Tema 194 - EXCLUSIVIDADE
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FAIXA DE PEDESTRE
Ubirajara Varela

Caminhava pela rua, às seis da manhã, em direção ao escritório em que trabalhava. A rua estava calma, como devem ser as manhãs. Quase nenhum trânsito, um carro aqui, outro ali, rostos amassados e bocejos.

Tenho o costume de ir trabalhar à pé, unindo o útil ao agradável: faço uma atividade física leve e prazerosa ao mesmo passo em que aproveito a lentidão matinal para fazer planos, pensar em projetos, programar o dia.

Em meio às divagações, um tanto displicente, percebi que o semáforo para pedestres estava aberto, indicando caminho livre para a minha travessia. Iniciei o cruzamento, em cima da faixa de pedestre, submerso em pensamentos, com a certeza de que a faixa era a única exclusividade segura para os transeuntes nas vias públicas.

De repente, ainda no meio da travessia, percebo o vulto de um veículo vindo em minha direção. Não dei muita importância, continuei caminhando e divagando, apenas conferindo o semárofo que ainda indicava que eu poderia seguir em segurança. Verde ostensivo. Mas, ao contrário da minha expectativa, fui jogado para longe: sim, algum tipo de automóvel de pequeno porte havia me atropelado.

Caído no chão, bem próximo da sarjeta, sem saber direito o que havia me acontecido, o mundo girava de ponta-cabeça. Por instinto, comecei a tatear o corpo. Muita sorte, pensei, pois não constatara nenhuma lesão aparente. Tudo estava no lugar certo: pernas, braços e cabeça ainda juntos ao tórax.

Levantando devagar, meio atordoado com a pancada, comecei a olhar ao redor. Percebi que havia uma outra pessoa caída, do outro lado da rua. Perto dele, um carrinho de supermercado vazio e tombado.

Demorou alguns segundos - que pareceram uma eternidade - até que eu conseguisse ligar os fatos: eu havia sido atropelado por um mendigo que vinha em cima de um carrinho de compras desgovernado. Eu não sabia ao certo se ria, chorava ou se me irritava com a situação.

Passado o susto e a irritação, consegui dar umas risadas catárticas. Ele olhou-me com olhos desconsertados. E tudo ficou naquilo. Seguimos em direções opostas. Eu no meu passo lento, ele empurrando o seu carrinho.

Hoje, fico pensando se aquele incidente teria algum sentido espiritual, algum karma ou dharma ou sei lá o quê. Não entendo muito bem dessas coisas. Mas, independente de quaisquer interpretações mais sobre o acaso dos encontros e desencontros da vida, antes de atravessar uma rua, mesmo que na faixa, olho e penso trinta vezes antes de dar o primeiro passo.

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