Tema 195 - TRAPAÇA
Índice de autores
O JOGO QUE ELE NÃO SABIA JOGAR
Eva Ibrahim

Sentado ao volante da perua Kombi, Silvio olhava o saco de roupas no banco de trás; era tudo o que levara de sua casa. Deixara para trás mulher, três filhos e vinte e cinco anos de casamento. Estacionara em frente á praça fazia um bom tempo, precisava pensar. Iria para a casa da mãe e inventaria uma história qualquer, depois decidiria o que fazer. Era um homem de palavra, não voltaria atrás, sua família que se virasse. Agora iria viver a vida ou o que restava dela, como sempre sonhara. Há muito ansiava por liberdade, queria freqüentar os bares, sair com os amigos e não dar satisfações á ninguém.

No mês anterior ganhou o troféu de Campeão do torneio de truco do Clube local; uma grande façanha. Comemorou com os companheiros e muita bebida, estava feliz. Seus amigos formavam um grupo alegre de trapaceiros que viviam em confronto nas mesas de jogos. Trapaças faziam parte da vida deles e de Sílvio também. O homem estava na idade do lobo e sentia desejos de uivar em outras colinas; afinal, era macho e tinha orgulho disso.

Mantinha um caso com a faxineira do Clube onde era administrador, estava acostumado a blefar; era fácil enganar sua mulher. Neide era ingênua, mas, apesar disso o pegou em fragrante e ele ficou acuado. O homem estava com medo, o rompimento fora traumatizante e temia a opinião dos filhos; poderiam odiá-lo. A família toda o condenaria e os amigos também.

O marido sempre foi infiel, mas, agia escondido e sua esposa acreditava ser casada com um homem sério e respeitador. Viviam aparentemente bem, não brigavam e ninguém poderia imaginar que um dia iriam separar-se. Neide era uma boa mulher, cuidava da casa e da família com muito esmero; Silvio não tinha de que se queixar. A vida do casal era rotineira, o amor ardente ficara para trás, porém, havia respeito entre eles.

Certo dia o homem estava trabalhando, sentiu-se mal e tudo escureceu. Acordou com uma terrível dor no peito, estava caído no chão do depósito de bebidas e ninguém havia percebido. Levantou cambaleando, mal conseguia andar; pingava suor. A camisa estava colada ao corpo e o coração disparado. Saiu pedindo ajuda, tinha a sensação que iria morrer. A boca e o braço esquerdo estavam amortecidos; o peito parecia que ia estourar.

Foi levado ao Hospital com sintomas de um infarto iminente. Conseguiram tirá-lo do quadro e começou uma peregrinação á Hospitais especializados em Cardiologia; foram feitos exames e receitados muitos remédios. Silvio estava assustado e com medo de morrer; proibiram-no de fumar e beber. "Era o fim, não poderia viver dependente de remédios. Queria trabalhar, pescar, ser o homem ativo que sempre foi". Estava desolado; "Aquilo não era vida; preferia morrer".

O homem que era alegre tornara-se triste e estranho, acreditava que chegara sua hora. Depois deste dia começou a mostrar as garras; tornara-se grosseiro, dizia sua mulher. Foi visto por diversas vezes acompanhado de uma mulher de péssima reputação e as fofoqueiras incumbiram-se de contar á Neide. A mulher não se conformava, depois de tantos anos teria que sondar o marido; se o pegasse pediria a separação. O marido demorava e ela ficava alerta. Se ele recebia algum telefonema, ligava as antenas, tentando ouvir a conversa; já não confiava nele. Estava insegura e algo lhe dizia que o surpreenderia a qualquer momento.

Neide pegou o saco de lixo e foi abrir o portão para colocá-lo na rua e viu a Kombi de seu marido parada em frente á casa. Achou estranho e ficou espiando para ver o que ele estava fazendo ali. Não demorou muito e apareceu uma mulher vindo em direção ao veículo, parou e disse alguma coisa á Silvio, que ressabiado olhou para os lados e pediu para ela seguir em frente. Ficou evidente que combinaram alguma coisa. Agora ela tinha certeza que ele a estava traindo, iria pegá-lo; precisava ter paciência. As brigas começaram a fazer parte da vida do casal, ela questionava e ele negava; não se entendiam mais.

Diariamente o homem tinha crises de dores no peito e ela ficava aflita; não queria provocar um enfarte no marido.Sílvio passou a fumar e beber escondido da família e não tomava os remédios. Neide não sabia e vivia insistindo para que tomasse os medicamentos, que ele jogava fora. Um dia ele estava almoçando e a mulher colocou os comprimidos sobre a mesa para que ingerisse após a refeição. O marido almoçou e saiu para trabalhar esquecendo de tomá-los. A mulher preocupada pegou o automóvel e foi até o Clube procurá-lo.

Perguntou aos funcionários onde seu marido estava e ninguém sabia; a mulher ficou cismada e alguém disse que ele fora visto indo para os fundos.Lá havia uma antiga secretaria abandonada, a mulher resolveu abrir a porta e entrar. Sílvio estava aos beijos e abraços com a mulher que ela havia visto em frente a sua casa. O flagrante foi incontestável, os dois amantes ficaram mudos diante da mulher. Neide gritou, ofendeu os dois e saiu chorando. Em menos de um mês sua vida se tornara um inferno.

Seu mundo caiu, o marido teria que deixar a casa; não o queria mais. Vivia preocupada com sua doença e ele na farra com outra mulher. Para safadezas e trapaças estava bom, aquele sem-vergonha, dizia a mulher. Os filhos tentaram interferir, mas o homem ficava irado e saia sem dar explicações. A situação era insustentável, Silvio parecia fora de si; falava gritando e ameaçava agredir a mulher. O homem enlouquecera, estava irreconhecível.

Pediu demissão do serviço dizendo que não queria trabalhar mais, estava cansado. Neide perguntou como iriam viver se ele não trabalhasse e ele avançou sobre a mulher esbofeteando-a; um dos filhos assistiu á tudo. Quando o filho foi defender a mãe ameaçou o rapaz também, depois pegou um saco com as roupas e saiu de casa.

E agora? O que seria de sua vida? Tinha cinqüenta anos, separado e desempregado. A mãe o acolheu, mas pedia para ele voltar para casa; estava doente e precisava da mulher. Depois de alguns dias, á noite, Neide ouviu passos no quintal, era seu marido sondando a casa; parecia fora de si. A mulher ficou com medo, temia que ele a matasse. Mandou trocar a fechadura do portão e da porta da frente, tornaram-se inimigos. Vizinhos alertaram a mulher que ele a estava vigiando, que tomasse cuidado, pois, o homem não estava bem.

Durante um ano Neide evitou sair ás ruas sozinha, temia encontrá-lo. Os filhos sustentavam á casa e protegiam a mãe. A mulher sofria calada, queria ajudá-lo a recuperar-se, mas o homem não queria conversa. Um dia sua sogra telefonou pedindo que fosse á sua casa, seu marido estava muito mal; abandonara os remédios e estava fumando e bebendo muito. A mulher acompanhada dos filhos foi buscá-lo, cuidaria dele até melhorar; era seu marido e ainda gostava dele.

Depois de uma longa internação em clínica especializada, Silvio estava recuperado. Muito arrependido, queria o perdão da mulher. Precisou bater a cabeça para entender que não iria morrer; Aquele jogo contra a morte, ele não sabia jogar. Com a doença não dá para trapacear, mas, era só seguir o tratamento e teria vida normal, diziam os médicos. Os dois juntos tentariam esquecer aquele período de desconfianças e traições.Quem sabe ainda poderiam ser felizes e envelhecer juntos.

Só o tempo fecharia a ferida que a doença provocou. Colocado em xeque diante da possibilidade de morte o homem mostrou-se um trapaceiro alucinado, bem diferente da estampa de homem pacato, apresentada durante vinte e cinco anos de casamento

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor