Tema 193 - O QUE FOI QUE EU FIZ?
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O HOMEM EXAURIDO
João Gilberto Engelmann

Uma vez tinha um homem que tinha de um tudo. De um tudo porque de todas as coisas do mundo, um exemplar era seu. Ele não tinha problemas, exceto um: ter um exemplar de deus. Queria porque queria ter um deus para si; nem precisava ser único, mas que pelo menos uma cópia deste fosse sua. Dona Maria dizia que deus só há um. Assim, o homem tinha um problema. Dona Maria José dizia que deus estava na consciência de cada homem. Teria também um problema, porque tendo um exemplar de homem, não se podia saber neste que parte era o tal deus, e então, afinal, não se teria um exemplar de deus.
Poderia então faz duas coisa. Se uma, não a outra, e vice e versa. Poderia roubar (comprar, ganhar, trocar) o deus único, se assim fosse. Então o teria para si, como última coisa que o mundo tem e que seria seu. Trabalhoso, porque teria de concluir de algum modo que o mundo tem deus. Caso não tivesse, então não precisaria de um exemplar seu e não lhe faltaria nada. Poderia também, como segunda opção, decompor o homem até que se exprimisse deus deste. Seria o caso de tomar um ser humano e dele assimilar deus. Trabalhoso, porque poderia dissociar várias coisas que não fossem de fato deus, porque ao fundo, não sabia o que era.
Assim o seu problema não era um, mas todos. Chegou ao fim de sua vida e algo está suspenso. Daquela pergunta sobre se deus existe concluiu que sim, ele existe, o que o faz precisar de um exemplar seu, para ser plenamente feliz. Nada estava em vias de ser esclarecido. Nenhuma das ideias lhe parecia boa; nem roubar deus, nem retirá-lo do homem. Mas uma teria de seguir, para sua felicidade. Felicidade não no sentido de ter de seguir uma, mas como condição para a felicidade. Pensou em roubar deus. Porém, não sabia de onde iria roubar deus. Onde, no mundo, estaria deus para que pudesse subtraí-lo? Pensou nas Igrejas. Decerto alguma igreja contivesse deus à mão. Então bastaria entrar na calada da noite, escura e quieta, e tirá-lo de seu posto e levá-lo para casa. Importaria para isso, descobrir esse lugar que continha deus. Foi, assim, percebendo, que ao passo que desejava ter deus precisava descobrir outras coisas, e outras, e novamente outras. Se ele existia. Se era um, onde estava. Em qual dos lugares possíveis estava. Como saber como era. Como não levar um castiçal da tal igreja achando que era deus. Muitas perguntas que o impediam de agir. Desistiu.
Pensou em tão em tomar-se como cobaia e se decompor até que restasse deus. Primeiro pensou que devesse cortar os cabelos, aparar as unhas, fazer a barba. Certamente, essas coisas supérfluas não eram deus, e devessem ser tiradas de sua existência. Assim o fez. Estava agora careca, de unhas rentíssimas, de barba feita. Feito isso ainda não se sentia satisfeito. Arrancou, então, as roupas do corpo. Nu, sentou no chão esperando a revelação. Nada mudou. Deu-se, então, algumas chicotadas, para ver se deus não era o sofrimento vindouro. Doeu bastante, mas nem sinal de deus.
Veio-lhe a sensação de estar fazendo algo de errado. Pensou que afligir o corpo não era uma boa estratégia. Deveria tomar conta era da alma, onde mais certamente deus residisse. Baniu da ideia todos os pensamentos impuros. Parou de pensar na Zilda, na Zelda e na Maria, trigêmeas. Parou de desejar que o fruteiro tivesse diarréia por vender tão caros os nabos. Não quis mais acumular suéteres só para gabar-se ao Euclides.
Sentia-se melhor, mas ainda homem. De deus, nem uma fagulha de luz. Então, somente desejou o que era bom. Via a Zilda, a Zelda e a Maria, trigêmeas, todas de branco sentadas numa nuvem tocando harpas. Via o fruteiro num paraíso onde vendia um nabo por cinqüenta mangos. Imaginava uma rua onde todos passeavam com seus suéteres. Sentiu-se melhor ainda. Mas ainda aquilo não era deus.
Quis desistir. Lembrou-se do velório da Senhora Macella. Lembrou-se do que dissera o padre: lembremos, amigos, que a irmã Macella ainda hoje encontrar-se-á com deus. Morta, ela encontrar-se-ia com deus. Se ao menos pudesse pedir à Macella que aconselhasse deus a se entregar, evitando assim toda aquela peregrinação. Mas isso já não era mais possível.
Então o homem tomou uma decisão mais séria. Morreria e, quando se encontrasse com deus, o convenceria a seguir com ele até a sua coleção de coisas que o mundo tem. Tomou arsênico. Esperou. Caiu no chão morto. Acordou no céu. Levantou-se no ímpeto. Olhou para os lados e nada viu. Só um branco de doer nos olhos. De repente, algo o tocou no ombro. Voltou-se. Era deus. Com cara de boas vindas. O homem então o cingiu a cintura com as mãos e disse: vamos logo, deus, temos que ir. Minha coleção agora está completa. Deus deu um sorrisinho debochado. Caminhou com o homem. Não falta mais nada para a sua coleção?pediu deus. Não, só faltava deus, e agora o tenho. Vamos, temos um longo caminho pela frente.
E deus acompanhou o homem até a sua coleção, e lá ficou para sempre. Agora o homem não tem mais problemas e preocupações. Ele e deus conversam. Os dois mortos.

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