele foi atingido por um automóvel perto da calçada de chegada; ficou estirado no chão, pensando que nunca mais veria sua Edileuza. Queria gritar, mas só conseguiu chorar; estava só e totalmente vulnerável.

Tentou levantar-se, mas não dava, sua perna doía muito e a cabeça sangrava. Houve aglomeração de transeuntes no local e logo apareceu o carro do Corpo de Bombeiros, que o levou ao Hospital. O nordestino assustado, gemendo de dor, foi levado para a sala de cirurgia e não se lembrava de mais nada. Acordou no dia seguinte com um arco de ferros enfiados em sua perna direita e doze pontos na cabeça. A realidade era dura, estava proibido de sonhar. Ficou hospitalizado por dez dias e recebeu alta no dia anterior. Não poderiam ficar com ele ocupando leito, estava com alta, tinha que deixar o Hospital, disse o médico.

Tentara dormir sob á marquise da grande loja, mas era impossível, o frio e a dor o atormentavam, então resolveu andar até o ponto de ônibus. Estava ali deitado no banco sem agasalho e com muita pena de si mesmo; queria voltar para o Nordeste. Sentia saudades da família, da namorada e principalmente do calor do Ceará. Não sabia o que seria dele, não poderia trabalhar com a perna cheia de pinos e não tinha para onde ir. Estava á mercê da sorte e temia morrer de frio.

No local havia algumas pessoas que esperavam á condução para o trabalho, todos encolhidos de frio; sentiram pena do rapaz, mas continuaram impassíveis. Um coletivo parou rente á guia e o motorista desceu por alguns minutos. Uma Senhora olhava pelo vidro, levantou e desceu do ônibus, estava bem agasalhada com um conjunto de lã azul e sem hesitar tirou o casaco colocando-o sobre César. Com uma blusa de mangas curtas retornou ao coletivo, deixando os presentes espantados.

-Quem era aquela mulher? Seria um anjo disfarçado? Ela deveria estar com frio, mas o seu lado bom falou mais alto e sorrindo seguiu com o coletivo.

O casaco era feminino e certamente não servia ao jovem, mas ela demonstrou total desprendimento dando-lhe o que possuía no momento. Deu exemplo mostrando calor humano, chamando os outros á praticar a solidariedade. O rapaz se agarrou ao casaco como se fosse uma tábua de salvação e baixinho rezava ao Padre Cícero, clamando ajuda. O perfume que exalava daquela peça de roupa o deixava esperançoso; tinha ágüem olhando por ele lá de cima e fitou ás estrelas brilhando no céu límpido.

Um senhor que a tudo presenciou aproximou-se de César e perguntou o que ele fazia ali. Depois de ouvir sua história o homem disse que deixaria seus afazeres para levá-lo á um abrigo e lá conseguiriam ajuda. Chegaram á Casa Paroquial onde o Padre se preparava para a primeira Missa do dia; César chorou contando sua história e o velho pároco se comoveu. Estava na casa de Deus e seria acolhido no abrigo que a Igreja mantinha com a Pastoral.

O rapaz recebeu roupas, alimentos e uma cama para dormir, depois decidiriam o que fazer. No local havia vinte homens instalados, que trabalhavam em uma oficina de Artesanatos feitos com reciclagens. O abrigo era mantido pela prefeitura e a Igreja onde muitos conseguiram se erguer e sair para uma nova vida. O Padre consentiu que ele ficasse ali para poder se tratar no Hospital e aprender um trabalho na oficina ao lado.

César estava feliz, agradecia ao seu Santo e guardava com carinho o casaco azul, um dia o levaria para sua mãe. Dois anos se passaram para sua perna ficar boa, durante esse tempo aprendeu a fazer artesanato e participava da cooperativa da instituição. Sempre que podia ligava para a mãe e a namorada, nunca as esquecera.

Conhecera o lado bom de algumas pessoas e graças a isto se tornara um homem preparado para ganhar a vida. Vendia seus trabalhos, colaborava com a instituição e mandava dinheiro para sua mãe. Ele e dois companheiros arrumaram uma pequena casa e para lá se mudaram deixando as vagas para outros necessitados.

Na semana do Natal seguiu para sua casa, queria fazer uma surpresa para a mãe e rever Edileuza. Quando chegou foi recebido com um grande abraço e muito carinho, a velha sertaneja chorou de emoção. Em seguida recebeu o casaco que salvou a vida de seu filho, vestindo-o para ir á Missa do Galo. A mulher abençoou o filho e fez uma oração de agradecimento ao anjo que lhe deu o casaco provocando a solidariedade no homem que o conduziu ao abrigo. Acreditava ter recebido um milagre de Padre Cícero, a felicidade estava presente naquela casa com a volta do filho.

César abraçado ao seu grande amor lhe prometia casamento para breve, logo ficariam juntos para sempre na Capital Paulista. Era um artesão e não lhe faltaria trabalho; recebera ajuda do céu através de um casaco azul e seria grato para sempre.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor