Tema 190 - O LADO BOM...
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COMO NÃO ESCREVER RESENHAS
Zeca São Bernardo

Contados os dias um a um deu-se conta que vinte e oito dias eram passados. A pilha de livros sobre a mesa não deixava dúvidas. Sequer queixa ou teima nas vistas cansadas. Mais da metade dos livros já fora lida e nenhuma linha das supostas resenhas escrita!

Ora, não obstante o trabalho fosse no mínimo homérico não contava ser desvirtuado tão facilmente. Não consistia num esforço hercúleo e tais e tais adjetivos retumbavam em seus ouvidos mais que as palavras dos médicos quando explicaram-lhe os comos e por quês do infarto de sua mãe. Nem isso conseguiu tocar-lhe ou fazer-lhe abandonar a leitura. Tão pouco deixou o bigode crescer ou fundou um partido, como motejou o cunhado. Na verdade, quanto mais se aprofundava na leitura mais aversão tinha pela política. Mais questionava seus próprios valores e, principalmente, o como os adquirira...não, a idéia da resenha fora um pretexto para não emprestar os livros, tinha no fundo a certeza de quase não mentir. Já que cedo ou tarde dedicaria algum tempo ao esforço de ao menos esboçar algumas linhas sobre cada um dos livros.

Na verdade, não teve pedido nenhum de ninguém para resenhar absolutamente nada. A idéia fora emprestada de um concurso sobre resenhas cujo prêmio era a publicação de um modesto volume de autoria própria do vencedor. Para tal engolia-se o texto nada agradável de outro colega e transpunha-o sobre as luzes difusas dos interesses mesquinhos ou medíocres do amadorismo. Comparara-o a quem mesmo? Ah, sim, sim, Henry Miller. Mas com todos os diabos como saberia que o dito colega detestava Henry Miller?

Por acaso a desconfiança sobre as supostas lembranças ou vivências sexuais do sr. Miller poderiam ser um patrimônio privado e neste caso, unicamente pertencente-lhe?

Tolices, divagava, tolices e mais tolices! Sabia, no fundo, que a idéia de resenhar qualquer texto surgiu-lhe bem antes e nascera de seu interesse em após uma primeira e talvez apressada leitura deixar assentar no papel aqui e ali algumas notas para serem consultadas numa melhor oportunidade. Quem sabe após uma ou duas releituras?E, cada leitura não ensejaria a necessidade de uma nova resenha? Uma á uma não poderiam ser tomadas ou lidas em diferentes épocas do ano ou da vida para se constatar o que entendeu e, principalmente, o que não se entendeu do livro?

Perguntas, perguntas, perguntas e mais perguntas. Agora só tinha perguntas! As respostas eram objetos ou objetivos á serem alcançados.

Afinal, o que lera? Afinal, o que o fizera mudar tanto assim em tão pouco? Poderia um livro ou um conjunto d e livros fazer um homem mudar tanto assim e em tão pouco tempo?

Fora a bíblia? Fora o Alcorão, talvez a própria doutrina d e Buda? A bula de algum medicamento que causava alterações d e humor?

Não, não. Querem saber? A culpa cabe á um único nome: Nitche!

Procurou nele respostas e encontrou tantas perguntas sobre si mesmo que o máximo que alcançou de alguma coisa foi à certeza de que não foi o único que padeceu da dúvida. Sobre o que? Sobre tudo! Aprendeu a fundamentar critica, aprendeu a aprender, a ler com calma, pausadamente, a procurar a melodia da palavra. A duvidar tanto da dúvida quanto da suposta certeza. Comprometeu-se consigo mesmo a promover uma pesquisa mais abrangente sobre todos aqueles nomes e trabalhos que aparecem nas notas de rodapés dos primeiros nove livros devorados. Leria os trabalhos e se aprofundaria nos filósofos que Nitche tanto criticava só para ver se concordava com ele ou não.

Talvez tudo isso seja apenas demasiado humano, talvez seja só no que dá quando você compra pelo Correio uma pretensa biblioteca completa sobre um dado autor.

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