Tema 195 - TRAPAÇA
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A ÚLTIMA JOGADA
Herta Cristina Carneiro

Com aquele olhar vazio, que mais parecia um lago seco castigado por uma impiedosa estiagem, Cristina estava sentada naquele banquinho do parque, estática, presa somente aos seus pensamentos densos e doloridos. Para ela, era indiferente toda aquela movimentação e alegria que circulavam ao seu redor. Apesar da agitação reinante, nada conseguia lhe tirar do mundo onde se encontrava. Seu corpo, inerte, só não era confundido com uma estátua velha e mal cuidada, dessas que ficam jogadas à margem do caminho, porque sua face estava banhada em lágrimas, denunciando que aquilo era um ser humano.

Com muito sacrifício, ela encolheu suas pernas e trouxe-as para junto de seu corpo. Abraçando-as, sentiu vontade de chorar mais um pouco. Foi um choro baixinho que, apesar de não ter sido notado pelos que por ali passavam, tinh a a intensidade de um vulcão que explode após anos adormecido. Era um lamento que vinha lá de dentro, daquele espaço do coração onde só habitam as dores que não podem ser curadas com um simples remedinho de alegrias efêmeras, nem com palavras de consolo. Ela sabia que para se livrar daquela dor era preciso receber os cuidados do "Senhor Tempo", pois só ele, com sua silenciosa sabedoria, poderia tratar aquelas feridas que estavam ali expostas, dilacerando a sua alma, fazendo-lhe sentir uma dor que beirava a incompreensão humana.

Entregue aos pensamentos, ela continuou onde estava desde o primeiro momento que sentara naquele banco. A cidade ficava distante e ela estava num apartamento pequeno. Lá, morava o homem que, há quase três décadas, em meio a encontros e desencontros, idas e vindas, brigas e reconciliações, amor e ódio, era seu parceiro no jogo perigoso de um amor extremado.

Naquele apartamento, aconteceram as mais belas jogadas de sedução que aquele homem conse guira realizar tão profissionalmente naqueles últimos três anos.

- Ah, quantas inesquecíveis cenas ele planejou e realizou ali, naquele quarto, numa cama de solteiro, onde, apesar do pouco espaço, o jogo do amor foi muito bem calculado e executado!" Lembrava Cristina.

- E as jogadas das frases românticas? Essas sim, eram perfeitas para completar a sedução. Ele saiba arquitetar frases belas, compostas com trechos de filmes famosos: "...amo para todo sempre", do Filme Click. "...o problema é que depois de você, todas as mulheres não são você", Indiana Jonnes, a Última Cruzada.

Cada frase dita por ele vinha acompanhada de uma carta surpresa, eram as lágrimas que rolavam face abaixo, para garantir a veracidade do que estava sendo dito. E, entorpecida pelo poder do desejo de ser eternamente amada, Cristina se entregava a construir sonhos e roteiros de "contos de fada" para sua vida a dois, sem nunca se preocupar em avaliar se aquele jogo era um jogo justo, verdadeiro, um "jogo limpo".

E, naquele mesmo apartamento que já fora espaço de tantas jogadas felizes, começava a se desenrolar, numa chuvosa e fria noite de uma quarta-feira, a última partida do relacionamento entre duas pessoas que haviam aprendido a encontrar saídas engenhosas para situações difíceis. Eles, nos últimos anos vividos juntos, tinham conseguido desenvolver estratégias diversas para vencer o fantasma da separação que, de vez em quando, surgia no decorrer de uma jogada mais arriscada. Cada um conhecia muito bem os truques e as artimanhas usados pelo outro para conseguir seus objetivos. E, dessa forma, iam tecendo planos de um "amor para todo sempre". Mas, o que Cristina não contava era que, durante os últimos três anos, seu parceiro havia trapaceado no jogo. Todas aquelas frases românticas, ditas em meio a lágrimas incontidas, todas as promessas feitas, todos os sonhos construídos juntos, tudo isso não passava de uma trapaça.

Aquele homem que trapaceou tão bem dur ante anos, ao ponto de fazer todos acreditarem na beleza e veracidade do seu amor, naquela noite, não quis mais continuar sua farsa. Diante daquela mulher frágil, que só queria não ter que ouvir a verdade, pois seu amor era tão grande e tão submisso que até aceitaria uma mentira para não encerrar de vez aquele jogo e ter que encarar que toda uma vida estava alicerçada em planos falsos, ele só teve uma atitude: mostrar-lhe todas as cartas falsas com as quais a enganara durante tantos anos.

Naquela momento, Cristina desmoronou. E como qualquer mulher que construiu um sonho de contos de fada, sua primeira reação foi não querer acreditar. Para ela era muito duro olhar para a realidade. Onde ela iria colocar tanto amor que estava ali em seu coração? O que ela iria fazer com todos aqueles sonhos construídos? E sua maior interrogação era: Por que ele havia resolvido mostrar a verdade quando ela pensava que eles estavam começando a melhor parte das suas vidas?

Muitas pergunt as foram feitas, em meio a frases desesperadas, gritos e choros. Mas aquele homem só conseguiu dar uma única resposta: "Eu não sei. O melhor que você faz é ir embora para sua casa."

Uma mulher com uma alma rasgada e os pedaços jogados ao vento, carregando um coração pesado pelo excesso do amor que agora só tinha aquele espaço para viver, embarcou naquele ônibus sem olhar para trás. De volta a sua casa, ainda não conseguia sair daquela cena.

Todo dia, quando a dor apertava demais, ela ia para o parque, sentava naquele banquinho e se entregava ao mesmo ato: lembrar, chorar e dizer para si mesma que tudo aquilo havia de passar.

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